Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Considerações científicas e políticas sobre a água

A maioria dos estudiosos defende a ideia de que a vida – ao menos como nós a conhecemos aqui na Terra – teria surgido na água. Há, no entanto, quem conteste esse ponto de vista, argumentando em defesa de outros tipos de substrato – e.g., blocos de argila (para detalhes, ver CAIRNS-SMITH 1982; para comentários em português, ver CAIRNS-SMITH 1986).

Qualquer que tenha sido o berço original da vida terrestre, uma coisa é certa: a água é a substância química mais abundante das células, o que significa dizer que é também a mais abundante do nosso corpo.

Propriedades químicas

Estamos tão habituados a tratar a água como um líquido insípido, inodoro e incolor, que muitos de nós a imaginamos como uma substância trivial. Longe disso: a água tem propriedades físicas e químicas excepcionais (para comentários e detalhes adicionais, ver VOET & VOET 2006), responsáveis em boa medida pelo papel fundamental que ela tem nos sistemas vivos.

Uma molécula de água consiste de um átomo de oxigênio ligado covalentemente a dois átomos de hidrogênio. Essa molécula tem uma geometria angular, na qual a ligação O-H tem um comprimento de 0,958 angstrom e o ângulo da ligação H-O-H é aproximadamente igual a 105°. A diferença de eletronegatividade entre o oxigênio e o hidrogênio – o O é mais eletronegativo, pois atrais mais fortemente para perto de si os elétrons da ligação covalente do que o H – dá a ligação O-H um caráter iônico, tornando a água uma molécula altamente polar (dipolo).

As atrações eletrostáticas entre os dipolos de duas moléculas de água tendem a resultar em uma associação intermolecular direcionada conhecida como ligação (ou ponte) de hidrogênio. Esse tipo de ligação explica várias propriedades incomuns da água e o seu papel como solvente universal.

Solubilidade é uma propriedade química que depende da capacidade que um solvente tem em interagir com um soluto de uma maneira mais forte do que as partículas de soluto têm em interagirem entre si. A água dissolve quantidades maiores de uma variedade mais ampla de substâncias do que outros solventes correlatos. A água é um solvente particularmente bom para substâncias iônicas ou para moléculas que contém grupos polares (carregados ionicamente), como é o caso de açúcares (–OH) e proteínas (–NH2).

A maioria das moléculas biológicas possui tanto porções polares como apolares, de tal modo que elas são simultaneamente hidrofílicas e hidrofóbicas. Moléculas desse tipo são chamadas de anfilíticas (do grego, anphi, ambos + lithos, amizade, afinidade). Quando mergulhadas em meio aquoso, moléculas anfilíticas, como íons de ácidos graxos (ver adiante), tendem a formar agregados moleculares altamente ordenados (micelas). Isso ocorre porque a água tende a hidratar a porção hidrofílica do soluto, ao mesmo tempo em que tende a excluir a porção hidrofóbica.

Propriedades físicas

As numerosas ligações de hidrogênio também resultam em propriedades físicas incomuns, como o elevado calor específico e o elevado calor latente de vaporização da água. Calor específico é o calor que deve ser fornecido para elevar em alguma quantidade a temperatura de uma substância. No caso da água, costuma-se falar no calor específico como a quantidade de calor necessário para elevar em um grau centígrado (de 14,5 para 15,5ºC) a temperatura de um litro dessa substância.

Calor latente de vaporização é a quantidade de energia necessária para separar as moléculas da fase líquida e levá-las para à fase gasosa a uma temperatura constante. De todos os líquidos conhecidos, a água tem o valor mais elevado: a 25ºC, seu calor de vaporização é de 44 kJ/mol.

Entre as propriedades mecânicas provocadas pelas ligações de hidrogênio, cabe aqui ressaltar a coesão, a atração mútua entre moléculas de água, e a adesão, a atração que moléculas de água têm por uma fase sólida. Tensão superficial é um fenômeno típico de interfaces líquido-gás, como é o caso da interface água-ar. Para entender esse conceito, devemos levar em conta que, na interface água-ar, as moléculas de água são mais fortemente atraídas por moléculas vizinhas do que pela fase gasosa. De modo geral, o que ocorre é o seguinte: moléculas no interior da fase líquida são atraídas por forças equivalentes em todas as direções, enquanto as moléculas que estão nas proximidades da superfície são atraídas para o interior da fase líquida por forças mais fortes do que as forças com que são atraídas para a fase gasosa.

