Qualquer um que dedicar algum tempo a examinar se as emissoras ditas comunitárias realmente o são, constatará que a grande maioria delas está ainda muito longe desta condição.
A causa disto é o fato do Estado brasileiro não possuir interesse algum em fazer com que isto aconteça, já que tal confusão no setor beneficia os senhores da nação, os financiadores de campanha dos políticos eleitos, com raras exceções.
Com os milhares de pedidos de autorização para funcionamento mofando no Ministério das Comunicações, vem a desobediência civil e a operação ilegal das emissoras. Assim, justifica também a perseguição contra elas, através de um sistema judiciário corrupto em parceria com os donos da mídia e com a Anatel – Agência Nacional de Telecomunicações [ver aqui].
Não há vontade política para autorizar as rádios comunitárias (RadCom) a funcionar legalmente e nem em colocar televisões comunitárias no sinal aberto. Quem manda no Ministério das Comunicações e na Anatel são os próprios empresários da mídia, que ela deveria fiscalizar. Ou os políticos e prepostos que os representam… [ver ‘Rádios `piratas´: o que a Band esconde?‘]
Protecionismo interesseiro
Após um decreto extremamente atrasado, a instalação da Comissão Organizadora da Confecom – Conferência Nacional de Comunicação continua cozinhando em banho-maria, nos porões da ditadura da mídia, da política e do poder econômico.
Os empresários do setor já asseguraram seu domínio completo da Comissão Organizadora, tanto através de seus representantes diretos, quanto através do Estado por eles privatizado.
Para os movimentos sociais, trata-se de uma armadilha engatilhada para aniquilar sua limitada e fraca capacidade de organização. Afinal, os poderosos não brincam em serviço e se antecipam a qualquer possibilidade de ter interesses prejudicados. Numa sociedade conservadora, alienada e mantida na ignorância para este fim, tudo é muito fácil!
Mesmo diante deste cenário desolador, vamos exercitar uma proposta para avaliarmos nossas emissoras comunitárias.
Quem se interessar pelo assunto e fizer análise profunda nos vinte e sete artigos que compõem a Lei 9.612/98, cujo escopo é instituir o serviço de radiodifusão comunitária, e nos quarenta e três que o regulamentam, ao final, chegará à conclusão de que são provas – e vergonhosas – do que é legislar com protecionismo interesseiro e descarado em prol de uma plêiade de privilegiados, que possui raízes no Congresso, em detrimento de outras pessoas que, porventura, se interessarem por rádio não-comercial. Ou seja, comunitária [ver aqui].
Idéias, propostas, reivindicações
A legislação que regulamenta as rádios comunitárias, com vários fatores que demonstram o propósito do Legislativo em limitar absurdamente a existência desta forma de comunicação popular, tem um artigo que trata do Conselho Comunitário para administrar a associação que a mantém, o qual se tornou uma unanimidade no setor. Lamentavelmente não é cumprido em quase todos os casos!
Lei nº 9612/1998 – Institui o Serviço de Radiodifusão Comunitária e dá outras providências:
‘Art. 8º A entidade autorizada a explorar o Serviço deverá instituir um Conselho Comunitário, composto por no mínimo cinco pessoas representantes de entidades da comunidade local, tais como associações de classe, beneméritas, religiosas ou de moradores, desde que legalmente instituídas, com o objetivo de acompanhar a programação da emissora, com vista ao atendimento do interesse exclusivo da comunidade e dos princípios estabelecidos no art. 4º desta Lei.
Art. 4º As emissoras do Serviço de Radiodifusão Comunitária atenderão, em sua programação, aos seguintes princípios:
I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas em benefício do desenvolvimento geral da comunidade;
II – promoção das atividades artísticas e jornalísticas na comunidade e da integração dos membros da comunidade atendida;
III – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família, favorecendo a integração dos membros da comunidade atendida;
IV – não discriminação de raça, religião, sexo, preferências sexuais, convicções político-ideológico-partidárias e condição social nas relações comunitárias.
§ 1º É vedado o proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de radiodifusão comunitária.
§ 2º As programações opinativa e informativa observarão os princípios da pluralidade de opinião e de versão simultâneas em matérias polêmicas, divulgando, sempre, as diferentes interpretações relativas aos fatos noticiados.
