Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornal encouraçado

Curitiba tem um pequeno jornal que conseguiu atravessar 30 anos sem crise.

O dono era um cartorário muito rico, amante do jornalismo.

Fica no bairro Centro Cívico, num prédio pequeno de dois andares, muito clean.

Foi desenhado para uma operação enxuta. Rotativa no térreo, andar de cima dividido meio a meio entre a redação e a cavernosa sala do patrão.

Ele escreveu na capa do primeiro número: “Nosso compromisso é com a verdade e defender a estrutura econômica do Paraná sem protecionismo privilegiado” – decifrem como quiserem.

Circulava de segunda a sexta. Tirava uns 500 exemplares. Alguns iam às bancas do centro e o grosso era distribuído em repartições públicas.

A cota das bancas era encalhe certo. Tinha dias que vendia um. Com dois, o pessoal já comemorava pelo “aumento de 100 por cento na circulação”.

O patrão foi passar uma temporada em Miami e deixou tudo na mão de um filho.

O escolhido foi um garotão boa pinta, pegador, nos tenros 26, já com a vida ganha: também era cartorário.

O filho estava sentado no gabinete do pai na manhã em que cheguei na cidade.

Eu, aos 42, duro e desempregado. Ele, todo pimpão, em seu primeiro dia.

Que mão moveu as peças do tabuleiro pra produzir este encontro de titãs ?

Foi puro acaso. Eu chegara em Curitiba no busão do amanhecer. Era pra ser só pit stop pro café. Na rodoviária, comprei passagem das 11 pra Floripa.

Na lanchonete da estação, gastei minha última grana numa taça com pão e margarina. E ali, no balcão, repousava um jornal velho de 3 dias.

Li o bicho num vapt vupt, só tinha joio. Na contracapa estava o anúncio que mudaria minha vida para sempre: “Precisa-se de repórter”.

Depois da Veja, qualquer lugar serve, pensei. E sopesei as possibilidades enquanto caminhava da rodoviária ao Centro Cívico, de mochila nas costas. Missão: prospectar um emprego praqueles meus difíceis anos 90 – além de matar tempo pro busão das 11.

Ewaldo (hoje no SBT), um guri novo, era o diretor. Como CV, mostrei umas matérias minhas na revista. Ele pareceu impressionado e me levou direto pra sala do filho do dono – a cavernosa.

Prático, seguro e decidido, o patrãozinho me entrevistou em 15 minutos.

Ele tinha lido A Regra do Jogo. Sonhava contratar “um cara de cabelos brancos, como o Cláudio Abramo” para “mudar o jornalismo” de Curitiba: “Aqui todo mundo é vendido”, afirmou.

Então existe um patrão que quer gente que não se venda! Soy yo!

Vi o destino me dar a titânica tarefa: comandar a cruzada histórica de mudar o jornalismo paranaense!

Pá pum e ele perguntou se eu toparia ficar na cidade e dirigir seu jornal.

Agarrei o touro pela picanha e pedi carta branca. Ele topou sem pestanejar – de lá pra cá me belisco cada vez que vejo esta expressão.

Passamos às condições: um hotel pra morar, um carro para rodar e um salário que já esqueci quanto era, dava pra cuidar dos luxinhos da filharada.

Perdemos mais tempo discutindo sobre o carro do que sobre a redação. Ficamos que ele me daria um Lada adesivado para usar nos findis – no resto da semana o carro era pras demais operações do jornal. Justo, né ?

Fechado o detalhe do carro, ele me pediu para assumir imediatamente, com uma recomendação expressa: “Bota o Ewaldo na rua”.

Pisei no freio: “Calma lá, primeiro preciso avaliar o pessoal”. Ele insistiu: “Meu pai não gosta dele”.

Dito isto, mandou chamar todos os empregados e me entronizou como novo diretor da redação.

Havia umas 40 pessoas na sala. Só cinco ou seis eram jornalistas – entre eles, outro filho do patrão, colunista social.

Enquanto eles nem piscaram com o anúncio, eu entrei no modo solidão instantânea do alto da pirâmide.

A turma dispersou. Dei como perdida a passagem das 11. Fui prum aquário que seria meu. No ato, chamei o zelador e o derrubei – ao aquário, não ao zelador. Gosto de ver a cara do reportariado.

O filho colunista se aproximou de forma delicada, mesmo enquanto o zelador dava marteladas. Queria dicas para melhorar sua página. O irmão já me adiantara: “A coluna é dele, mas o pai não quer que ele mexa em mais nada”. Primeiro intocável, pensei comigo.

Menos de duas horas depois de sair do intragável café da rodoviária eu já era confidente de uma feroz briga familiar pelo controle do pasquim.

Me fazendo de poderoso, botei os pés na mesa, como em filme americano, li a coluna e… aprovei tudo. Pés na mesa, mas mãos de pelica. O colunista era ingênuo, me pareceu inofensivo.

