É decepcionante para o leitor ver um assunto com impacto direto no cotidiano de milhares de pessoas ser tratado de forma burocrática e desatenta pelo seu jornal. A Folha caiu nesse erro com a reportagem “Eletropaulo cortou equipes técnicas, diz gestão Alckmin”, publicada no impresso na quinta (22).
O texto era uma sucessão de aspas. O governo estadual se declarava “decepcionado” com o atendimento da concessionária e “preocupado” com a falta de uma “resposta bem mais adequada”–uma “enorme injustiça”. O secretário de Energia acusou a empresa de ter reduzido o quadro de funcionários voltados ao atendimento das emergências e de não ter feito todas as podas necessárias antes da temporada de chuvas intensas.
A Eletropaulo retrucou: “estranhava” as críticas, havia podado 140 mil árvores em 2014 e prevê a execução de outras 200 mil podas em até 90 dias. E tudo ficou nisso.
A toada dos dois lados sugeria mais uma DR (discussão de relacionamento) entre compadres magoados do que o debate de um problema urgente, que já trouxe morte, prejuízos generalizados e cortes de energia e de água para milhões de pessoas. O jornal, de seu lado, relegou o assunto a um texto acanhado, que resumia os argumentos dos atores envolvidos, sem informar suas atribuições e responsabilidades.
Nenhuma resposta a questões óbvias, daquelas que passam imediatamente pela cabeça do leitor: se é possível cuidar de 200 mil árvores em três meses, como promete a empresa, por que só 140 mil foram aparadas nos 12 meses anteriores? A quem cabe a fiscalização? O que o governo estadual fez ou deveria ter feito além de dar publicidade à sua “decepção”? O leitor ficou boiando.
No dia anterior (21), em capa sobre a enorme perda hídrica com vazamentos e fraudes (“Brasil desperdiça 37% da água tratada”), “Cotidiano” publicou, sem nenhum reparo, uma série de argumentos dúbios fornecidos pelas empresas de saneamento (identificadas assim, sem nominar ou individualizar).
As concessionárias alegaram que é impossível zerar as perdas por vazamentos e fraudes –uma falsa questão, porque o que se cobra é um recuo a patamares mais razoáveis.
Afirmaram, sem dar estimativa, que combater o desperdício exigiria grande investimento na troca de válvulas e encanamentos, um gasto que não justificaria a economia feita. O argumento revela a incompreensão de que o valor mais alto em jogo não é a questão financeira, mas a gestão sustentável de um recurso natural vital e escasso. O jornal, porém, se contentou em repetir a cantilena.
Em sua defesa, a editoria de “Cotidiano” argumenta que eventuais deficiências em uma ou outra matéria não significam que esteja fazendo uma cobertura acrítica. (Registro que nem é essa a minha avaliação.) “Ao longo das últimas semanas, foram publicadas com destaque diversas reportagens apontando as deficiências de governos e empresas”, declara o editor interino, Alencar Izidoro.
Vale ressaltar que matérias que pecam pelo mero registro mecânico do discurso dos entrevistados ou pela falta de contestação de afirmações questionáveis não são exceção à regra nem problema de uma só editoria, embora os exemplos hoje comentados sejam do mesmo caderno. Suspeito que o problema seja fruto de uma leitura apressada da determinação de ouvir todos os lados e deixar que o leitor tire suas próprias conclusões. A prescrição é correta, mas cabe ao jornal desenhar bem o cenário para que ele possa fazer isso. Rascunho é pouco.
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Vera Guimarães Martinsé ombudsman daFolha de S. Paulo