§ 3º Qualquer cidadão da comunidade beneficiada terá direito a emitir opiniões sobre quaisquer assuntos abordados na programação da emissora, bem como manifestar idéias, propostas, sugestões, reclamações ou reivindicações, devendo observar apenas o momento adequado da programação para fazê-lo, mediante pedido encaminhado à Direção responsável pela Rádio Comunitária.’
Uma barreira intransponível
Somente a gestão da emissora pelo Conselho Comunitário determina que ela cumpre sua função social. Claro que todas as rádios de baixa potência dizem sê-la, tanto quanto as televisões a cabo. Não vamos nos dedicar, aqui, ao fato dela ter ou não autorização para funcionar, mas apenas se ela é ou não comunitária, já que há improbidade administrativa e tráfico de influência política para obtê-la na maioria dos casos. Há sentenças condenando o Estado por sua incompetência em realizar sua função pública neste setor e protegendo emissoras da sanha perseguidora da Anatel e do oligopólio:
‘O art. 49 da Lei 9.784/99 assinala prazo máximo de 30 (trinta) dias (prorrogável por mais 30) para decisão da Administração, após concluído o processo administrativo, observadas todas as suas etapas (instrução etc.). (Agravo de Instrumento 2003.04.01.038885-1 – TRF – 4ª Região – Porto Alegre, RS)
O cidadão tem direito a receber um tratamento adequado por parte do Ministério das Comunicações, que deve responder as postulações feitas. Não o tendo feito no prazo da lei que rege os procedimentos administrativos, está a desrespeitar o devido processo legal e a razoabilidade’ (STJ – Suspensão de Tutela Antecipada – STA 000017 – ministro Nilson Naves).
Geralmente estas emissoras têm sido constituídas por um grupo de amigos, familiares, líderes religiosos ou políticos, ou seus prepostos, mantendo uma barreira intransponível para a participação popular.
Participação da comunidade
É muito comum os ‘donos’ das emissoras que se dizem comunitárias dizerem que eles construíram a emissora com muito sacrifício e que não querem mais gente na direção, para destruir o que fizeram às próprias custas.
O termo tradicionalmente usado é ‘emissora de fulano e de sicrano’. Mesmo dentre algumas lideranças que alegam estar defendendo a democratização da comunicação.
É como se fosse possível algo comunitário ter dono. Mas, como, ao invés de buscar recursos para adquirir os equipamentos na comunidade, alguns fazem uma ‘vaquinha’ entre meia dúzia de interessados, quando não se trata de um único financiador. E, em função disto, se sentem e agem como donos da rádio ou televisão, usando o termo comunitário apenas para angariar recursos juntos aos movimentos sociais e órgãos públicos.
Muitos acreditam que a participação da comunidade se restringe a pedir determinadas músicas, solicitar que a prefeitura faça certos serviços, solicitar ou fazer doações para os carentes e coisas similares. E que isto significa ser uma rádio comunitária.
Manutenção e programação
Assim, sugiro um detalhamento desta condição em fatores menores que indicam, em seu conjunto, se na prática é atendida, ou não, pela emissora:
(1) A diretoria da emissora deve ser reeleita periodicamente, conforme tempo determinado no estatuto da entidade, sendo convocados os ouvintes e telespectadores para participar do processo. Não pode ser composta predominantemente por religiosos, representantes de políticos ou por familiares. Deve repercutir a diversidade dos interesses locais.
(2) O Conselho Comunitário deve ser constituído com tantas entidades quantos se interessarem, também abrangendo o maior número possível de organizações locais. Deve se reunir mensalmente, possuir ata de reunião registrada de forma organizada e acompanhamento formal das decisões tomadas, bem como restrições a quem não respeitá-las.
(3) A cada hora de programação, a emissora deve ter uma vinheta de, pelo menos, 30 segundos, convidando a população a participar da direção e da programação. Por exemplo: ‘Está emissora pertence ao povo. Aqui, quem manda é o ouvinte (ou telespectador). As associações ou organizações sociais da região são muito bem vindas para assumir a direção desta rádio ou TV.’
(4) A programação deverá ser dividida em tantos programas quantos forem os interessados em dela participar.
(5) O custo dos equipamentos (mesmo se já adquiridos), manutenção da emissora e da programação deve ser dividido entre as entidades do Conselho Comunitário e dos interessados em manter o programa, buscando também apoio cultural no comércio, entidades do movimento social, no poder público local etc.
