Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um generoso déficit de precisão 

Os jornais foram bonzinhos, e um tanto desavisados, ao noticiar o “primeiro déficit” fiscal em 18 anos. O buraco de R$ 17,24 bilhões nas contas primárias do governo central havia sido informado no dia anterior, quinta-feira (29/1), pela Secretaria do Tesouro Nacional. De fato, pela primeira vez em quase duas décadas o balanço federal foi fechado sem a famosa “economia” para o pagamento de juros. Mas a informação publicada com destaque nos maiores jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro estava errada.

Déficit nas “contas do governo”, expressão usada em todas as coberturas, tem sido absolutamente normal no Brasil, há muito tempo. A história foi simplesmente mal contada pelos repórteres. Editores e subeditores, na hora da edição, deviam estar olhando para outro lado. O quadro geral das contas públicas tem sido, e foi de novo no ano passado, muito pior que o apontado naquelas matérias.

É grave imprecisão confundir o resultado primário ­– sem as despesas da dívida ­– com o resultado fiscal, em qualquer nível da administração ou no conjunto do setor público. Todos os jornais foram imprecisos nos títulos.

“Contas públicas têm déficit pela primeira vez”, noticiou o Valor. “Contas do governo têm primeiro déficit em 18 anos”, assinalou o Estado de S.Paulo. A Folha de S.Paulo publicou a manchete: “Governo registra o primeiro déficit nas contas desde 1997”. No Globo apareceu: “Governo fecha 2014 com rombo de R$ 17 bi”. O detalhe relevante, a referência clara ao resultado primário, só apareceu no meio do texto.

Saldo completo

O cuidado com o detalhe, nesse caso, estaria muito longe de ser um preciosismo. Afinal, as contas públicas brasileiras estão em mau estado há muito tempo e, em 2014, os números foram muito piores que na maior parte das economias industrializadas.

Na sexta-feira (30), já de manhã, os dados fiscais foram de novo expostos, de modo mais amplo e com menor risco de engano, a repórteres e editores. Como de costume, o Banco Central (BC) divulgou as contas consolidadas do setor público logo depois de conhecido o relatório do Tesouro – nesse caso, um dia depois.

O relatório mensal do BC explicita os dados fiscais dos três níveis de governo – União, Estados e municípios – e de um conjunto de companhias estatais. As tabelas discriminam os resultados primários, os juros pagos e os resultados nominais (com a inclusão dos juros). Há uma diferença, em geral, pequena, entre esses dados e aqueles divulgados, no caso do governo central, no relatório da Secretaria do Tesouro. O BC mede o resultado pela necessidade de financiamento do setor público.

Pelo relatório do BC, o setor público geral chegou ao fim do ano com um déficit primário de R$ 32,54 bilhões, equivalente a 0,63% do PIB. O resultado do governo central (Tesouro, Previdência e BC) foi um buraco de R$ 20,47 bilhões – pior, portanto, que o divulgado no dia anterior. A diferença, no caso, é explicável pela diversidade de critérios.

Os resultados nominais (isto é, com inclusão das despesas financeiras) são especialmente notáveis. O déficit consolidado chegou a R$ 349,92 bilhões, ou 6,7% do PIB. O rombo do governo central, nessa categoria, alcançou R$ 271,54 bilhões, ou 5,29% da produção interna de bens e serviços finais. Na União Europeia, formada por vários dos países mais afetados pela crise de 2008, a média dos déficits foi estimada, recentemente, em 2,6% do PIB. O déficit brasileiro é muito maior e isso já era evidente ao longo do ano.

No fim das contas, o importante é mesmo o resultado nominal, isto é, o saldo completo, com inclusão das despesas financeiras. Quando se tem de procurar financiamento no mercado, é para esse rombo. O superávit primário é importante, sim, porque é o dinheiro necessário para o serviço da dívida, mas o objetivo, também nesse caso, é melhorar ou manter o controle o saldo nominal e o endividamento.

Retórica enganosa

No Brasil, a retórica oficial normalmente destaca as metas e resultados primários, em geral positivos, e deixa meio esquecido o resultado geral, sempre deficitário. A imprensa de certa forma se deixou moldar por essa retórica. O resultado se viu nas edições da última sexta-feira de janeiro.

Curiosamente, durante a maior parte do ano os jornais foram espertos na cobertura dos assuntos fiscais e na identificação dos truques de maquiagem usados pelo pessoal do Tesouro. Repórteres e editores mostraram-se capazes de enfrentar esse jogo e de escapar da embromação. Mas parecem, apesar de tudo, ter continuado sensíveis à retórica do superávit primário.

Em tempo: No sábado (31/1), jornais continuaram noticiando o “déficit inédito” nas contas públicas, como se o resultado primário resumisse o balanço das contas de governo. O quadro 2 do relatório do BC mostra os saldos nominais, sempre negativos, dos últimos cinco anos: buracos de 2,48% do PIB em 2010; 2,61% em 2011; 2,48% em 2012; 3,25% em 2013 e 6,7% em 2014. No caso do governo central, os déficits, nesses anos, foram de 1,21% do PIB, 2,11%, 1,39%, 2,28% e 5,29%. Senhores editores: nem o segundo quadro foi lido?

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Rolf Kuntz é jornalista