Descobrimos o que estamos pagando pela beleza do Rio e do maior espetáculo da terra. É a resposta ao artigo de Heloisa Seixas no caderno “Eu&Fim de Semana” do Valor (13/2/2015) que reproduz a pergunta do poeta Ezra Pound ao se deparar com Veneza pela primeira vez: “O que teremos de pagar por tanta beleza?”
Esta é a pergunta que os cariocas se fazem todos os dias ao receber os presentes da natureza – e, na semana do carnaval, ao se deslumbrar com o inacreditável show das escolas de samba.
Pagamos, sim. Pagamos com a vergonha de saber que entre as 12 escolas que desfilaram no Grupo Especial do Rio entre domingo (15/2) e segunda-feira, os bicheiros pagam os enredos de quatro: Imperatriz Leopoldinense, Grande Rio, Mocidade Independente de Padre Miguel e Beija-Flor.
Assassinatos e atentados típicos dos capos da máfia do jogo do bicho estão na história da Mocidade simbolizada por Castor de Andrade, hoje comandada pelo sobrinho do contraventor, Rogério de Andrade, de 51 anos. Com o tema “Se o mundo fosse acabar, me diz o que você faria se só lhe restasse um dia?” a escola, que tem a melhor bateria do Sambódromo, respondeu com um carro alegórico no estilo “50 Tons de Cinza” onde 50 pessoas simulavam sexo explícito, hétero e homossexual. Como se as carnes expostas não bastassem. Mas fez uma passagem na avenida, digamos, extasiante.
O desfile é marcado por surpresas, muitas vezes de mau gosto como o trocadilho do tema da Grande Rio, “A Grande Rio é do baralho”. E surrealismos como o da Portela, que se inspirou em Salvador Dalí para transformar o Maracanã em nave espacial e o Pão de Açúcar numa sereia cercada pela rede composta de 175 mil fundos de latinhas de cerveja. Junto com samba e cerveja, sexo não podia faltar. Não é que o Jardim Botânico se transformou no Jardim das Delícias?
A Unidos da Tijuca espalhou as neves da Suíça em pleno verão do Rio de Janeiro porque, claro, recebeu patrocínio do país helvético e fez dos Alpes, dos relógios e dos chocolates as alegorias da escola – além de escolher Clóvis Bornay para narrar o desfile porque, ora, o carnavalesco é filho de pai suíço que tinha loja de joias e relógios em Nova Friburgo.
Dinheiro a rodo
Vale tudo pelo esplendor das escolas que, ao passar, deixaram de boca aberta as cinco milhões de pessoas que circularam pelo carnaval do Rio neste ano. Mas por mais onírico e espetacular para quem vê, não tem beleza que se sustente, puxador que segure o tom e ala que não atravesse o samba quando se conhece os bastidores dessa empresa chamada Carnaval que movimenta RS$ 1,2 bilhão.
Com um surrealismo maior que o da Portela, a Beija-Flor simulou jorrar petróleo de um carro alegórico. Não se trata de uma alusão ao escândalo da Petrobras e nem de sombra lembra o petróleo de Hugo Chávez que patrocinou a Unidos da Tijuca em 2006, campeã com o tema “Soy loco por ti, América”. O petróleo hoje é a maior riqueza da Guiné Equatorial, terceiro produtor da África depois da Nigéria e Angola. Perto dos US$ 460 mil doados pela Venezuela por uma vitória afinal política, a Guiné Equatorial pagou a maior quantia já oferecida pelo enredo de uma escola carioca. Foram R$ 10 milhões entregues à Beija-Flor, aceitos de bom grado porque dinheiro de contravenção e dinheiro de corrupção se entendem.
Há dez carnavais a Guiné Equatorial namora a Beija-Flor, que já fez até show particular em seu camarote dois anos atrás, no Sambódromo, para comemorar os 45 anos de independência do país. Este ano o presidente conseguiu impor o tema “Um griô conta a história: Um olhar sobre a África e o despontar da Guiné Equatorial. Caminhemos sobre a trilha da nossa felicidade”.