Ficou combinado que eu teria 90 dias para contratar uma equipe, fazer um piloto, aprová-lo com o patrãozinho e começar as mudanças.

Chamei o Ewaldo e…epa ? Tinha sumido. Num rompante, ele pediu demissão. Peguei o endereço e fui na casa dele. Estava almoçando com o pai, muito pê da vida, crente que eu tinha sacaneado ele.

Eu contei que o patrão mandou botá-lo na rua. Disse que queria ele de volta, como meu segundo. E dei minha palavra que ele ficaria comigo enquanto eu fosse o diretor – uma aposta e tanto num desconhecido.

Ele voltou e me ajudou a contratar. Perguntei pro Ewaldo quem era o jornalista maldito na cidade. “Roberto Salomão”. Mandei trazer. Salomão era bom de texto e de trabalho. Tava marcado nas outras redações. Saloma começou a trazer mais gente boa.

Veio a deusa Natália, por quem meu muito pegador jovem patrão se apaixonou na hora, sem nunca ter sido correspondido.

Minha equipe chegaria a 30. Entre eles, um jornalista recém-formado e já sequelado. Acidentado, tava gago, meio desmemoriado, com um braço retorcido. Pro patrão no vê-lo, joguei no arquivo – recuperado, tornou-se um dos grandes do site NO.

O Roni, cara do admin/finan/comercial, viu gente entrando na redaça e se descabelou. Me perguntou se eu estava ciente do acordo.

Que acordo ? “A folha de pagamento é o Lerner que paga. Você não pode ir contratando gente assim, senão a fatura não bate”.

O patrãozinho explicou melhor: “Este é um acerto do pai. O prefeito paga pra ele. O que tá entrando este mês vai pro pai em Miami, mas o mês seguinte já é nosso, pra bancar a redação”.

Então era assim: o custo de pessoal, papel, tinta, a gasolina do Lada – tudo era mantido pelos anúncios e assinaturas do governo. A fatura mensal variava de acordo com a necessidade.

Na hora me lembrei do navio encouraçado alemão Bismarck, da II Guerra. Pequeno, compacto, bolado para ser insubmergível. Só foi afundado numa batalha épica contra vários navios ingleses e um porta-aviões americano.

O jornal dos cartorários não afundava porque todo mês o Lerner pagava todas as despesas.

A magra receita dos anúncios dava pro material de escritório, água e cafezinho. A gráfica faturava bem em serviços para terceiros. Os gráficos viviam num feudo invertido – o bico deles era rodar o jornal do patrão.

No primeiro mês o patrãozinho bancou minha redação de 30.

No 31º dia o cara do admin/finan/comercial não falou mais comigo.

Aos poucos, o encouraçado dos cartorários começou a mudar de cara. O Salomão conhecia a cidade e seus podres. Um reportariado novo, entusiasmado e sem compromissos estava na ruas farejando tudo. Dúzias de matérias na gaveta estavam esperando os novos tempos.

Em 60 dias estaríamos na ponta dos cascos, prontos para ir às bancas com cara e conteúdo novos.

O patrãozinho lia as matérias engavetadas. Parecia empolgado com elas, sem perceber que cada uma seria um tiro no pé do sistema que o mantinha na sala do pai.

Eu, o heróico redentor moralizador do jornalismo paranaense, ainda tava testando os limites do cartorário filho e do papai.

Estávamos fazendo uma daquelas clássicas matérias sigilentas, os gastos secretos do governo. Metade da redação tava na matéria. Ia cair como uma bomba naquelas repartições onde o jornal (NÃO) era esperado toda manhã.

Zé Beto comandava a página de esportes. Começamos a mudar aos poucos, pela polícia e esportes – como qualquer foca sabe, na política ia ser duro.

Perto da hora de cortar as amarras do encouraçado, o apavorado Roni ligou pro cartorário pai em Miami.

O homem voltou das férias. Ouviu as partes, mas decidiu em favor do filho. Voltou à rotina de mais tempo no cartório. Aparecia no final da tarde, dava uma conferida nas manchetes – sem ver as engavetadas.

Roni era um morto-vivo. Olhando pra trás, ele parecia encarnar a derrota do nascente PIG, morto no nascedouro por nós, ali em Curitiba!

Um dia o cartorário pai me chamou para um papo. Tinha mandado levantar minha biografia – segurei a respiração, é agora…

Aí ele disse que as informações eram ótimas e reafirmou a decisão do filho de me dar o timão – ufa! Até hoje não sei quem foi o safado que disse pra ele que eu era da turma deles.

Passado o susto, ele leu uma matéria na qual se batia de leve no governador Roberto Requião, gostou muito, queria mais sangue.

O encouraçado navegou por algumas semanas em águas calmas, até aquela trágica madrugada – foi quando me chacoalharam da cama no hotel. Era o patrãozinho: “Atacaram o jornal, venha urgente pra casa do pai”.

