Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Invasores do espaço literário

Anna acorda em um castelo numa ilha, sem a menor lembrança de como foi parar ali. Enquanto procura a saída, sua história vai ficando cada vez mais estranha. Enigmas revelam episódios da vida de Anna, e um homem misterioso aparece de vez em quando. Ao fim de seis capítulos, a trama se revela um bizarro quebra-cabeça com muito texto, como um romance. Exceto por um detalhe: “Device 6” é um videogame.

Uma nova geração reinventou formatos e temas dos videogames, dotando-os de recursos mais comuns à literatura. Ao contrário das narrativas cinematográficas que tornaram os videogames grandiosos e colocam os jogadores dentro de verdadeiros filmes, a inspiração quase intimista de games como “Device 6”, “Dear Esther”, “The Walking Dead” e “The Novelist” está nos livros e nas possibilidades de contar uma história.

“Eu não acho que existam limites”, diz Simon Flesser, sueco que é um dos criadores de “Device 6”, vendido apenas para iPad, iPod Touch e iPhone [Simogo, disponível na AppStore por US$ 3,99, aproximadamente R$ 10,70].

Para escrever o jogo, ganhador do Apple Design Award no ano passado, ele diz ter se inspirado em Franz Kafka, Agatha Christie e Lewis Carroll, além de na série clássica de TV “O Prisioneiro” e nos filmes de Alfred Hitchcock. A produtora sueca Simogo, formada por ele e Magnus Gordon, também é responsável por outro jogo inusitado: “Year Walk”, inspirado numa lenda do folclore do país.

No caso de “Device 6”, o ato de jogar é mesmo muito semelhante ao de ler um livro. O game usa textos, imagens e sons para ajudar a protagonista a resolver o enigma e fugir da ilha. A diferença é que o texto vem de qualquer direção. Pode aparecer na horizontal, de cabeça para baixo, vindo de baixo ou do alto do cenário. Se Anna vira uma esquina, por exemplo, o texto a acompanha. O jogador precisa movimentar o aparelho para fazer o cenário se mexer. Pelas possibilidades inovadoras, a revista norte-americana “The Atlantic” saudou o jogo como uma possível revolução para a indústria editorial.

Tramas

A simbiose entre videogames e literatura não é nova. “Dante’s Inferno”, de 2010, foi inspirado na “Divina Comédia”. Há também dezenas de jogos, novos e antigos, baseados em tramas de Agatha Christie e em romances como “O Poderoso Chefão”, “Alice no País das Maravilhas” e “O Grande Gatsby”. No sentido contrário, jogos de sucesso como “Assassin’s Creed” e “Halo”, entre outros, viraram livro. E há associações inusitadas. O primeiro “BioShock”, um sucesso de vendas e crítica de 2009, passado numa cidade submersa, é inspirado nos escritos da russo-americana Ayn Rand (1905-82) sobre a liberdade individual.

Em geral, porém, adaptações para games costumam oferecer não mais do que tênues referências ao universo dos livros aos quais aludem. Em “O Grande Gatsby”, lançado em 2011, por exemplo, não há na trama nada que se refira a decadência, idealismo e revolta social –a diversão é fazer o personagem Nick Carraway atirar coquetéis nos garçons que passam carregando bandejas.

O que distingue alguns jogos da nova geração é o fato de que suas tramas acedem a temas pouco usuais no universo dos games e mais comumente associados às narrativas literárias: dramas familiares, zonas cinzentas entre o bem e o mal, exploração da liberdade, moralidade, solidão, capitalismo selvagem e nostalgia, entre outros.

Dilemas morais, por exemplo, são o tema principal de “The Walking Dead” [Telltale Games; de US$ 4,99 a US$ 19,99, de R$ 13,57 a R$ 54,38 aproximadamente, cada episódio, ou R$ 45 a temporada inteira, segundo a plataforma], inspirado na HQ do escritor Robert Kirkman e do ilustrador Tony Moore que deu origem à série de TV. O videogame usa elementos de “adventure” (nome dado ao gênero de jogos centrados na história), mas gira em torno, principalmente, de tomadas de decisões.

Algumas são fáceis, como praguejar ou não na frente de crianças. Outras, mais difíceis: discutir ou sacar logo a arma diante de um estranho ameaçador? Deixar um adolescente de caráter duvidoso morrer? Matar um filho, mordido pelos zumbis, na frente do pai?

A fórmula não funciona somente com um apocalipse zumbi ou em jogos de mistério. Que tal o drama de um escritor estressado e os limites da criação literária? Em “The Novelist” [Orthogonal Games, US$ 14,99, aproximadamente R$ 40,85, no site do desenvolvedor], de 2013, o jogador é um fantasma que explora as memórias e sonhos da família de Dan Kaplan, o escritor que precisa terminar o romance mais importante da sua carreira. Algumas vezes não é agradável viver no jogo o dilema entre o trabalho e ser um pai e um marido melhor. É praticamente impossível não se afeiçoar à família Kaplan e sofrer com seus problemas.

“Sem dúvida, há um espaço imenso para ser explorado nesta área. Games são interativos e podem criar uma experiência diferente para cada jogador”, diz Kent Hudson, criador de “The Novelist”. “Literatura e filmes podem, claro, criar experiências para as quais diferentes espectadores dão diferentes interpretações; mas todas essas interpretações vêm de uma mesma fonte. Em ‘The Novelist’, os capítulos se sucedem de maneira aleatória e reagem às escolhas do jogador. Isso aprofunda a experiência, tornando-a mais pessoal.”