O tema em si é surreal. Porque felicidade ali só cabe ao ditador Teodoro Obiang, 72 anos, e a seu filho, um dos vice-presidentes e sucessor ao trono, Teodorin, 45 anos, que lidera a comitiva de 40 autoridades guiné-equatorianas instaladas nas sete suítes mais luxuosas do Copacabana Palace. A diária de cada suíte varia entre R$ 5.600,00 e R$ 7.200, e com extras Teodorin teria desembolsado R$ 77 mil por noite. As ruas do Rio ganharam sete carros blindados para locomover o grupo.
Teodoro Obiang (esq.) e o filho Teodorin: o ditador e o subditador |
Há 35 anos ditador na Guiné Equatorial conquistada num golpe, Teodoro Obiang Nguema Mbasogo é, segundo a revista Forbes, o oitavo governante mais rico do mundo, com fortuna avaliada em US$ 600 milhões. Ancorado na lenda de descender de canibais, ele inspira medo e terror, comanda o país por decreto, com mão de ferro e totais poderes. O que inclui violação de direitos humanos, casos de tortura, prisões arbitrárias, repressão violenta a qualquer tipo de oposição. A liberdade de imprensa é totalmente reprimida e os jornalistas dissidentes, presos ao menor dissabor.
Teodorin é dono de uma mansão avaliada em 110 milhões de euros (R$ 355 milhões) nas proximidades do Arco do Triunfo, em Paris. O subditador arrematou por US$ 482 mil num leilão a luva usada por Michael Jackson na turnê “Bad Tour” dos anos 1980, e sua governanta na mansão de Malibu, na Califórnia (comprada por US$ 30 milhões), diz que ele paga tudo em dinheiro vivo, jamais usa cartões. Seu jatinho particular é avaliado em US$ 38, 5 milhões e sua Ferrari, em US$ 500 mil. E esbanja tanto que foi alvo de uma investigação na França por corrupção e lavagem de dinheiro. Teve 17 carros de luxo apreendidos. Em 2013 a França requereu a prisão e extradição de Teodorin – das quais escapou porque, sorte, passava o carnaval no Rio. No ano passado a justiça americana determinou o confisco de todos os seus bens e agora Teodorin se deleita no Sambódromo.
Com suspeita de usar o Brasil para lavar dinheiro, Teodorin é dono de dois imóveis em São Paulo que, somados, valem R$ 510 milhões, um deles um triplex nos Jardins decorado ao custo de 3 milhões de euros. Ele se hospeda no Copacabana Palace, mas é dono de um apartamento em Ipanema avaliado em R$ 113 milhões. Consta que pertence a ele uma ilha e mais um imóvel comprado em nome de laranjas em Salvador, Bahia.
Folias e salsichas
A Guiné Equatorial é um país miserável. Colonizada primeiro pelos portugueses em 1471 para servir de entreposto de escravos a ser distribuídos pelas suas colônias, o pequeno país composto por duas ilhas e um pedaço estreito de continente foi repassado por meio de um acordo aos espanhóis, em 1778. Hoje não oferece acesso à água a mais de 44% de seus 700 mil habitantes e ocupa o 144º lugar entre os 187 países que figuram no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU. Os gastos com educação e saúde não passam de 3% do PIB.
O ditador elevou o português a língua oficial junto com o espanhol e o francês, mas pelas violações de direitos humanos o país não conseguia ser aceito na Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) – formada, além do Brasil, por Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal, Timor Leste e São Tomé e Príncipe, com o qual faz fronteira. No ano passado, sob muitos protestos, acabou sendo aceito com a condição de abolir a pena de morte, mas causou indignação a todos os membros da CPLP, que tentam revogar a admissão.
Ao contrário da Imperatriz Leopoldinense, que também escolheu a África para apresentar seu samba enredo, em homenagem a Nelson Mandela, a África da Beija-Flor se resume às riqueza… da Guiné Equatorial – tomando cuidado para não ser confundida com as vizinhas Guiné, que sofre um surto de ebola, nem com a Guiné Bissau, que permaneceu portuguesa até a independência. Griô, o contador de histórias que está no título, contou a história errada. Segundo o cientista político da Anistia Internacional Mauricio Santoro, em entrevista à BBC, Obiang é o estereótipo tradicional do ditador africano .
