Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Somos todos figurantes?

Cada vez que jihadistas islâmicos divulgam na internet o vídeo de sua mais recente atrocidade, a mídia se vê diante de um dilema: cabe aos meios de comunicação o papel de mensageiros da barbárie? O quanto essa informação é essencial e devida a seus leitores, telespectadores, usuários da versão online? Ou trata-se apenas de material tóxico friamente calibrado para que nos tornemos todos cúmplices do macabro espetáculo encenado por terroristas?

O dilema não é novo, até porque o fascínio do ser humano por tragédias da vida real parece ser insaciável. Mudaram apenas os atores. Em obra intitulada “Severed: a history of heads lost and heads found” (em tradução livre, “Decapitado: história de cabeças perdidas e achadas”), a antropóloga americana Frances Larson faz uma oportuna incursão em tema mais do que atual.

Ao longo de séculos, o cadafalso foi o palco por excelência onde vida e morte eram encenados pra valer, escreve Larson. A ponto de Edmund Burke ter observado, em meados do século 18, que o público de uma peça teatral trágica sempre sairia correndo da sala se pudesse assistir a uma execução real em praça pública. “Hoje”, diz a autora, “a internet nos permite assistir às execuções mais macabras como se estivéssemos sentados nas primeiras fileiras”.

No passado, eram essencialmente os criminosos que tinham as cabeças decepadas. Hoje, são criminosos que decapitam, fuzilam e imolam inocentes da forma mais espetaculosa possível. A escalada da brutalidade e a dimensão do dilema da mídia só têm aumentado desde a resposta do Ocidente ao atentado do 11 de setembro.

Em 2002, quando o repórter do “Wall Street Journal” Daniel Pearl foi feito refém no Paquistão e o vídeo de sua decapitação começou a circular na internet, apenas um semanário de Boston forneceu a seus leitores o link de acesso à cena ao vivo. Foi ruidosamente criticado. Dois anos mais tarde, a agência noticiosa Reuters colocava no ar a íntegra do vídeo da execução do segundo refém americano, o engenheiro Nick Berg. Causou barulho menor.

Paralelamente, o site do grupo terrorista al-Qaeda, primeiro a veicular as imagens da decapitação de Berg, teve de ser fechado pela empresa da Malásia que o abrigara – não por pruridos humanitários, mas por excesso de tráfego. O vídeo da execução liderou a lista dos tópicos mais procurados no Google, Lycos e Yahoo durante uma semana inteira, à frente de “American idol”.

Notícia conveniente

Com o tempo, também a grande imprensa e as redes noticiosas de televisão passaram a veicular algumas cenas editadas de novas execuções. Mas se abstinham de incluir o desfecho, deixando que hordas de internautas satisfizessem a curiosidade caçando o link certo na privacidade de suas casas.

Esta semana o dique foi rompido. A Fox News, canal noticioso de maior audiência nos Estados Unidos, exibe em sua página na internet a íntegra do vídeo da execução mais sádica já perpetrada pelo grupo Estado Islâmico – a do piloto jordaniano Muadh al-Kasabeh. Seu caça F-16 caíra em território sírio controlado pelos jihadistas do EI e na terça-feira ele foi queimado vivo, enclausurado numa jaula de ferro.

 “O fato de podermos dar às pessoas a opção de verificar por conta própria a barbárie do EI nos pareceu mais forte do que as legítimas objeções à natureza gráfica do vídeo”, declarou o editor-executivo da Fox, John Moody, justificando a decisão da empresa. Foi a primeira vez que o canal, fortemente alinhado com a direita, deixou de levar em consideração o impacto das imagens sobre a família, amigos, colegas, opinião pública no país da vítima. Coincidência ou não, desta vez o refém não era americano.

A perplexidade dos especialistas não foi pequena. “É exatamente o que o EI queria. Esses grupos precisam de uma plataforma. Precisam da mídia para disseminar o terror (…), aterrorizar as mentes das pessoas globalmente”, sustenta o diretor do instituto Terror Asymmetrics Project on Strategy, Tactics and Radical Ideology, ouvido pelo diário “The Guardian”.

Desta vez conseguiram o impacto emocional desejado, embora com desdobramentos políticos e militares talvez indigestos.

O vídeo definido por um membro do governo da Jordânia como “pornografia em alta definição” é quase um média-metragem: tem 22 minutos de duração. Foi realizado com esmero cinematográfico.

Tem roteiro, faz uso de mais de duas câmeras, funde efeitos especiais com cenas reais, alterna planos abertos e fechados, slow motion e travellings, som direto e efeitos sonoros, insere cartelas, mapas Google, sequencias em cor e preto e branco.

Tudo é minuciosamente encenado, com todos os participantes desempenhando um papel. Inclusive a vítima. Coube ao refém fazer a narração detalhada de sua missão de bombardeio, desde a decolagem de uma base aérea na Jordânia até a queda do F-16 perto de Raqqah, quando Muadh se ejetou do avião, caiu no Rio Eufrates e foi capturado.

A locação de sua execução foi escolhida a dedo: entre as ruínas dos prédios que ele e sua esquadrilha teriam bombardeado. Com flashes de bebês e adultos calcinados, o piloto é filmado perambulando entre os escombros como que a refletir sobre seu destino.

A execução pelo fogo só começa no 18º minuto. Ela dura 180 intermináveis segundos e não merece ser descrita.

Ao final, um texto em árabe e inglês oferece uma recompensa de 100 dinares de ouro (perto de R$ 55 mil) para quem matar algum dos pilotos da missão de Muadh, cujos nomes, fotos e endereços são listados.

Para atingir seu potencial máximo, o espetáculo terrorista conta com nossa participação – seja como figurantes movidos pela curiosidade, seja como divulgadores do horror. Não faltarão novos testes de elenco. Segundo fontes de inteligência dos Estados Unidos, ainda há perto de 20 reféns estrangeiros em mãos do Estado Islâmico.

Na sexta-feira [6/2], os jihadistas espalharam a notícia conveniente (para eles) de que um dos bombardeios jordanianos destinados a vingar o piloto imolado teria causado a morte da agente humanitária Kayla Mueller, americana de 26 anos, capturada 18 meses atrás.

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Dorrit Harazim é jornalista