Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo da estiagem cognitiva

Se há uma palavra que a imprensa idolatra é crise. Bastou aparecer, seja onde e qual for o lugar ou setor, a ordem é concentrar fogo no tema. A mídia, em geral, opta sempre por usar a tática militar de artilharia de saturação e quase nunca de precisão. Ou seja, na primeira se atira em tudo que imagina estar próximo ao alvo e torce para ter atingido o objetivo. Já na segunda, em vez de destruir tudo que está no entorno, com larga margem de erro, o esforço é concentrado para alcançar o alvo com maior rigor técnico e menos munição.

A crise hídrica promoveu novamente a tática da saturação junto à imprensa e uma profusão de informações, grande parte delas repetidas ou descartáveis, que servem mais para atrapalhar do que para elucidar.

O efeito secundário disso é promover o surgimento de especialistas no assunto aos montes. A cada quadrante seco, brota alguém para dar seus palpites e quase nada de soluções. A ânsia é por se ter uma informação diferenciada, seja correta ou não, mesmo que isso signifique lançar-se na vala do duvidoso ou nos contornos do grotesco.

Novamente as matérias jornalísticas procuram acertar o alvo por saturação, descarregando seu arsenal e esforços num tiroteio de cegos. Vale a informação por atacado, muitas vezes conseguida num surrado e repetitivo mercado de pulgas, onde não há nada de novo. Nessa estratégia mal traçada, se atinge mais o entorno do que propriamente o ponto central da questão.

Situação trágica

Embora o problema da crise hídrica envolva uma visão mais aguda e analítica, cobrar isso da imprensa seria exigir demais tal a dificuldade para se compreender os processos, principalmente quando esses são associativos – como o holístico. A sensação ao tomar contato com o noticiário é que a mídia se encontra lobotomizada, desprovida da capacidade interpretativa.

Num exercício cognitivo, meramente de percepção, bastaria ao profissional de imprensa entender que reservatório é, na sua essência, uma reserva, algo que se deixa para utilização futura, e nunca como fonte primária de uso. E daí partir para questionamentos que agregariam novos rumos para a discussão.

Mesmo nesses lagos artificiais há uma informações de extrema relevância. Nesses lugares que agora são mostrados em imagens dramáticas com os torrões formados pela lama ressequida e rachada, praticamente inexiste mata e resquícios de florestas. São áreas sem vegetação densa, dentro ou com parte da malha urbana se aproximando velozmente, com a vasta presença humana e do mercado imobiliário.

Hoje, qualquer cidadão mais atento às notícias consegue explicar que as árvores são necessárias para a chuva e fundamentais do ciclo hidrológico. Isso tem sido abordado em grande parte das reportagens, felizmente. Então, conclui-se que sem árvore não há chuva, nem recarga das reservas das águas superficiais e subterrâneas.

A mídia, em sua artilharia de saturação, está muito próxima ao alvo. Todavia, ainda tem imensas dificuldades em explicar os fatores para a escassez de chuvas sobre esses lagos. Embora esteja literalmente na cara do jornalista. Os lagos são desprovidos de grandes matas. Mas a dificuldade em se perceber isso é imensa e beira o incompreensível.

Se havia alguma dúvida, ela se extinguiu: a reflexão jornalística é afetada drasticamente por uma estiagem particular, a cognitiva. Há uma aridez perceptiva, uma dificuldade imensa de compreender o que se vê.

A mesma reportagem que fala sobre a derrubada da Mata Atlântica, da devastação do Floresta Amazônica e seus impactos negativos no ciclo das chuvas e no agravamento da estiagem, sequer consegue apresentar a situação ambiental trágica do entornos desses lagos, que precisam estar densamente povoados por florestas sadias e bem constituídas.

Desempenho ridículo

Outra estupidez usada e abusada são as expressões “produtores de água” e “fabricantes de água”, como se houvesse um procedimento, que não o natural, para se obter o mineral em estado gasoso, líquido ou sólido. Uma tentativa frustrada de incluir a água em um processo industrial e econômico.

A somatória de toda a água existente representa apenas 0,06% do volume da Terra. Diante disso se pode afirmar que vivemos num planeta relativamente seco, com uma atmosfera redutora que garante a manutenção desta água na superfície e algumas centenas de metros abaixo, nos chamados aquíferos.

Desde o surgimento da água na proto-Terra, há cerca de 4 bilhões de anos, e com a estabilização do volume de água no planeta já resfriado após a colisão do planetoide Théia – que já foi denominado Orpheu –, segundo a teoria do “Big Splash”, o volume hídrico é constante, sem ganhos nem perdas. Então, não se produz água, apenas se recicla a água existente. Lançar a ideia de que teremos mais do mineral já escasso é enganação, manipulação vil do conhecimento e do poder de informação.

A primeira grande crise hídrica na porção do Brasil industrial, tecnológico e rico está longe de ser discutida com a seriedade e pertinência que o tema exige. Parte disso é creditada ao desempenho ridículo da imprensa quanto às temáticas mais complexas. O acesso à informação nunca foi tão fácil como agora, embora se aumente a cada dia a certeza de que nunca foi tão difícil compreendê-la.

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Júlio Ottoboni é jornalista diplomado, pós-graduado em jornalismo científico