As forças mencionadas no parágrafo anterior ajudam a entender uma série de fenômenos, alguns dos quais são bastante corriqueiros, como a lenta formação de uma gota na boca de uma torneira e a formação de gotículas quando derramamos água em uma superfície sólida. Em ambos os casos, temos a impressão de que a superfície da água está sob tensão, envolvida por uma “membrana contrátil”. Cabe registrar que essas mesmas forças operam em diversos contextos biológicos, como durante o transporte de fluidos (e.g., sangue ou seiva vegetal) no interior de vasos (e.g., artérias e vasos lenhosos).

Origem e distribuição da água

Há controvérsias a respeito da origem da água presente em nosso planeta. Alguns estudiosos acreditam que o volume encontrado hoje é o resultado de uma série de “bombardeios” ocorridos ao longo de milhões de anos – corpos celestes contendo água (e.g., cometas), ao se chocarem contra a Terra, deixaram aqui o seu conteúdo, aumentando assim gradativamente a quantidade total presente. Outros autores, no entanto, defendem a ideia de que toda a água encontrada hoje estava aqui mais ou menos desde os primórdios da formação do planeta.

A recente descoberta de rochas ricas em água no interior da Terra (ver PEARSON et al. 2014) parece ter feito a balança da controvérsia pender mais claramente para o lado dos defensores do segundo ponto de vista. Essa mesma descoberta colocou em xeque a crença de que toda a água presente em nosso planeta estaria ou na superfície ou em suas proximidades (i.e., em depósitos subterrâneos relativamente pouco profundos). A partir de agora, essa hipótese deverá se restringir apenas aos depósitos de água líquida.

Medições cuidadosas indicam que a área superficial do planeta chega a uns 510 milhões km2. Desse total, 70,8% (~ 361 milhões km2) estão cobertos de água, enquanto as terras emersas ocupam os 29,2% restantes (~ 149 milhões km2). A proporção entre terras emersas e oceanos varia entre os hemisférios. Há, por exemplo, maior concentração de terras emersas no hemisfério Norte, uma diferença que tem diversas implicações importantes, principalmente em termos climáticos e biogeográficos. As oscilações sazonais na temperatura do ar, por exemplo, tendem a ser mais pronunciadas no hemisfério Norte do que no Sul – i.e., uma localidade situada no hemisfério Norte tende a ter invernos mais frios e verões mais quentes que uma localidade situada no hemisfério Sul, na mesma latitude.

Fome e sede

Todos nós sabemos, por experiência própria, que o consumo de alimentos é uma atividade indispensável para a sobrevivência individual. O que nem sempre nos damos conta é que a ingestão de água é uma atividade ainda mais crítica. Eis um paralelo entre a ingestão de alimentos e a hidratação do corpo (ASHCROFT 2001, p. 137 e 140):

“Assim como a comida é a chave para a sobrevivência no frio, a água é o fator limitante para a vida no calor. A capacidade de refrigeração pelo suor copioso depende da disponibilidade de água e a principal dificuldade na vida no deserto não é o calor, mas a aridez. Se as pessoas podem passar muitos dias sem comida, elas não sobrevivem muito tempo sem água. […]

Quando não se repõe a água perdida no suor através da ingestão de líquidos, a desidratação ocorre. Isso estimula a secreção de hormônios que atuam ao mesmo tempo para conservar a água, reduzindo a quantidade perdida na urina, e para aumentar a ingestão de água, fazendo a pessoa sentir sede. […] A maioria das pessoas pode tolerar um decréscimo de 3 a 4% da água do corpo sem dificuldade. Fadiga e tonteira ocorrem quando se perdem 5-8%, ao passo que uma perda de mais de 10% causa deterioração física e mental, acompanhada de sede severa. Perdas de mais de 15-25% da água do corpo são invariavelmente fatais. […]

Quando estamos muito ativos, perdemos mais água do que consumimos espontaneamente. Simplesmente não tomamos água o bastante para evitar a desidratação e podemos ficar incapacitados por falta de água sem sentirmos uma sede intolerável. Somente quando estamos descansados e alimentados tomamos água suficiente para repor a que se perdeu no suor. Quando se faz exercício num clima quente, é necessário, portanto, beber água, mesmo sem sentir sede. Se a água for escassa, no entanto, a melhor estratégia é parar a atividade e ficar sentado quieto à sombra.”

