A nova versão do Projeto de Lei nº 29, de 2007 (que trata das regras do setor de TV por assinatura) divulgado no final da semana passada pelo relator da matéria na Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara, Vital do Rêgo Filho (PMDB-PB), provocou um rebuliço pelas novidades que apresentou em relação a versões anteriores. O esforço de contemplar os diversos segmentos envolvidos no tema, com especial atenção ao empresariado, terminou por deixar praticamente todos os atores insatisfeitos e não solucionou os nós críticos da regulamentação da área.
O deputado Paulo Bornhausen (DEM-SC), autor da versão original do Projeto de Lei, considerou o novo texto confuso. ‘Ele mistura as questões sobre a prestação do serviço de comunicação eletrônica por assinatura com aquelas referentes ao conteúdo. Não acho que o texto seja o mais adequado para atender aos desafios da convergência [tecnológica]. Mas, como ele não é definitivo, teremos condição de aperfeiçoá-lo na CCTCI [Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara, da qual o parlamentar faz parte].’
A redação apresentada pelo democrata, no início de 2007, tinha como objetivo permitir que as empresas de telefonia fixa e móvel tivessem o direito de produzir e distribuir conteúdo eletrônico no mercado de televisão por assinatura, contanto que essas empresas fossem constituídas e sediadas no país, como prevê a Constituição Federal.
O PL teve outros projetos sobre o mesmo tema apensados a ele e seguiu um caminho tortuoso que incluiu as comissões de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio (CDEIC) e, agora novamente, a Comissão de Defesa do Consumidor (CDC). A versão de Rêgo Filho terá o prazo de cinco sessões para receber considerações e emendas e depois será finalizada pelo atual relator e votada. Em seguida, o projeto retorna à CCTCI, sendo apreciado, por último, pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para, só então, ser levada a plenário.
Ao longo deste percurso, que já entra em seu terceiro ano, empresas de radiodifusão e de telecomunicações, produtores independentes, grandes produtoras, empacotadoras e distribuidoras de conteúdo e provedores de conteúdo na internet, além de entidades de defesa do consumidor e agências reguladoras, protagonizaram embates e articulações junto aos parlamentares para assegurar a tradução de seus interesses nas sucessivas versões da proposta. O resultado é um complexo texto que tenta abarcar as posições em disputa, com claro privilégio àquelas defendidas pelos empresários. Olhada sob a ótica dos benefícios aos cidadãos, a redação, no entanto, deixa brechas que merecem atenção.
Canais avulsos
Para Lara Haje, consultora da ECCO – Estudos e Consultoria de Comunicação e pesquisadora do Laboratório de Políticas de Comunicação da UnB (Lapcom), houve um avanço neste substitutivo com relação aos anteriores, principalmente na introdução da possibilidade do assinante contratar os canais de maneira avulsa. ‘Sair do modelo de pacote significa um avanço, permite maior liberdade para o consumidor’, avalia.
Contudo, a consultora acredita que um dos maiores problemas deste substitutivo diz respeito a um mecanismo que põe em xeque justamente essa possível liberdade do consumidor. ‘Contraditoriamente ao avanço gerado pela possibilidade de se contratar canais avulsos, o artigo 13 do PL 29 prevê um contrato de exclusividade entre a programadora, a empacotadora e a distribuidora que pode colocar isso a perder’. Haje explica que, caso haja comprovação de que determinada programação é essencial para a viabilidade da produção, essa pode ser contratada como produto exclusivo de determinado pacote. ‘Isso havia caído no substitutivo do Bittar [Jorge Bittar, ex-deputado pelo PT-RJ e relator da matéria na CCTCI] e voltou agora.’
Inclusão da internet
Outro ponto polêmico no relatório de Vital do Rêgo Filho é a inclusão da internet. Segundo o texto, este meio também deveria obedecer aos mecanismos previstos no substitutivo, mas apenas para os conteúdos audiovisuais remunerados, ou seja, aqueles pelos quais são cobradas taxas para exibição, ou que, no entendimento do relator, configurariam televisão por assinatura.
Para Lara Haje, a aplicação das cotas para conteúdos nacionais e independentes audiovisuais pagos ofertados na internet só deveriam ser asseguradas em plataformas nas quais o espaço é limitado, o que não é o caso da internet. ‘Não tem sentido obrigar um provedor a obedecer às cotas se a pessoa pode optar por outro provedor e se há uma infinidade de provedores. Sou a favor de deixar a internet o mais desregulada possível. A não ser em casos de práticas ilícitas, como pedofilia, por exemplo’, defende.
Posição semelhante tem o consultor jurídico do Ministério das Comunicações Marcelo Bechara. ‘Qualquer tipo de regulação mais dura sobre a internet tende a não ser eficaz. A internet tem um modelo descentralizado’, afirmou ao site especializado Telecom On Line.
