Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Vergonha e compaixão

Qual seria uma diferença entre o Mensalão e o Petrolão? A rede social. Em 2005, o Facebook ainda engatinhava, o Twitter não existia e, embora precursores como AOL e Compuserve tivessem milhões de usuários nos Estados Unidos, o fenômeno planetário da mídia social só decolou na segunda metade da primeira década deste século. Um passeio por timelines do Facebook e do Twitter dispersa dúvidas sobre o peso deste meio na afronta pública com a corrupção no Brasil.

Mas não é preciso estar sob suspeita de saquear cofres públicos para ser sumariamente julgado e condenado no tribunal de 140 caracteres. Um escândalo que citei aqui – o do mais assistido âncora de telejornal norte-americano Brian Williams – tomou um curso claramente determinado pela rapidez com que o jornalista se tornou o boi de piranha da vez na rede social.

Williams foi denunciado em sua página no Facebook por um veterano do Iraque por repetir no ar uma lorota que aumentou ao longo dos anos, a de que estava a bordo de um helicóptero militar atingido por um foguete, no começo da guerra, em 2003. O militar postou lá: “Cara, não me lembro de você no meu helicóptero”. O âncora pediu desculpas ali mesmo, reconheceu que estava em outro helicóptero, mas a história foi coberta pela publicação militar norte-americana Stars and Stripes e Williams foi obrigado a pedir desculpas no ar. A contrição foi mal recebida e a bola de neve da vergonha pública adquiriu velocidade, impulsionada pela revelação de novas possíveis lorotas e exageros sobre suas aventuras em situações extremas como o furacão Katrina, de 2004.

Os patrões de Williams na rede NBC assistiram, impotentes, enquanto a cara de uma franquia de US$ 200 milhões de dólares que atrai até 10 milhões espectadores se tornava o meme favorito no Twitter. Fotomontagens humorosas plantavam Williams como protagonista de todo tipo de situação heroica ou arriscada, nas duas grandes guerras, transmitindo ao vivo da lua. Em três dias, ele saiu do ar e em sete foi suspenso sem salário por seis meses, numa decisão corporativa que muitos interpretam como o ponto final na sua carreira.

Fora a ironia de os verdadeiros responsáveis por mentiras sobre o Iraque, as que custaram 200 mil vidas, não terem sido punidos nem submetidos a tribunal algum, a imolação de Brian Williams tem os ingredientes do fenômeno recente da praça pública digital.

Sem cara

No fim de março, sai nos Estados Unidos o livro So You’ve Been Publicly Shamed (Então, Você Foi Envergonhado em Público). Seu autor, Jon Ronson, passou dois anos entrevistando personagens cujas vidas foram transformadas por causa de uma piada de mau gosto ouvida por terceiros ou uma besteira plantada na mídia social. Num extrato do livro publicado no New York Times, Ronson escreve sobre internautas, embriagados com o poder de desmantelar hierarquias, que lançam cruzadas morais, ideológicas e, graças à difusão viral, dispensam julgamentos com um prazer selvagem com castigos desproporcionais aos crimes.

Ronson relata casos impressionantes como o de um cidadão anônimo que contou uma piada machista, entreouvida por uma mulher sentada à sua frente, foi fotografado e tuitado por ela e despedido dez minutos depois. Traumatizado, o pai de três filhos contou seu drama de desempregado num fórum online, a autora do tuíte começou a ser ameaçada de morte, passou a dormir fora de casa e também foi despedida.

Consultado pela revista New York sobre a imolação digital de Brian Williams, Ronson comentou: “Estamos criando um mundo duro e assustador em que qualquer um é definido pela sua estupidez, ao contrário de ser colocado num contexto mais amplo”.

O outro combustível da brutalidade é o anonimato. O colunista da revista Esquire Stephen Marche denunciou, num ensaio no Times, a epidemia de agressão e desprezo sem rosto. Tribunais começam a aplicar penas de prisão a lunáticos que fazem campanhas de intimidação na mídia social mas, lembra Marche, há dois mil anos, a justiça e a ética são baseadas no rosto que pode ser confrontado. Quantas vezes tuitei um link sobre corrupção, uma crítica a figura pública e um internauta tuitou de volta: espero que fulano morra; espero que sicrana tenha câncer.

Hoje, exércitos de trolls são recrutados por governos, como o do Equador e da Rússia, para perseguir e intimidar seus opositores na rede social. Há algo familiar para muitos que descobrem o comportamento bárbaro de conhecidos online. Frequentemente a pessoa com cara, a conhecida, parece ser o oposto da pessoa sem cara, a que agride e persegue estranhos. O fato de que se trata da mesma pessoa é um desafio moral do nosso tempo.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York