Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A gravidade da fala do deputado

A matéria publicada na segunda-feira (9/2) na versão online da Folha de S.Paulo sobre as declarações do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, veiculadas em primeira mão pelo Estado de S.Paulo, não aprofunda em nada a gravidade do discurso. Limita-se à superfície da polêmica e, claro, pouco ajuda o leitor a entender por que um presidente da Câmara não pode falar desta maneira.

Sabemos que para lidar com, ou até mesmo pressionar, políticos com o perfil de Eduardo Cunha, a polêmica é bem pouco eficiente; até mesmo porque, por mais aberrante que possa parecer, há passagens na fala do deputado que conferem na sociedade reacionária que nos cerca, o que não faz dele um mentiroso.

Por isso, se o leitor da Folha quiser entender os desfavores sociais que um presidente da Câmara dos Deputados pode fazer para o país, esse leitor terá de ir muito além do que propõe o periódico paulista, que parece ter preferido o caminho da polêmica. Quando Cunha fala que a sociedade não tem exigido que se coloque na pauta de votação do Congresso os projetos alavancados pelos ativistas dos direitos humanos e das conquistas sociais, como a legalização do aborto ou os direitos dos homossexuais, infelizmente ele não está mentindo, pois a sociedade demonstrou nas últimas eleições para o legislativo que de fato não tem dado lá muita importância às pautas sociais.

A gravidade da fala do deputado não está em ele dizer que a sociedade não quer avançar nesse debate, mas sim, no fato de o presidente da Câmara falar em primeira pessoa. Essa arrogância – demonstrada não apenas pelo deputado, mas por boa parte de nossos administradores públicos – revela o quão distante estamos dos princípios mais básicos da democracia.

Valores e ofícios

Não cabe a um presidente da Câmara dos Deputados falar de suas vontades e ideologias pessoais como se fossem elas, suas vontades, que devessem nortear o mandato de liderança na Câmara. O que deveria ser destacado como mais aberrante na fala de Cunha é o fato de não estar expresso ali a opinião dialeticamente tratada de seus pares, os demais deputados eleitos por nós para legislar o país.

Esse discurso vociferado em primeira pessoa não revela apenas o óbvio, que Eduardo Cunha na presidência da Câmara é um erro para as conquistas sociais; revela também que não choca mais os redatores de jornais e seus respectivos leitores essa distância imensa que vamos estabelecendo entre a práxis política e a democracia no Brasil.

Em outro trecho da mesma matéria fica clara a inversão de valores e princípios no trabalho de nossos congressistas: “Sobre a distância do Executivo em relação ao Congresso, disse [Eduardo Cunha] que ainda é cedo para avaliar se haverá uma relação mais próxima entre os dois poderes.” Espera aí, segundo o sistema presidencialista isso não está em questão, pois os poderes devem trabalhar próximos. Ou seja, não é uma questão de escolha, são simplesmente as obrigações com o país. Quando um dos poderes admite que ainda é cedo para saber se trabalhará junto ao outro, podemos estar certos de que quem dançou nessa história foi o povo.

O que falta às matérias dos jornais hoje em dia é a simples demonstração de que os valores e ofícios estão totalmente alijados de sua essência. O que os jornais poderiam tentar nos mostrar não passaria de uma simples constatação de que Eduardo Cunha não pode presidir a Câmara a seu bel prazer, pois a Câmara dos Deputados, deveria dizer a Folha, é do povo.

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Cristiano de Sales é professor de Comunicação Social