De quanta água precisamos?

O consumo mundial de água aumentou muito nas últimas décadas. Todavia, a exemplo do que aconteceu com o consumo de energia elétrica, o fenômeno pouco teve a ver com o crescimento vegetativo da população, podendo ser atribuído majoritariamente à elevação nas taxas per capita de consumo. Esta elevação no consumo per capita, por sua vez, pouco ou nada teve a ver com o atendimento de necessidades básicas.

Frente ao crescimento mundial nos níveis de consumo, tornou-se relativamente comum ouvir apelos do tipo “vamos poupar” ou “vamos preservar a água”. É raro, porém, que alguém aponte valores concretos em torno do qual possamos pensar e contextualizar os nossos hábitos. Afinal, de quanta água precisamos para suprir as nossas demandas diárias? Eis um comentário a respeito dessa questão (PIMM 2005. p. 131):

“De quanta água precisamos? Peter Gleick, um cientista do Instituto do Pacífico para Estudos sobre Desenvolvimento, Ambiente e Segurança [Pacific Institute for Studies in Development, Environment, and Security], em Oakland, Califórnia (EUA), chegou a um valor de 50 litros por pessoa por dia. Isso se refere apenas ao uso pessoal – não inclui o volume extra, necessário para a produção de alimento ou para a indústria. Isso chega a 18 toneladas de água por pessoa por ano.

Apenas 10 por cento dessa cota de 50 L são necessários para o consumo direto em países de clima quente, bem menos nos de clima frio. Para cozinhar e outros usos na cozinha, Gleick sugere outros 10 L, mais 15 para o banho e os 20 restantes para a descarga de resíduos humanos. Ele prossegue, sugerindo que 50 L deveriam ser uma necessidade hídrica básica, um mínimo que deveria ser considerado um direito humano, um direito reconhecido a priori e não um direito a ser barganhado em discussões sobre quem deve ter acesso a essa ou aquela fonte de água.

A título de comparação, o californiano médio usa mais de 10 vezes essa cota diária, são mais de 120 litros que vão pela descarga, 100 no chuveiro, 130 na lavadora e na cozinha e quase 200 para deixar o gramado verde e fazer o jardim crescer. Os valores para a Holanda e a Suécia, que estão entre os países de maior consciência ecológica, estão entre 100 e 200 L por pessoa por dia.

Cerca de um bilhão de pessoas vivem em países onde o uso médio de água é inferior aos 50 litros. A maioria delas está na África. Muitas pessoas cujo consumo médio é inferior à cota mínima vivem em países como a África do Sul, onde alguns têm muito mais que 50 L e outros têm muito menos. China e Índia, por exemplo, têm um consumo médio um pouco acima de 50 litros: na melhor das hipóteses, metade da população desses países populosos não tem acesso à quantidade mínima de água necessária.”

Enfrentando a escassez

A questão da escassez ou mesmo da falta de água tende a se tornar um problema crônico nos grandes centros urbanos, principalmente em regiões ou países politicamente atrasados, onde medidas visando os bens comuns demoram a ser implementadas ou simplesmente não são adotadas. Eis um comentário sobre a escassez e a falta de água (POSTEL 1993, p. 47-63):

“A escassez da água, caracteristicamente, invoca visões de seca, os períodos secos que a natureza impõe de tempos em tempos. Mas, enquanto as secas tomam o espaço das manchetes dos jornais e prendem nossa atenção, a ameaça muito maior representada pelo nosso consumo crescente de água continua, em grande medida, passando despercebida.

