Esculápio, o deus da Medicina, teve duas filhas: Higia (“saúde”, de onde vem “higiene”) e Panaceia, “a que tudo cura”.
O Marco Civil está em vigor há quase um ano. Há, entretanto, pontos a esclarecer, especificar ou, até, regulamentar. Essa complementação será feita por decreto mas, para isso, os diversos segmentos da sociedade são chamados a contribuir com idéias e sugestões.
Em “neutralidade da rede”, por exemplo, há espaço para a definição de possíveis exceções a ela. Para isso, o CGI (Comitê Gestor da Internet) e Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) serão ouvidos. Mas antes de procurar exceções, temos que voltar à essência do que estamos tratando. Um de meus temores pessoais, por exemplo, é que se tente usar o Marco Civil como uma panaceia para todos os males que nos afligem. Nunca é demais lembrar que ele surgiu para, mais do que “curar males”, evitar que surjam. Uma espécie de vacina para manter a saúde da internet.
Não espere do Marco Civil que resolva o problema da baixa inclusão na rede, que combata desequilíbrios econômicos, que promova o uso competitivo e socialmente adequado da internet. Para isso há leis e organismos específicos, que existem antes do Marco Civil e que agora atuarão em sinergia com ele, cada qual em sua esfera.
O que se busca com a neutralidade, então? A meu ver, queremos que a experiência total de rede esteja disponível a todos. Que se possa provar de tudo, como num imenso bufê, porque é dessa exposição que deriva o crescimento da rede, o surgimento de novos aplicativos, o ativismo da comunidade.
Missão precípua
A forma com que se chega à rede é um dos complicadores dessa discussão e afeta nossa experiência. Ligados de forma perene, em casa ou no trabalho, teremos disponível uma “capacidade”, uma bitola de cano que nos liga ao manancial da internet. Mas se a estivermos usando de forma móvel, via telefone, o que temos não é “bitola de cano”, mas “tamanho de balde”: a franquia.
De qualquer forma, seja no acesso fixo, seja no móvel, a neutralidade defende que nenhum destino nos seja vedado, nenhuma aplicação restringida ou tecnicamente privilegiada. A rede é rica e nela há serviços pagos e serviços grátis, mas esse não pode ser critério que privilegie ou obste tecnicamente um serviço. Se eu contrato uma franquia de “x” gigabytes, devo poder usá-la como quiser, até o último byte. Pode ser que alguns serviços, devido a acordos comerciais, não gastem minha franquia, e isso pode ter efeitos em áreas como a de competição ou a econômica mas, em meu entendimento, se o meu livre arbítrio em usar o que contratei estiver preservado, e se os “pacotes de dados” não forem priorizados, não perco neutralidade com isso. Penso, assim, que a discussão sobre bytes que gastam a franquia e outros que não gastam, cabe dentro de uma rede que não restringe o arbítrio do usuário, tecnicamente neutra. Poderia isso deformar o cenário competitivo e econômico? Pode ser.
Mesmo assim, não é missão do Marco Civil tratar desse aspecto. Se o sobrecarregarmos com nossos próprios projetos, poderá ser ineficiente para cuidar de sua missão específica! O Marco Civil serve muito mais a Higia do que a Panaceia.
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Demi Getschko é conselheiro do Comité Gestor da Internet e colunista do Estado de S.Paulo