Já o presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), Daniel Slaviero, declarou apoio à medida. ‘Especificamente no PL 29, não se pode falar em convergência dos meios sem falar na internet. Porque no futuro, certamente a comunicação social passará por esse meio. A intenção da rede é justamente criar novos consumidores para as rádios e TVs brasileiras’, comentou, em entrevista ao mesmo noticiário.
O professor da Unisinos Valério Brittos vê com bons olhos a regulamentação do conteúdo audiovisual remunerado na internet. ‘Este é um importante ponto desta versão do PL 29. Estamos tratando de um setor com muito mais força que o setor das TVs por assinatura. Os grandes portais têm abrangência ainda maior do que a da TV por assinatura. Por isso defendo que temos, na verdade, que fazer uma lei mais geral que dê conta de regulamentar todo esse processo.’
Cotas e propriedade cruzada
As cotas para a produção nacional e independente, que já estavam no centro das polêmicas em versões anteriores, suscitaram novas críticas na redação de Rêgo Filho. Os artigos 16 e 17 prevêem que no mínimo 30% da programação deve ser nacional. No entanto, apenas os canais que já veiculam conteúdos brasileiros integrantes de espaço qualificado são obrigados a atender a esta exigência. Desses 30%, no mínimo a metade deve ser preenchida por atrações produzidas nos últimos sete anos.
As operadoras também deverão reservar lugar em todos os seus pacotes para ofertar um mínimo de oito horas diárias de conteúdo brasileiro em espaço qualificado restrito produzido por produtoras brasileiras independentes. Na prática, o mecanismo obriga a disponibilização de um canal para obras audiovisuais, cujo exemplo mais consagrado atualmente é o Canal Brasil.
Outra determinação é o oferecimento de um canal adicional que veicule majoritariamente conteúdo jornalístico em horário nobre e que não seja realizado pela própria operadora. Concretamente, o artigo obriga que os operadores com pacotes integrados pela Globo News também incluam um segundo canal, que atualmente poderia ser ou a Record News ou a Band News.
As cotas para conteúdo independente e nacional são consideradas importantes pelos setores que defendem a TV por assinatura como espaço de fomento ao desenvolvimento do audiovisual nacional. No entanto, segundo Valério Brittos, elas não podem ficar restritas a determinados espaços de produção jornalística, no caso da produção nacional.
O professor também alerta para o risco da contratação de produção independente de empresas que nem sempre são de fato independentes no sentido previsto pela lei, mas sim pequenas representações das grandes produtoras criadas apenas para cumprir as metas em relação a este tipo de conteúdo. ‘As cotas não devem servir para cobrir uma coisa ou outra, eles devem ser boa parte da programação.’
No que tange ao controle das operadoras, o substitutivo determina que as empresas de telecomunicações só podem participar de empresas de radiodifusão, de produção ou de programação do conteúdo audiovisual brasileiro com até 30% do capital votante. Ficando proibido o exercício de qualquer forma de influência na administração, na gestão ou no conteúdo da programação dessas empresas. Neste ponto, a novidade é a aplicação deste limite a todas as prestadoras de serviços de telecomunicações, inclusive a NET e a Sky.
Publicidade
Com relação ao limite da publicidade na programação houve um avanço com relação ao projeto anterior apresentado pelo Deputado Jorge Bittar (PT–RJ). Em seu substitutivo, Bittar propunha o limite de 25% por hora e de 30% por dia. No novo texto, o máximo permitido é reduzido à metade, não podendo exceder 12,5% de uma hora e 20% do total diário.
O projeto também proíbe a inserção de conteúdos dessa natureza nas programações de conteúdo audiovisual sem a prévia e expressa autorização da empresa titular do conteúdo a ser veiculado. O que, além de representar um avanço, traz uma lógica de respeito às obras audiovisuais.
Canais de distribuição obrigatória
Ao contrário do substitutivo do CDEIC, que estabelecia um limite de dez canais de distribuição obrigatória, podendo chegar a 15 canais se incorporados os canais previstos pela lei que criou a Empresa Brasil de Comunicação (Lei 11.652/2008), o atual texto prevê o número de nove canais obrigatórios. O mesmo número que atualmente é previsto na Lei do cabo (8.977/1995).
Contudo, as prestadoras de serviço de TV por assinatura que ainda operam no sistema de MMDS analógico e as demais operadoras que comprovarem inviabilidade técnica para tal veiculação ficam desobrigadas de distribuir os canais obrigatórios. Esta redação também prevê que o contrato pode ser feito apenas com a assinatura básica, que contempla tão somente o oferecimento dos canais abertos e os básicos de acesso gratuito.