Sinais de esgotamento dos recursos hídricos são abundantes. Lençóis freáticos estão declinando, lagos estão minguando e as terras inundáveis desaparecem. Engenheiros se propõem ‘resolver’ os problemas hídricos construindo esquemas cada vez mais gigantescos de desvios de rios, a preços exorbitantes e com efeitos ambientais nocivos. Nos arredores de Pequim, de Nova Deli, de Phoenix e de outras cidades carentes de água está fermentando uma competição entre os moradores urbanos e os agricultores que reivindicam o mesmo suprimento limitado. E as populações do Oriente Médio têm escutado mais de um de seus líderes bradar sobre a possibilidade de guerra em consequência da escassez de água. […]

Um dos mais nítidos sinais de escassez de água é o número cada vez maior de países nos quais a população ultrapassou o nível de vida que pode ser sustentado confortavelmente com a água disponível. Como regra prática, os hidrologistas definam países com esgotamento hídrico aqueles cujos suprimentos anuais situam-se em mil e dois mil metros cúbicos por pessoa. Quando a cifra cai abaixo de mil metros cúbicos […], as nações são consideradas escassas em água – isto é, a carência de água torna-se uma grave restrição à produção de alimentos, ao desenvolvimento econômico e à proteção dos sistemas naturais. […]

Com a agricultura reivindicando dois terços de toda a água removida de rios, de lagos, de riachos e dos depósitos de água subterrânea, tornar a irrigação mais eficiente é prioridade máxima do movimento em direção a um uso mais sustentável da água. […] Reduzir as necessidades de irrigação em cerca de um décimo, por exemplo, liberaria água suficiente para quase duplicar o uso doméstico de água em todo o mundo. […]

A fabricação de inúmeros produtos que usamos em nossa vida diária – desde roupas e computadores até papel, plásticos e televisores – exige copiosas quantidades de água. A produção de um quilo de papel pode chegar a exigir 700 quilos de água. E a fabricação de uma tonelada de aço pode demandar 280 toneladas de água. […]

Casas, apartamentos, pequenos negócios e outras empresas urbanas respondem por menos de um décimo do uso total de água em todo o mundo. Mas suas demandas são concentradas em áreas geográficas relativamente pequenas e, em muitos casos, avolumam-se rapidamente. À medida que as cidades se expandem, elas sujeitam a forte tensão à capacidade das massas de água locais e forçam os técnicos a recorrer a fontes cada vez mais distantes.

Além disso, os reservatórios, os canais, as estações de bombeamento, os encanamentos, os esgotos e as instalações de tratamento que constituem um moderno sistema de saneamento e de tratamento de água usada requerem enormes somas de dinheiro para ser construídos e mantidos. A coleta e o tratamento da água primária e da usada também requerem grandes quantidades de energia e de produtos químicos, aumentando a poluição do meio ambiente e os custos globais do sistema hídrico de uma comunidade. Sujeitas a tais embaraços, muitas cidades estão tendo dificuldades para satisfazer as necessidades de água de habitantes, e grande número de famílias de baixa renda nos países em desenvolvimento não têm acesso a nenhum serviço de água.”

Fontes de água contaminadas

Outro problema grave que ameaça os corpos de água (rios, lagos, reservatórios etc.) é a contaminação. Não é raro que esse problema seja promovido pelos próprios consumidores (inadvertidamente ou não), como acontece quando o esgoto doméstico é despejado no mesmo lugar de onde se retira água para consumo; na maioria das vezes, porém, a contaminação mais perigosa (e.g., presença de metais pesados) costuma vir de longe. Eis um comentário sobre o problema (GARRETT 1995, p. 201):

“À medida que o século 20 se aproxima do fim, a maioria da população mundial ainda sofre e morre de doenças devido à água suja. Durante os anos [1970], uma entre quatro pessoa na Terra foi acometida por doenças devido a nematelmintos, adquirido em águas ou alimentos poluídos. Um estudo do Banco Mundial concluiu que 85 por cento dos residentes de Java tinha ancilostomíase. Cerca de 1 bilhão e 700 milhões de pessoas anualmente contraíam alguma outra infecção parasitária por causa de água poluída, de acordo com a OMS.

Às vezes, um grande projeto para desenvolvimento na área de recursos hídricos podia aumentar diretamente a incidência de doenças por mudar a ecologia local e, assim, favorecer os micróbios. O exemplo mais comumente citado era a barragem Assuã, cuja construção aparentemente estava associada ao aumento de incidência da esquistossomose.