Corri pra casa do patrão, mas primeiro mandei o táxi passar na frente do jornal. Ué, tudo escuro ? Abri a janela e perguntei pro porteiro Gadu quais eram as novidades. “Nada, seu Renan, tudo calmo”.

Na casa do patrão, pai e filho tomavam o café da manhã: “Seguinte, invadiram o cartório. Temos que fazer uma reportagem para denunciar o ataque. Foi coisa do pessoal do Requião”, diz o filho.

Tentei trazê-los ao bom senso: “Perem aí senhores, o que tem a ver os fundilhos com as calças ? Por que o Requião mandaria atacar o cartório”?

“Porque o cartório é o escritório do diretor do jornal”. O pai disse isto e saiu da sala, deixando o resto do serviço sujo pro filho. Ele me confidencia: “Olha, só arrombaram umas gavetas e roubaram 200 dólares. Mas nós não podemos dizer que foi no cartório porque senão vai ter auditoria da Justiça”.

Resumo: eu teria que contar a história de um jornal paladino da liberdade de imprensa que teria sido atacado por esbirros do Requião depois do país redemocratizado.

Ainda tentei demover o patrãozinho: “Ninguém vai acreditar porque ninguém iria mandar um Gregório Fortunato atrás de um cartorário por um jornalzinho que não fede nem cheira”.

No meio da tarde a quizumba inchou. O patrão pai chamou um deputado amigo. O cara concordou em ir à tribuna da Assembléia denunciar aquele vergonhoso ataque à imprensa livre e democrática, naquela trincheira honrada que era o cartório, citado como “escritório do jornal” – e apontou para Requião.

Anoiteceu e o patrão entrou na cavernosa. Toda redação esperando pelo momento. Vai Renan!

“Então, onde está a matéria ?”

– Patrão, patrãozinho, eu não posso fazê-la.

O patrão me surpreendeu pela delicadeza: “Deixa que eu faço”.

Sai da sala e voltei pra redação – se fosse uma alfaiataria, daria para ouvir o som de um alfinete sendo cravado numa lapela.

O jornal fecha com matéria de capa dedicada ao valente jornal que criticava o governo, com a história fajuta do ataque à sede e muito destaque para o deputado apontando o dedão para Requião.

Aí, perto da meia-noite, quando todo mundo tinha ido embora, depois de tudo pronto, corri na gráfica.

E ali, sozinho, pela primeira vez, usei a frase que todo jornalista sonha: “Parem as rotativas”!

Chamei o polaco que cuidava da máquina e ordenei: “Tira meu nome do expediente”.

No dia seguinte, a manchete bombou nas repartições. Me liga o correspondente do Estadão: “Renan, me dá mais detalhes desta história, atacaram a redação “?

Eu respondi perguntando: “Vc tem o jornal na mão” ?

“Tenho”.

“Então procure o expediente”.

“Achei”.

“Meu nome tá aí” ?

“Não”.

“Então não tenho nada a declarar”.

“Ah, entendi…”

Rimos, desligamos. Ele não fez matéria sobre a mentira dos cartorários donos do jornal que tinha compromisso com a verdade.

O patrão voltou ao meio-dia. Chutou o filho para fora da redação. Eu nem esperei a ordem, passei a dar expediente no boteco da esquina.

Os 30 coleguinhas começaram a desfilar com as notícias, as matérias engavetadas, dando conta da fúria do patrão – deduzimos que era pela falta de repercussão, além das repartições, de sua manchete.

Às 14 eu estava demitido. O patrão mandou o Salomão fechar o jornal. Saloma não obedeceu e veio para o boteco. Um a um os 30 foram chamados e a cada um foi oferecida a minha cadeira. Ninguém aceitou.

Todos vieram ao boteco. Sensibilizado pelo apoio das bases, me segurei: diretor não chora.

Sabem quem foi o último para quem pediram para assumir ? Adivinharam: pro Ewaldo. E ele disse não. Nos abraçamos no boteco, coleguinhas para sempre. Um assessor de imprensa do governo foi entronizado às pressas no meu lugar.

Meus 30 foram postos na rua, menos o sequelado do arquivo. Ele me ligou no boteco, gaguejou, perguntou se eu queria que ele saísse também: “Não pedi pra ninguém sair, fica na tua”, ciente que era uma terapia pra ele.

Na manhã seguinte bem cedo me chamaram no cartório. O patrãozinho ia me pagar. Me devia, digamos, 50 mil. Me ofereceu 5: “É pegar ou largar”.

Ele tinha perdido o poder, queria me dar uma cravadinha.

Nosso último papo foi curto. Mandou eu sair do hotel na hora do check out e me pediu a chave do Lada.

Aí ele me estendeu uma passagem, só de ida, para Floripa.

Era pro busão das 11.

O encouraçado ainda circula pelas repartições curitibanas.

******

Renan Antunes de Oliveira, 65, é repórter em Santa Catarina