Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre as ‘Cartas a Lula’

Durante o mandato presidencial de Lula, entre os anos de 2003 e 2006, Bernardo Kucinski atuou como assessor especial da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República e reúne nesse livro impressos escritos diariamente guardados em envelopes e entregues ao presidente na primeira hora do dia. As cartas narram de forma exclusiva o processo de criação do Fome Zero, os embates em torno do salário-mínimo e o estouro do escândalo do mensalão. De forma crítica e direta, os informativos, também usados para pautar as reuniões diárias da cúpula do governo, comentam os principais temas veiculados na mídia e que seriam decisivos na vida do Brasil. Cartas a Lula revela as decisões e posições adotadas pelo presidente, e apresenta uma maneira singular de conhecer a história recente do país.

Abaixo, texto de Bernardo Kucinski sobre seu livro:

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Antigamente se dizia que governar é abrir estradas. No governo Lula eu diria que governar era enfrentar crises. As crises nunca faltaram. Começaram antes mesmo da posse, com a campanha de terrorismo financeiro que levou Lula a fazer um acordão com os bancos para ter condições de governabilidade. Avalizado por Palocci e Meirelles, esse pacto não escrito, mas que incluía metas de contenção de gastos, amarraria suas mãos e travaria o governo durante os dois primeiros anos de mandato, provocando forte tensão interna e deprimindo o presidente.

Assumido o governo deu-se de cara o caos em torno do programa Fome Zero. Caminhões e caminhões de mantimentos eram enviados ao governo por grandes empresas pressurosas em agradar e não se sabia o que fazer com aquilo tudo. Esse foi o tema principal das primeiras Cartas Críticas. Desse programa, no entanto, surgiria depois o Bolsa Família, uma revolução que instituiu o pobre como sujeito de direitos de cidadania e exigiu para o seu funcionamento a criação do primeiro cadastro nacional dos pobres, base de todas as atuais políticas publicas de cunho social.

Seguiu-se a batalha da reforma da previdência, principal projeto de reformas do governo Lula. Uma reforma necessária devido às transformações demográficas no país, mas que contrariava as bases sindicalistas do petismo. A Carta Crítica tentou desenvolver os argumentos lógicos pela reforma que foram pouco aproveitados. A muito custo, a reforma acabou emplacando e sua seqüela foi o fenômeno Psol, o surgimento de uma oposição ao PT pela esquerda, tratada numa Carta Especial.

Ao mesmo tempo, instalava-se o imbróglio das rádios comunitárias, perseguidas pelo Ministério das Comunicações no governo Lula, mais ainda que nos anteriores. Muitas eram falsamente comunitárias, outras de proselitismo religioso. Para desgosto profundo de Lula e decepção do campo popular, nada se resolveu. Foi um dos problemas que a Casa Civil, toda poderosa no governo Lula, delegava a uma comissão especial para propor soluções que nunca saiam.

Em agosto desse primeiro ano de mandato ocorreu a tragédia de Alcântara: a explosão do foguete que matou 21 técnicos e dirigentes do nosso programa espacial. Lembro que na ocasião senti no desastre uma espécie de prenúncio do que seria o governo Lula. Felizmente meu pressentimento estava furado. Mas a tragédia nos atrasou em vinte anos nosso programa espacial. Alcântara para mim é até hoje o símbolo da nossa condição de sociedade periférica, dependente e sem um projeto nacional. A natureza nos deu ali o melhor local do planeta terra para o lançamento de foguetes e no entanto até hoje não fizemos daquilo uma indústria rentável, um polo de lançamentos a serviço de todos os países.

Nessa mesma época a Carta Crítica começa a abordar a questão dos mortos e desaparecidos durante a ditadura, a partir de extensas matérias e documentos inéditos publicados pelo Correio Braziliense sobre a guerrilha do Araguaia. Vivia-se um paradoxo. Muitos dos presos ou torturados durante a ditadura estavam agora no governo, inclusive o presidente e o ministro chefe da Casa Civil. Tinham a tarefa de governar esse país gigantesco, atender demandas sociais reprimidas e solucionar problemas complexos. A revisão dos horrores da ditadura, ao arriscar uma crise na relação com os militares não ajudaria. As cartas abordando esse tema algumas vezes até quase minha saída do governo, refletem essa contradição. Foi também meu desassossego com esse tema que me levou – entre outras razões – a sair do governo pouco antes do final do mandato. Sentia crescente desconforto por estar no coração de um aparelho de Estado que a rigor não abjurara seus crimes, cometidos pouco tempo antes.