Os esquistossomos são organismos parasitários que têm um complexo ciclo vital, no qual, em diferentes fases de desenvolvimento, crescem dentro de caramujos, na superfície de plantas de água doce e dentro de seres humanos. Seus ovos são excretados nas fezes humanas em locais de fornecimento de água e levados por caramujos para as margens de rios e lagoas. Dentro dos caramujos, os organismos passam para a fase de larva. Essas larvas são excretadas pelos caramujos e voltam ao lago ou rio, onde se depositam em caules e folhas de plantas subaquáticas, geralmente ao longo das margens. Pessoas que se banham ou trabalham nessas áreas, caso rocem nessas plantas, estão sujeitas a ter a corrente sanguínea prontamente invadida pelas larvas, através da pele.

Dependendo de qual espécie de esquistossomo (Schistosoma japonicum, S. haematobium, S. mekongi, S. mansoni ou S. intercalatum) infectou o homem, as larvas podem chegar ao fígado, baço, trato urinário, rins, reto ou cólon do hospedeiro humano, onde se transformam em vermes. Estes podem permanecer indefinidamente produzindo seus ovos, os quais o homem passa então para os locais de fornecimento de água, repetindo o ciclo.

Os vermes podem provocar uma enorme variedade de doenças nas pessoas, desde pequenas infecções cutâneas e discreta fadiga, que pode passar despercebida, a doença cardíaca com risco de morte, epilepsia, insuficiência renal e câncer maligno nos órgãos onde se abrigam. Por serem muitos diversos os sintomas, é virtualmente impossível dizer com certeza quantos indivíduos em uma área endêmica têm esquistossomose.”

Aral: tragédia anunciada

Apesar de todas as intervenções humanas, a paisagem natural da superfície do planeta ainda é dominada pela presença de seres vivos – e.g., florestas, campos, barreiras de coral ou mesmo áreas de cultivo agrícola. O problema é que o destino e o bom funcionamento dos sistemas ecológicos, cujos “bens e serviços” sustentam toda a vida na Terra, estão nas mãos – como nunca estiveram antes – de uma única espécie: a nossa.

Sabendo disso, cabe ressaltar que a grande maioria dos problemas que resultam em escassez ou contaminação de corpos d’água é fruto de ações humanas, muitas vezes deliberadas e tendo como fundamento a adoção de tecnologias tidas até então como eficazes e corretas. O caso do mar do Aral ilustra bem o que pode acontecer quando o autoritarismo político dos governantes é amparado pela soberba técnica de alguns burocratas (sobre o impacto de grandes obras, ver MÜLLER-PLANTENBERG & AB’SABER 1994).

O chamado mar de Aral – na verdade, um enorme lago interior – já foi o quarto maior lago de água doce do mundo, menor apenas que o mar Cáspio, o lago Superior e o lago Vitória. Situado na Ásia Central, entre o Uzbequistão e o Cazaquistão, o Aral chegou a ocupar quase 70 mil quilômetros quadrados de área (superior à soma do território ocupado pelos estados do Rio de Janeiro e de Sergipe).

O processo de destruição do lago foi fruto do tipo de “planejamento” que prosperava na antiga União Soviética. A burocracia governamental, ignorando a opinião de cientistas que alertavam para as consequências desastrosas do empreendimento, decidiu que as águas dos rios que alimentavam o Aral (rios Amudar’ya e Syrdar’ya) poderiam ser mais bem aproveitadas se fossem desviadas para irrigar a agricultura. E a engenharia soviética entrou em ação…

Com mais de 90% de sua recarga natural comprometida, o Aral logo começou a secar: o nível do lago baixou, o volume armazenado diminuiu e as margens recuaram. Em 1987, o nível do lago já havia baixado 13 m, o volume em dois terços e a área ocupada em cerca 27 mil quilômetros quadrados, tudo isso em relação a valores correspondentes registrados na década de 1960.

O fundo exposto do lago estava coberto de sal e o grau de salinidade da água que havia sobrado triplicou. Muitos peixes desapareceram e com eles boa parte da fauna associada. Milhares de pescadores perderam sua fonte de renda e comida. Tempestades de areia e sal tornaram-se frequentes. O clima mudou. A poeira suspensa no ar e a péssima qualidade da água (salobra e contaminada por fertilizantes e venenos químicos utilizados nas lavouras) aumentaram a incidência de doenças, particularmente entre as crianças.