Direitos do Consumidor
Estão incorporados neste substitutivo também alguns importantes direitos do ponto de vista do consumidor, como a obrigatoriedade de obtenção de cópias do contrato, de poder contratar exclusivamente os canais de distribuição obrigatória, de não pagar por pontos extras (a não ser os custos de instalação) e de relacionar-se apenas com a distribuidora do serviço. Serão também aplicáveis a estes serviços as leis que fixam normas gerais para o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC).
Contratos de concessão
Um dos maiores problemas do ponto de vista legal, e também econômico, do substitutivo de Rêgo Filho está na revogação das cláusulas dos contratos de concessão dos Serviços Telefônicos Fixos Comutados (STFC) para que estas possam entrar no ramo da TV por assinatura a partir do mesmo contrato de concessão firmado para a exploração do STFC. Atualmente a legislação veda a possibilidade de que a concessionária e as empresas coligadas, controladas ou controladoras da concessionária prestem serviços de TV por assinatura bem como qualquer outro serviço que não o de telefonia fixa.
O texto propõe a alteração do artigo 86 da Lei Geral de Telecomunicações (LGT), que afirma: ‘a concessão somente poderá ser outorgada a empresa constituída segundo as leis brasileiras, com sede e administração no país, criada para explorar exclusivamente serviços de telecomunicações objeto da concessão’. Na proposta, a retirada da parte ‘objeto da concessão’ seria o necessário para abrir caminho para que as empresas de telecomunicações exerçam não só os serviços de televisão por assinatura, mas quaisquer outros serviços de telecomunicação, inclusive o de provimento de banda larga, o grande filão do mercado atualmente.
De acordo com a Ação Civil Pública ajuizada pelo Instituto Pró-Teste – Associação Brasileira Defesa do Consumidor referente ao Plano Geral de Metas de Universalização (PGMU) do STFC, a exploração pelas empresas de telefonia fixa de outros serviços que não este acaba por gerar benefícios ilegais e lucros exorbitantes para essas operadoras.
A questão central é que quando essas empresas adquiriram os ativos referentes à privatização do sistema Telebrás, em 1998, o preço pego pelas ações foi referente à exploração de apenas um serviço, o de telefonia fixa, que, por sua vez funciona em regime público. A exploração de outros serviços, como o provimento de banda larga e a televisão por assinatura, serviços operados em regime privado, traz sérias contradições.
A primeira delas diz respeito ao tipo de serviço, visto que, por operarem serviços públicos, elas recebem incentivos do Estado e de fundos de renda fixa, dentre outros. Com a operação de serviços privados, se configuraria um quadro de financiamento público de serviços privados, o que é ilegal e representaria uma grande perda para os cofres públicos. A segunda é justamente o preço pago pelas empresas na época da privatização. Caso fosse prevista a exploração de outros serviços, como os dois que estão sendo pleiteados por estas empresas, os preços pagos seriam mais elevados. Segundo estimativa da Pró-Teste, chegariam ao dobro do valor pago. Isso também representaria uma grande perda para os cofres públicos e, conseqüentemente, para população.
Brittos considera este um problema seriíssimo do novo texto. Para o professor, isso propicia a propriedade cruzada – que o texto a princípio rechaça – e também a distribuição de concessões sem licitação, visto que a exploração de outros dois serviços caracteriza novas concessões. ‘Esse negócio prevê a ampliação e a mudança da outorga. Favorece apenas as teles que já têm muita força.’
Assunto para a Confecom
Diante de todos esses problemas, Brittos ressalta a importância de ampliar o debate em torno da regulamentação das comunicações no Brasil e alerta para a importância de se fazer isso na Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que acontecerá em dezembro deste ano. Ele diz que é fundamental localizar o problema da regulamentação da TV por assinatura dentro do quadro maior da necessidade de revisão da regulamentação de todo o setor das comunicações.
De acordo com o professor, para ser completamente eficaz um novo marco regulatório precisaria dar conta de tratar satisfatoriamente de pontos como a propriedade cruzada (entre empreses de telecomunicações, radiodifusão e internet, por exemplo), produção independente e nacional e modelo de financiamento, entre outros. Para isso, este processo deve ser sincronizado, abrangendo a regulamentação da radiodifusão, da TV por assinatura, das telecomunicações e da internet.
‘A digitalização já é algo real, assim como a convergência. A televisão já não é mais aquele serviço que se convencionou chamar de televisão. Ela pode estar em outro meio. É uma televisão com outro conceito. Por isso, temos que tratar o problema como um todo. Não adianta tentar resolver com um pequeno grau de debate. Lógico que qualquer regulamentação é melhor que regulamentação nenhuma, mas acredito que o Brasil tem que ter um código nacional e democrático que trate das comunicações como um todo’, defende.
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Do Observatório do Direito à Comunicação