A Beija-Flor não precisava disso. O carnavalesco Joãozinho Trinta fez a escola de Nilópolis 12 vezes campeã e, nos anos intercalados, outras 12 vezes vice-campeã. Limpou assim o vexame da escola que exaltava os feitos da ditadura militar nos carnavais de 1973 (“Educação para o Desenvolvimento”), 1974 (“Brasil no ano 2000”) e 1975, quando o tema “Grande decênio” trouxe para a avenida alegorias estapafúrdias que lembravam a Marinha Mercante, Rodovias, Ferrovias, Economia e Finanças… A inglória representação da “Vista Panorâmica da Ponte Rio-Niterói” coube à desajeitada Elza Rodrigues Sena. Cozinheiras, cozinheiros, marinheiros, índios, sambavam entre emblemas da Embratel, Petrobras, SENAC, Mobral, Eletrobrás e a letra cantava “viva o PIS e o PSEP…” Foi triste.
No ano seguinte, 1976, Joãozinho Trinta tornou a escola campeã com o tema “Sonhar com rei dá leão” e a partir daí, apostando no luxo (“Pobre gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelectual”, dizia), não parou mais: foram vitórias certas em 1977, 78, 80, 83, 98, 2003, 2004, 2005, 2007, 2008, 2011.
Agora a escola vem com o petróleo da Guiné Equatorial. Como o dinheiro faz milagres e uma escola gasta a metade para fazer o desfile – R$ 5,5 milhões –, ainda periga ganhar o carnaval porque é garbosa e quando passou não deveu nada a ninguém. A sofisticação das alegorias e adereços e o colorido das alas encheram o Sambódromo, e o samba puxado por Neguinho da Beija-Flor empolgou. Mas segundo a juíza Denise Frossard, responsável pela condenação da cúpula do jogo do bicho em 1993, a visibilidade que a Guiné Equatorial pretendia para incrementar o turismo “é paga com dinheiro que veio com sangue”. E nós, e todos os que leram as quatro matérias-denúncia publicadas pelo Globo (12, 13, 14 e 15/2) e uma na Folha de S.Paulo (16/2), sabemos qual é a verdadeira história do “griô” – e morremos de vergonha. Infelizmente a TV Globo, que tem o monopólio da apresentação dos desfiles com narração de Fátima Bernardes e Luis Roberto, omitiu a história.
Até o final do desfile o público aprendeu sobre cada um dos artistas globais presentes: todo o elenco da novela Império e das demais, o Boni que foi tema da Beija-Flor no ano passado mas não vingou, os passistas, mestres-salas e porta-estandartes convidados a dar um showzinho particular no estúdio denominado (mau gosto) “Globeleza”. Fátima Bernardes foi obrigada a ver o carnaval patrocinado pela Sadia e não pelas salsichas que representa e até o final do desfile o público da TV ficou sem saber se o embaixador da Guiné Equatorial no Brasil, Benigno Pedro Matute Tang, havia desfilado no último carro alegórico da escola, como ameaçou. Também não soube que a ditadura desfilava na avenida. Pagamos por mais essa.
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Em tempo – A Beija-Flor foi campeã absoluta de Carnaval 2015. O Globo (18/2), ao descrever o desfile de segunda-feira (16), já antevia o desfecho no título da matéria: “Luxo e precisão superam polêmica nos bastidores”. Na matéria, perdoava: “A controvérsia em torno do patrocínio arranjado pela ditadura da Guiné Equatorial foi esquecida por público e componentes [do júri]”. Esqueceram até o acinte do desfile na Sapucaí em cadeiras de rodas do bicheiro, patrono e presidente de honra da escola, Anísio Abrahão David.
A TV Globo não lê o Globo, mas quem leu sabia que o embaixador da Guiné Equatorial no Brasil, Benigno-Pedro Matute Tang desfilou, sim, no último carro da escola. Na quarta-feira, depois da vitória, o presidente da escola, Farid Abrahão David, minimizou a bobagem dos R$ 10 milhões doados pela ditadura da Guiné Equatorial à Beija-Flor este ano, que permitiu apagar o fiasco do desfile do ano passado homenageando José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni da Globo. “O enredo não fala de política. Fala de um povo que muita gente não conhecia…”
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Norma Couri é jornalista