O Egito nunca foi reconhecido como um país que prima pela liberdade de expressão. Após sucessivas trocas de poder nos últimos três anos, a situação parece ter deteriorado, e hoje ele é considerado um dos piores lugares para a prática do jornalismo livre.
Neste cenário foi criado, em 2013, o site Mada Masr. Fundado poucos dias antes do golpe militar que retirou do poder o presidente Mohamed Morsi, a página tenta se manter como uma das poucas vozes independente no país. Sua idealizadora, a jornalista Lina Attalah, tem como objetivo fazer dela uma voz neutra na imprensa egípcia.
Filha de um policial e de uma tradutora, Lina Attalah foi criada em uma família conservadora. O ambiente familiar, porém, não a impediu de se tornar uma ativista e jornalista crítica aos costumes tradicionais de seu país.
Após muito esforço de amigos, o Mada Masr entrou no ar nas primeiras horas da manhã do dia 30 de junho de 2013, no dia que uma grande manifestação foi às ruas do Cairo exigindo a renúncia do presidente Mohamed Morsi. Segundo Lina, que também atua como editora-chefe, era primordial que o site já estivesse em funcionamento naquele momento histórico para o país. “Eu queria que todo mundo fosse jornalista naquele dia”, diz.
A página foi criada às pressas, sem um plano de negócios definido e nenhum aporte financeiro previsto; no início, a maior parte da equipe do Mada Masr era composta por jovens com média de idade de 25 anos, boa parte ex-funcionários do jornal Egypt Independent, que havia sido fechado dois meses antes.
O projeto enfrentou uma série de dificuldades, principalmente por estar num país em que a maior parte dos veículos de comunicação ou é controlado pelo governo ou por grandes conglomerados. A ideia de Lina era que o Mada Masr produzisse matérias em inglês e árabe, e o dinheiro viria da publicidade online. Outro fator que mais à frente seria um complicador no trabalho do site foi a decisão de que ele funcionaria como uma democracia.
Pelo menos 186 leis
Não existe um sistema oficial de censura no Egito, mas o governo tem conseguido controlar a mídia local. Um estudo da Unesco descobriu que existem pelo menos 186 leis para restringir a liberdade de expressão e de imprensa no país. Como o governo é dono da maior parte das empresas de impressão e distribuição, pode impedir a publicação de um artigo ou retirar das bancas uma edição de jornal. Por outro lado, as empresas privadas de comunicação evitam ser críticas às autoridades para que seu negócio não sofra retaliações.
Além desse controle sobre os veículos, o país é um dos que mais reprimem a imprensa. Atualmente, pelo menos 12 jornalistas estão presos e os poucos jornalistas independentes que continuam a trabalhar no país se veem obrigados, muitas vezes, a praticar a autocensura para não ser presos ou para evitar que seu veículo sofra algum tipo de repressão.
Instabilidade política
Logo no primeiro mês de funcionamento do Mada Masr, na manhã do dia 8 de julho de 2013, cinco dias após o Exército ter deposto o presidente Mohamed Morsi, forças do governo atacaram com bombas de gás e munição pesada manifestantes pró-Morsi que acampavam em frente a um quartel da Guarda Republicana. Sessenta e uma pessoas morreram e 435 ficaram feridas. Os veículos locais, no dia seguinte, publicaram uma versão diferente dos acontecimentos, reportando que terroristas da Irmandade Muçulmana atacaram as forças do governo com armas, o que obrigou o Exército a se defender. Já a Irmandade Muçulmana publicou fotos de supostas vítimas do conflito que, na verdade, haviam sido tiradas na Síria. O Mada Masr foi um dos poucos veículos que reportaram a história de acordo com o que seus jornalistas tinham acompanhado in loco, sem interferência de terceiros.
“Quando os dois lados estão tentando manipular a verdade, eu quero que a gente reporte os eventos à medida que eles aconteçam. Eu quero que nós, no futuro, daqui a muitos anos, sejamos a referência sobre o que aconteceu aqui”, diz Lina.
Após a queda de Morsi, cerca de 2.500 egípcios foram mortos e 18.000 presos. A imprensa do país, no entanto, tem reportado esses números como algo necessário na “guerra contra o terror”. O Mada Masr tem sido uma das poucas vozes independentes, porém, muitas vezes, até mesmo o site se vê obrigado a cometer autocensura para não ser reprimido ou para não perder leitores – como evitar escrever matérias que possam ser interpretadas como pró-Irmandade Muçulmana. “Para a nossa própria credibilidade, é importante ser visto como um jornal independente”, explica a fundadora.
Um exemplo de autocensura ocorreu quando um repórter do site, Mohamad Adam, teve que ir a uma corte militar e presenciou pessoas sendo julgadas em casos militares. Ele conversou com a editora-chefe sobre escrever um artigo sobre a experiência, mas os dois decidiram não levar a pauta adiante porque não valia a pena arriscar se indispor com um órgão de segurança por uma história que não era tão importante. “Eu iria para a cadeia por uma pauta, mas não por esta”, diz Adam.
Desde a sua fundação, o site tem passado por diversas dificuldades para continuar reportando sobre a situação do país. Em agosto de 2013, Lina e Adam foram cobrir um protesto da Irmandade Muçulmana perto da mesquita Rabaa al-Adawiya, no Cairo. Após terem presenciado a morte de diversas pessoas pela polícia, inclusive uma repórter amiga de Adam, os dois foram até um hospital que estava recebendo os feridos. Ao sair, tiveram que passar em meio ao fogo cruzado. Após o ocorrido, devido ao trauma, Adam não conseguiu escrever mais nada durante dois meses.
No fim de 2013, o site ficou semanas sem nenhuma matéria nova. A equipe estava traumatizada demais para produzir algo. Para resolver essa questão, os funcionários do Mada Masr se reuniram e, no sistema democrático que foi instituído na publicação, decidiram que a cada dia uma pessoa iria escrever uma matéria para alimentar o site. Decisão essa tomada sem a presença de Lina.
Quando a democracia atrapalha
Porém, algumas vezes a equipe tinha a sensação de que um dos problemas do site era o excesso de democracia na tomada de decisões. Após ter promovido Mohamad Adam para o posto de editor da versão árabe, Lina tentou demovê-lo do cargo. O editor, porém, argumentou que, no sistema democrático de funcionamento do Mada, ela não poderia tomar uma decisão dessas sem consultar o resto da equipe. A situação se resolveu apenas após o editor concordar em se ausentar do trabalho por um tempo. Porém, como ainda havia uma resistência da equipe em aceitá-lo de volta, ele não voltou mais ao site.
Atualmente, os repórteres do Mada Masr raramente cobrem manifestações: o risco de ser baleado ou preso é muito alto. Uma das maiores preocupações dos jornalistas do site é saber quando irão sofrer alguma repressão das autoridades egípcias pelo conteúdo produzido. Certa vez, uma repórter de política, ao entrevistar um porta-voz do Exército, declinou a se identificar como jornalista do Mada Masr para não colocar o veículo no “radar” das autoridades. Porém, de acordo com o repórter Mai Shams El-Din, “nós tomamos a decisão de existir nesse momento perigoso. Se nós tomamos esse passo tão perigoso, agora nós temos que seguir em frente”.