Como um e-mail enviado por mim ao jornalista Luiz Cláudio Cunha e ao blog do Prévidi, sobre o texto “A tesoura da RBS vai em frente“, foi usado em parte pelo Luiz Cláudio no texto “Diário Gaúcho: Impressão vulgar sobre o jornalismo popular“, no Observatório da Imprensa, gostaria de falar sobre alguns pontos citados pelo colega, que admiro muito. Antes de qualquer coisa, gostaria de salientar que não estou aqui para defender ou contrapor qualquer alusão feita à RBS, empresa responsável pelo jornal Diário Gaúcho. Muito pelo contrário. Escrevo apenas como um jornalista que trabalhou 14 anos no DG e que viveu o dia a dia desse jornal, criando uma relação quase de amor pela ideia de jornalismo popular que lá faz. Principalmente por respeito a quem trabalhou e trabalha nessa redação e pelo leitor que tem verdadeiro apreço pelo jornalismo produzido ali. A saber:
1. Como um bom jornalista, creio que antes de criticar algo, é preciso ter conhecimento deste algo. Assim, se o Diário Gaúcho não atrai a leitura ou atenção do Luiz Cláudio, isso leva a crer que ele nunca abriu uma edição sequer do jornal. Ele diz não gostar de jornais populares; tem todo o direito. Mas antes de dizer que o que é feito em um jornal popular é vulgar ou algo mais, é preciso ler com atenção mais de uma edição. Não sou estudioso nem acadêmico, mas sei que essa é uma premissa básica para se avaliar um produto, ainda mais jornalístico. Não é com uma edição, uma olhada na capa que se sabe o valor desse produto.
2. Não tenho dúvidas nem sou ingênuo em achar que a RBS criou o jornal Diário Gaúcho por achar que as classes C, D e E mereciam um jornal. É lógico que o lançaram, em abril de 2000, com os trabalhos dos pilotos começando em fevereiro de 2000, pensando em ganhar muito dinheiro e o ganharam. Mas os profissionais de jornalismo que ali trabalharam (e ainda trabalham) sempre pensaram diferente. Sempre buscaram fazer um jornalismo digno e voltado para o seu público. Uma pesquisa feita lá pelo sétimo ou oitavo ano do jornal mostrava que se os brindes dos selos colecionáveis acabassem o jornal perderia entre 30% e 40% dos seus leitores. Ou seja, a grande maioria dos leitores não acompanhava o jornal por conta dos brindes, e sim, pelo seu conteúdo. Apesar do dito pelo colega Luiz Cláudio, esse conteúdo nada tinha de vulgar, vil. Ele se centrava muito no serviço, matérias de economia popular, segurança pública. Sem deixar de lado, claro, que nenhum jornal sobreviveria hoje em dia sem o entretenimento, as fofocas de celebridades e o futebol – e aqui não apenas resultados, mas muitas matérias de denuncia forma produzidas na editoria de Esporte. Só para contrapor um tema comum à grande maioria dos detratores do DG, aqueles que o acusam de ser um jornal que se espreme e sai sangue: o Diário, em 15 anos, publicou apenas uma foto de corpo na capa e no corpo do jornal, isso porque era uma reportagem sobre a morte de um criminoso famoso no estado.
Rebatendo o “jornalismo rasteiro”
3. A equipe de jornalistas do DG sempre teve em mente que seu trabalho estava “embrulhado nos selos diários que dão direito aos brindes”, como escreve Luiz Cláudio em certo ponto do seu texto. Porém, nunca nos rendemos a isso. Nunca deixamos de ser combativos no nosso trabalho diário de repórteres e editores, mesmo trabalhando muitas vezes sob pressão, reportando e editando o próprio material por falta de gente etc., mesmo vivendo todos os problemas que a maioria das redações vivem. Sempre buscamos fazer jornalismo com dignidade e sem vulgaridade, mesmo que a embalagem trouxesse uma mulher escultural para chamar a atenção dos leitores homens.
4. Em certo trecho do seu texto, Luiz Cláudio diz que os jornais populares miram consumidores, não leitores. E que esses buscam “utilitários domésticos casualmente embrulhados em páginas de rasteiro jornalismo”. Vejamos:
>> Seria um jornalismo rasteiro perder dias e dias ligando para cada escola de Porto Alegre para saber quais problemas cada uma enfrentava e, depois, produzir uma semana de reportagens sobre a crise da educação na cidade?
>> Seria um jornalismo rasteiro mostrar que o centro da capital gaúcha é um antro onde se compra e se vende de tudo?
>> Seria jornalismo rasteiro acompanhar dia a dia o número de homicídios, criando uma planilha de dados considerada mais confiável pelos policiais que os dados da própria polícia?
>> Seria jornalismo rasteiro fazer um secretário de Segurança sair da sua cadeira e do ar condicionado da sua sala para ir a um bairro que vivia sobre um toque de recolher, apesar de todas as negativas do governo e dos órgãos de segurança de que isso ocorria?
>> Seria jornalismo rasteiro mostrar o surgimento de uma facção criminosa que, ano a ano, saiu de um bairro de Porto Alegre para tomar os principais pontos de tráfico da região metropolitana?
>> Seria jornalismo rasteiro mostrar que, assim como na ficção das novelas, as mulheres da vida real sofrem diariamente com a violência doméstica?
>> Seria jornalismo rasteiro mostrar desvio de verbas públicas do Carnaval de Porto Alegre, em uma série de reportagens que gerou ameaças de morte aos repórteres e uma CPI na Assembleia Legislativa?
>> Seria jornalismo rasteiro mostrar a vida real dos moradores da região metropolitana, levando para as páginas do jornal seus dramas e lutas por uma vida digna?