No mesmo gênero de “The Novelist”, “Gone Home” [Fullbright, US$ 19,99, aproximadamente R$ 54, no site gonehomegame.com] é sobre uma escritora fracassada que tem de descobrir, após se deparar com o lar vazio, onde foi parar sua família disfuncional, enquanto a trama revela detalhes sobre sua personalidade.

Mesmo “blockbusters” da geração anterior se mostram, em suas novas versões, afetados pelos aspectos inovadores dos games mais recentes. “BioShock Infinite”, de 2013, é uma história sobre autoconhecimento, que apresenta o que tem sido chamado convencionalmente de “narrativa madura” –aquela que não tem (muitos) tiros e traz especulações filosóficas.

Já “Dear Esther” [The Chinese Room, US$ 9,99, aproximadamente R$ 27 no site dear-esther.com], lançado em 2008 e depois reformulado seguidas vezes até uma versão definitiva, de 2012, reduz o papel do jogador a um grau tão mínimo –não há missões a cumprir, vidas, barras de energia ou fases a conquistar– que alguns críticos ainda discutem se ele pode mesmo ser classificado como um videogame. Sua narrativa epistolar e fragmentada é um romance visual ambientado numa ilha fictícia no litoral escocês, que o jogador precisa explorar, sendo obrigado às vezes a parar para ouvir a narração de um diário. A sensação, por vezes, é de estar dentro de um fluxo de consciência, recurso que marca uma parte importante da literatura moderna.

Ofício

As possibilidades literárias ainda não levam multidões de escritores de ofício às produtoras. Um dos poucos famosos a se unir à indústria foi Tom Bissell. Autor de “Extra Lives: Why Video Games Matter” (Vidas extras: por que videogames importam), ele colaborou com “Gears of War 2”, jogo cujos diálogos somam 250 mil caracteres. Bissell defendeu por anos a ideia de que escritores eram os mais indicados para desenvolver games. Mas mudou de ideia.

“Eu pensava que os jogos eram potencialmente um grande meio de contar histórias, e que escritores idiotas estavam ferrando com tudo. Não acredito mais nisso. Qualquer que seja o propósito desse meio, não é contar histórias”, disse à revista “The New Yorker”. Contatado, ele declinou dar entrevistas, dizendo-se afastado no momento do mundo dos jogos.

No Brasil, a carioca Simone Campos desponta como exemplo de escritor que vem se embrenhando na produção de games. Autora do romance “A Vez de Morrer”, lançado no ano passado pela Companhia das Letras, ela aprendeu programação e trabalha na criação do próprio game, cujo título provisório é “Garota Promíscua”.

Ela diz ser um desafio, como autora, criar uma história que também obedeça à mecânica de um jogo. “Como toda mídia, jogos contam histórias de um jeito muito próprio. Seu verdadeiro diferencial são as regras e como elas regem suas interações com a história. Além de serem um desafio, as regras espelham a vida por muitas vezes nos obrigar a escolher entre opções eticamente limitadas, racionar recursos com que gostaríamos de contar liberalmente… ou seja, a engolir sapos.”

Narrativa

Mas será que videogames algum dia poderão ser chamados de literatura? “Na verdade, a narrativa ‘literária’ foi um dos primeiros formatos dos games”, explica o escritor Daniel Pellizzari, autor de “Digam a Satã que o Recado foi Entendido” (Companhia das Letras), e ex-colunista de games da Folha.

“Os ‘adventures’ em texto, um dos principais gêneros em termos de vendas na primeira metade dos anos 80, eram praticamente livros interativos. A qualidade do texto variava demais, mas há clássicos muito bons, especialmente da Infocom: o do ‘Hitchhiker’s Guide’ [‘Guia do Mochileiro das Galáxias’] foi escrito pelo próprio [autor do livro,] Douglas Adams.”

No entanto, com o avanço dos gráficos, aos poucos a narrativa literária foi trocada pela tentativa de imitar o cinema. Uma evolução gigante para um gênero que nasceu com jogos como “Pac Man” e “Space Invaders”, em que a história, se existia, não importava. Para David Lemes, professor de tecnologia e jogos Digitais da PUC-SP e editor do GameReporter, primeiro blog brasileiro especializado em games, a sofisticação narrativa acompanha não só gráficos e processadores, que tornaram computadores e consoles mais potentes, mas também o contexto econômico.

“‘Pac Man’ e ‘Space Invaders’ surgiram em uma época onde os ‘arcades’ [conhecidos no Brasil como fliperamas] estavam se popularizando. Tinham que ser jogos nos quais o jogador não ficasse muito tempo jogando, deveria perder todas as suas ‘vidas’ rapidamente para comprar outra ficha e jogar outra partida. Era um modelo de negócio da época. Você jogava em pé, em um local público, por alguns minutos.”

Contudo, acrescenta Lemes, depois que o videogame “tomou a sala de estar das famílias”, fase iniciada com o Atari, o tempo de uma partida pôde ser aumentado: o jogador estava, afinal, no “conforto do lar”. Novas categorias de jogos nasceram, com as grandes aventuras; partidas que poderiam levar dias e dias para acabar. “Hoje, a grande maioria dos games, por mais simples que seja, traz consigo uma estrutura narrativa complexa”, frisa.

Na Grécia antiga, os épicos eram narrados na forma de canções. A história jamais era contada da mesma maneira, porque seus narradores tinham de recorrer apenas à memória. A experiência desses novos videogames, de certo modo, remonta à tradição oral na cultura ocidental. Como a trama se renova a cada partida, na Antiguidade cada narrativa era uma experiência pessoal do ouvinte. Só não tinha “game over”.

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Alexandre Rodrigues, 47, é jornalista e escritor, autor de Veja se Você Responde Essa Pergunta (Não Editora).