Cursos de treinamento
Se concordarmos que estes cinco itens são suficientes para tal avaliação e dermos 20 pontos para o atendimento total da condição estabelecida em cada um e valores menores, para atendimento parcial, teremos um total possível de 100 pontos para indicar a emissora 100% comunitária. O somatório da pontuação para cada item nos mostrará o percentual em que a emissora atende estas condições.
Assim, temos uma primeira proposta do ICEC – Índice de Classificação de Emissoras Comunitárias. O comunitômetro [ver aqui].
A Confecom – Conferência Nacional de Comunicação seria um excelente local para discuti-lo, aprimorá-lo e apresentar tal proposta ao Ministério das Comunicações.
A Abraço – Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária já propôs parceria com este ministério, no sentido de classificar as emissoras através de um critério racional, mas, até o momento, não houve interesse deste órgão público em pôr ordem nesta atividade, nos termos da mesma legislação já citada [ver aqui].
Art. 20. Compete ao Poder Concedente estimular o desenvolvimento de Serviço de Radiodifusão Comunitária em todo o território nacional, podendo, para tanto, elaborar Manual de Legislação, Conhecimentos e Ética para uso das rádios comunitárias e organizar cursos de treinamento, destinados aos interessados na operação de emissoras comunitárias, visando o seu aprimoramento e a melhoria na execução do serviço.
Áudio dos piores programas
A Abraço tem extrema dificuldade em colocar na prática seu Código de Ética, mesmo entre as entidades a ela afiliadas, uma pequena parte das 20.000 rádios comunitárias, número estimado como o total das existentes do país. Está disponível aqui.
Por outro lado, em função da precária situação material das emissoras; da opção preferencial do Estado em perseguir os pobres e deixar os Daniel Dantas à vontade; do grande desinteresse das RadCom em se organizar de forma mais efetiva para combater as comerciais que as perseguem, elas pouco fazem para que a Abraço se fortaleça e possa representa-las melhor. Raras são as que contribuem financeiramente para a manutenção da entidade. Assim, recebem o retorno compatível com o que dão e com o pouco que exigem. Cada categoria tem a entidade representativa que merece!
O movimento em defesa das RadCom não conseguiu sequer mudar uma única vírgula da legislação autoritária que regula o setor desde 1998. Foram mais de dez anos de muita luta e sacrifício de uns gatos pingados, em prejuízo de suas vidas particulares, com raras manifestações de cunho coletivo.
Um exemplo extremo da fragilidade em que se encontra o setor é Sebastião Santos. Ele foi o primeiro presidente da Abraço e passou para o exército inimigo, ao vender sua consciência para a Rede Globo. Disponibilizou áudio dos piores programas da emissora de TV no sítio da ONG Viva Favela, por ela mantida, oferecendo-o para que fosse veiculado nas RadCom [ver aqui].
Putrefação ética e religiosa
Tal atitude foi enfaticamente condenada pelas lideranças mais conscientes do movimento. Mas, mesmo assim, em função de seu relacionamento com o governo do PT, é privilegiado com recursos e convites para eventos sobre o tema.
Dizem que Tião Santos, ou Tião Capeta, é amigo íntimo e companheiro de oração do teólogo, filósofo e secretário de Lula, Gilberto Carvalho. Foi para este ilustre personagem da ‘reparticular’ que o advogado do Daniel Dantas, ex-deputado do PT Greenhalgh ligou para denunciar o delegado Protógenes como alguém descontrolado. Logo, ele foi ‘controlado’, ao ser colocado fora da Operação Satiagraha, contra sua vontade [ver aqui; e ‘O homem forte de Lula‘].
A Abraço se recusa a participar de qualquer atividade que tenha a ONG da Globo como parceira ou produtora. Melhor seria que participasse e dissesse, ali, toda a verdade sobre o assunto.
O Estado é dominado pelo crime organizado a serviço da elite do poder econômico. Não cumpre a lei, como neste caso, na proibição do oligopólio da mídia (Artigo 220 da Constituição Federal – CF), no da Reforma Agrária (Art. 184 da CF), planejamento familiar (Art. 226), salário-mínimo (Art. 7-IV) e tantos outros. Dá o exemplo para que a população também não o faça!
O Estado-bandido é conseqüência e causa da putrefação ética e religiosa que campeia solta no país, desde sua fundação! É apenas a latrina onde se defeca o caráter médio do brasileiro…
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Engenheiro civil, militante do movimento pela democratização da comunicação e em defesa dos Direitos Humanos, membro do Conselho Consultor da – Câmara Multidisciplinar de Qualidade de Vida (CMQV) NOTAS