Jornalismo, e não a “ótica empresarial”
6. Luiz Cláudio cita “uma primeira página feia, visualmente pobre, cheia de fotos ruins e letras garrafais, manchada com cores berrantes e manchetes aberrantes”. Sinceramente, não lembro de nenhuma manchete aberrante no Diário Gaúcho, salvo uma vez que o jornal manchetou a possibilidade de água em Marte, algo que virou piada dentro da redação, já que demonstrou que o nosso jornalismo diário estava em crise e merecia ser repensado. Daí surgiu algo que sempre foi muito salutar. Pelo menos uma vez ao ano, mesmo perdendo folga, parávamos para discutir o nosso jornalismo, o que estávamos fazendo e o que deveríamos faze para melhorar. Dessas reuniões anuais saíram diversas diretrizes jornalísticas. Também nelas eram discutidas, sempre que surgia a oportunidade, outros temas, como a estrutura, salários, e outros dramas inerentes às redações do país. Mas sempre tínhamos em mente que, mesmo com todos os problemas estruturais, não podíamos deixar de fazer jornalismo. Sobre o restante da crítica à capa do jornal, tenho que reconhecer que nem sempre as capas do DG foram boas.
7. Em 14 anos trabalhando no Diário Gaúcho – vale ressaltar, saí em abril passado, e, mesmo tendo muitas queixas ao estilo RBS de ser, defendo a ideia Diário Gaúcho (mesmo que algumas vezes veja coisas erradas no jornal) –, nunca vi uma reportagem grotesca, bizarra, espalhafatosa, muito menos mundo-cão. A não ser, claro, que o colega Luiz Cláudio considere mundo-cão um pai acorrentar o filho usuário de crack porque não consegue tratamento para ele e não quer vê-lo morto. Sinto muito se a grande maioria das pessoas pensa assim, mas isso é vida real, e não mundo-cão. Isso acontece diariamente nas cidades brasileiras. O Diário Gaúcho foi um dos primeiros a dar atenção a essa droga no Brasil. Assim como no Rio Grande do Sul foi o primeiro a chamar a atenção para o verdadeiro holocausto que vem acontecendo com os homicídios de jovens, principalmente negros.
8. Luiz Cláudio enumera adjetivos para falar do jornalismo mundo-cão, entre eles, “sensacionalista”. Certa vez, na faculdade ainda, sobre uma discussão sobre o antigo Notícias Populares, o professor deu o seguinte argumento: “Todo jornal é sensacionalista. Toda reportagem é sensacionalista. Afinal, é preciso chamar a atenção do leitor para aquilo que estamos escrevendo.” Claro que o professor, infelizmente não lembro o nome, estava fazendo uma analogia. Mas, continuo acreditando, que o colega Luiz Cláudio elenca os adjetivos “vulgar, banal, pueril, pífio, grosseiro, vil” para falar do Diário Gaúcho por não conhecer o seu conteúdo. Mesmo que “ótica empresarial que se preocupa mais com a receita e o lucro, e menos com a excelência da informação e a qualidade do produto jornalístico” estivesse e esteja presente no produto Diário Gaúcho, os jornalistas que ali trabalharam e trabalham nunca se renderam à essa ótica – assim como fazem a maioria dos jornalistas de todas as redações do país. Sempre procuraram fazer seu trabalho jornalístico visando o público leitor.
9. Diferentemente de Fabiano Golgo, ex-editor-executivo do Hora de Santa Catarina, que também escreveu ao Blog do Prévidi em resposta às minhas críticas ao texto do Luiz Cláudio, nunca vivi dentro da redação do Diário Gaúcho nenhuma pressão como as que ele cita. Nunca fomos pressionados a apenas republicar o que vinha dos outros jornais da rede. Pelo contrário, todo material que vinha do Zero Hora e que usaríamos no dia seguinte, por não termos perna para produzir, tinha que ser reescrito dentro dos nossos parâmetros. Isto é, as reportagens de ZH tinham que ser reeditadas para entrarem no nosso padrão de texto e gráfico. Dentro da redação do DG sempre trabalhamos pensando em fazer jornalismo, em dar valor ao nome jornal, em dar valor à nossa profissão. E mais, em dar ao leitor um texto claro e informativo. Sempre tivemos a pretensão de querer que o leitor comprasse o Diário Gaúcho pelo seu conteúdo e não pelos selos diários. O Hora tinha uma realidade, pelo que descreve Fabiano, muito diferente do dia a dia do DG. Mesmo que a RBS engessasse algumas atitudes, sempre procuramos, de forma criativa, fazer jornalismo digno dentro do Diário Gaúcho.
10. No próprio texto de Golgo, ele relata as realidades diferentes: “Quanto à contestação do colega que foi demitido pelo Diário Gaúcho, eu fui orientado de forma diferente, recebendo a ordem de basear o jornal no esporte, nas amenidades, e não na relevância de seu conteúdo.” No DG, essa orientação caiu por terra à medida que o jornalismo começou a falar mais alto. Conseguimos, por exemplo, algo impensado no começo do projeto do DG, uma viagem para atravessar o Rio Grande do Sul, acompanhando um case. Isso, mesmo o DG sendo apenas um jornal direcionado para a região metropolitana. Ou seja, no Diário Gaúcho, sempre pensamos mais no jornalismo que na “ótica empresarial”. Nem sempre tivemos vitórias nesse sentido, mas a briga diária era fazer a ótica jornalística sobrepujar a ótica empresarial. Tenho orgulho das muitas lutas que eu e meus colegas tivemos. Mesmo que muitas delas tenhamos perdido.
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Roberto Jardim é jornalista