Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bala de prata

Meu artigo “A cabeça da serpente”, na edição 836 deste Observatório da Imprensa, propondo a exclusão da internet do conteúdo dos jornais como porta de saída da crise mundial da mídia impressa, mereceu manifestação da Associação Nacional de Jornais por meio do seu assessor de comunicação, Carlos Muller: “Você resumiu bem a evolução da crise. Não creio, contudo, que a solução apontada, ainda que talvez a mais eficaz, seja factível. As associações de outros países buscam informações sobre a saída dos jornais brasileiros do Google News. Acham interessante, mas não conseguem consenso em torno disso em seus países. E isso é só em relação ao Google News. Os jornais afiliados à ANJ estão buscando outras vias com algum resultado. Uma delas é o paywall. Graças a ele, a audiência vem crescendo bastante e a receita digital também está em expansão, embora em menor medida.”

Como reconhece o próprio porta-voz da ANJ, a retirada do conteúdo dos jornais da internet talvez seja a solução “mais eficaz” para a crise. Então, por que os jornais não a adotam? Porque, desde a explosão da internet, os donos de jornais hesitam quanto ao que fazer, estão atordoados. Como acontece agora em vários países onde não há consenso sobre a simples saída de jornais do Google News. Obviamente, sair de um buscador não resolve o problema, se existem outros buscadores.

Quanto ao paywall, adotado por grandes jornais brasileiros a partir de 2012, começando pela Folha de S.Paulo e hoje já envolvendo O Globo, Estadão, Valor Econômico,Correio Braziliense, Estado de Minas, Zero Hora, Gazeta do Povo e outros, é um esforço louvável e justo, mas ao mesmo tempo contraditório e perigoso.

Louvável porque mostra que os jornais brasileiros não estão parados, mas mobilizados buscando solução e seguem o sistema de assinatura digital para acesso a conteúdos restritos, como forma para conquistar novos leitores diante da diminuição das tiragens impressas e para elevar suas receitas afetadas pela queda de publicidade impressa. Justo, porque os jornais não podem distribuir gratuitamente um conteúdo que é tão caro para produzir e porque é fundamental para os jornais que sua receita venha também dos usuários, e não apenas da publicidade.

Os desafios são enormes

Entretanto, é um esforço contraditório intencional e estrategicamente. Lançado pioneiramente, em 1997, pelo The Wall Street Journal (2,4 milhões de exemplares), maior diário dos Estados Unidos, mas popularizado a partir de 2011 pelo americano The New York Times (1,9 milhão) e pelo britânico Financial Times (320 mil), o paywall, objetivamente, fortalece a plataforma digital dos jornais, ampliando audiência e receita. Todavia, se os jornais querem sair da crise erram ao robustecer a Internet quando devem fragilizá-la retirando dela seus conteúdos. Pelo menos nos Estados Unidos, os números impressos estão caindo na mesma proporção do aumento dos números digitais.

Usando o paywall, como já fazem mais de 800 diários americanos e europeus, além de brasileiros, os jornais executam um movimento perigoso porque estão alimentando a gigantesca serpente que vem apertando e asfixiando os meios impressos no mundo inteiro. Os jornais são as principais atrações e, simultaneamente, as maiores vítimas da internet. Ou seja, os jornais são os maiores aliados da Internet contra si próprios. Quanto mais engordam sua dominadora e depredadora, mais ficam vulneráveis e fragilizados.

Mas, os jornais estão hipnotizados pela serpente e iludidos pela receita digital. The New York Times, por exemplo, tem atualmente uma tiragem diária de 1,9 milhão de exemplares, 800 mil assinantes impressos e 600 mil assinantes digitais. Parece razoável prever que, em futuro próximo, o NYTimes tenha mais circulação digital paga do que sua própria circulação impressa paga. E, mantida essa tendência, o prognóstico mais lógico para o futuro não muito distante é o fim da versão impressa.

Que o paywall aumenta a receita com conteúdo dos jornais, somando digital e impressa, que pode até ultrapassar a receita com publicidade, somando digital e impressa, é inquestionável. Mas também é inquestionável que o paywall é decisivo no canibalismo da versão impressa. Veja-se o caso do Financial Times, fundado em 1888 e presente em 160 países: com circulação diária de 320 mil exemplares e estimados 1,3 milhão de leitores, já tem 290 mil assinantes digitais. Como a circulação digital continua crescendo e a impressa caindo, muito breve a primeira ultrapassará a segunda.

Por tudo isso, chega-se fácil ao entendimento de que a expansão acelerada da versão digital é o caminho mais rápido para o fim da versão impressa dos jornais, para o fim dos jornais. De qualquer forma, como Carlos Muller encerra sua manifestação, “os desafios são enormes e ninguém parece ter a bala de prata” para acertar a cabeça da serpente.

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Jota Alcides é jornalista e escritor