Por fim, a própria lavoura de algodão – razão pela qual a burocracia soviética decidiu desviar o curso dos rios que alimentavam o Aral – começou a sofrer: as mudanças climáticas ocorridas na região encurtaram a estação de crescimento, a tal ponto que a cultura deixou de prosperar em diversas áreas próximas ao lago. Essas áreas foram abandonadas e o abandono da cultura de algodão, embora talvez ainda não seja o capítulo final, não deixa de ser um lado triste e irônico de toda essa história.

Coda

A diminuição no nível da água dividiu em dois o que antes era um único lago. Em 1987, já se falava em Pequeno Aral, ao norte, e Grande Aral, ao sul. Em seguida, o Grande Aral começou a se separar em duas porções, a do leste (maior) e a do oeste (menor). O processo de fragmentação transformou o imponente mar de Aral em uma série de lagos desconectados, cada vez mais rasos, menos volumosos e menores – a desconexão, por si só, acelera a perda de água. Em 2014, a porção leste secou completamente (ver matéria “Aral Sea’s Eastern basin is dry for first time in 600 years”, de Brian Clark Howard, publicada no sítio da revista National Geographic, em 1/10/2014). O processo continua e aquele que já foi um “mar interior” está a caminho de se converter em uma irrisória coleção de “poças mortas”, isoladas e perdidas em meio a uma paisagem hostil.

Não temos mares interiores no Brasil, mas temos rios, florestas e reservatórios de água experimentando um processo de degradação bem parecido. No âmbito da dinâmica natural desses sistemas, talvez pudéssemos afirmar o seguinte: depois que a degradação ultrapassa um determinado limiar mínimo (e.g., o volume de areia acumulada no fundo de um rio, o número de espécies perdidas em uma floresta ou o nível de água armazenada em um reservatório), o processo tende a prosseguir por conta própria e a um ritmo cada vez mais rápido, de tal modo que as tentativas de freá-lo e revertê-lo têm chances cada vez menores de sucesso.

É possível, portanto, que os paulistanos (ver, neste Observatório, o artigo “Água, do racionamento ao desgoverno”) estejam presenciando hoje os últimos dias de alguns dos seus reservatórios. É bem pouco provável, no entanto, que isso venha a significar um colapso no abastecimento de água. Ocorre que, visando à normalização do abastecimento, os governantes provavelmente terão de alocar um volume de recursos bem superior ao que seria necessário para evitar (preventivamente) que o sistema ou partes dele entrasse em processo de degradação. Tome nota: a omissão política, assim como a imperícia técnica, tem um preço e, cedo ou tarde, todos nós teremos de pagá-lo. (A boa notícia é que se conseguirmos afastar os governantes omissos e os técnicos imperitos, talvez nós só tenhamos de arcar com uma única restauração.)

Referências citadas

** ASHCROFT, F. 2001. A vida no limite. RJ, Jorge Zahar.

** CAIRNS-SMITH, AG. 1982. Genetic takeover and the mineral origins of life. Cambridge, Cambridge UP.

** –––. 1986. Sete pistas para a origem da vida. Lisboa, Editorial Presença.

** GARRETT, L. 1995. A próxima peste. RJ, Nova Fronteira.

** MÜLLER-PLANTENBERG, C & AB’SABER, AN, orgs. 1994. Previsão de impactos: O estudo de impacto ambiental no Leste, Oeste e Sul. Experiências no Brasil, na Rússia e na Alemanha. SP, Edusp.

** PEARSON DG & outros 11 coautores. 2014. Hydrous mantle transition zone indicated by ringwoodite included with diamond. Nature 507: 221-4.

** PIMM, S. 2005. Terras da Terra. Londrina, Planta.

** POSTEL, S. 1993. Enfrentando a escassez de água. In: Brown, LR, org. Qualidade de vida, 1993: Salve o planeta! SP, Globo.

** VOET, D & VOET, JG. 2006. Bioquímica, 3ª edição. Porto Alegre, Artmed.

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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor, autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2ª edição, 2014)