Juros anômalos

A análise da grande mídia, a condutora ideológica da oposição no governo Lula, ocupa lugar de destaque nas cartas. Já no primeiro semestre de governo, em junho, surgiu na mídia o escândalo do Banestado e das contas CC5, criadas secretamente pela Circular numero 5 do Banco Central, usadas durante anos por centenas de pessoas e empresas para remeter divisas para exterior. Foi criada uma CPI que o governo administrou de modo hesitante, provocando muita critica da mídia. É provável que por deter informações explosivas sobre o Banestado, José Dirceu tenha provocado a campanha que por fim o derrubaria dois anos depois. O mal estar do Banestado, como Carta Critica chamou esse episódio, acabou abafado.

Para produzir a Carta Critica não bastava saber o que se passava fora do governo, era preciso saber também o que se passava dentro. Conhecer as preocupações do presidente e suas reações às cartas. Minha equipe passou a investigar internamente o funcionamento do governo, principalmente o que não funcionava. A imprensa pouco sabe desses assuntos. Assim nasceram, entre outras, as cartas sobre a crise da aftosa. Descobrimos um dos principais mecanismos que fazem com que o Brasil não funcione: todos os programas federais – o combate à aftosa era um deles – são implantados através de convênios com os Estados, a maioria incluindo contra-partidas. Se a Secretaria de Agricultura de um Estado não elabora um programa de combate à aftosa no seu estado e não o apresenta, não tem convênio. Não tem combate à aftosa. E muitas não o faziam. Daí os percalços que se vêem até hoje em programas como Mais Médicos, Minha Casa Minha Vida.

As dificuldades de projetos e políticas públicas decolaram, seja por ineficácia da máquina administrativa, seja pela negação das verbas pela equipe econômica, que foi objeto de muitas Cartas Criticas especiais mono temáticas. Assim produzimos a Carta Crítica especial sobre o couro Wet Blue que exportamos quase de graça para a China fabricar calçados que vão competir deslealmente com nossa indústria de calçados; sobre o ambicioso Plano Naval, criado para repor a frota sucateada pelo governo FHC; sobre as a ausências de campanhas para evitar o grande número de mortes no trânsito.

Por iniciativa de Lula, as cartas passaram a ser entregues também a outros ministros, a começar pelo chamado núcleo duro do governo: Zé Dirceu, Palocci além de Gushiken que já recebia como meu chefe imediato. Logo foram incluídos outros ministros e auxiliares, em algumas ocasiões chegando a quinze destinatários, sempre em mãos, já impressas e em envelopes lacrados. Não circulavam pela intranet para evitar vazamentos. Assim as cartas foram se tornando um instrumento coletivo de trabalho. Várias vezes aborrecido com as cartas, Lula quis me demitir. No último momento recuava.

Mais de uma vez o ministro Palocci pediu minha cabeça e Gushiken não deu. Desde o início, as cartas criticavam as políticas recessivas de Palocci. Passou a ser uma marca da Carta Critica dar combate ao Paloccismo dentro do governo. Em algumas ocasiões, reconheço, até exagerada ou o que é pior, previsível. As cartas a Lula, portanto, não eram neutras nem ingênuas. Era um exercício duro e consciente que só não foi desautorizado por Lula porque tomávamos extremo cuidado nas informações e caprichávamos nos seus conteúdos didáticos. Lula via as vantagens de ter esse instrumento. Dava a ele uma alavancagem nas reuniões e nos encontros com ministros. No início, adotei a linha editorial anti-paloccista por iniciativa própria, de forma intuitiva. Explicava a anomalia dos juros no Brasil, os mais altos do mundo, martelando na tecla da necessidade de redução dos juros. Tornou-se tão insistente e pesada minha cobrança que a cada véspera da reunião do Copom, Lula ficava nervoso. Depois, conseguiu com muita pressão cortar alguns pontos na Taxa Selic, mas uma década depois voltávamos à estaca zero, com juros anômalos, os mais altos do planeta, numa demonstração de domínio absoluto dos bancos e do capital rentista sobre nossa economia.

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Bernardo Kucinski é jornalista e escritor