Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Será a honestidade contagiosa?

O que ocorre com o professor de literatura Anastácio Penaforte faz lembrar a lenda do Estalo de Vieira, segundo a qual o padre Antônio Vieira, durante abençoada oração, teve um clique e mudou de burro a inteligente, agraciado com “clareza de entendimento, agudeza de engenho e sagacidade de memória”. O estalo de Anastácio Penaforte foi moral, de desonesto para o extremo oposto.

Transava com alunas em troca de boas notas, plagiava trabalhos acadêmicos, discriminava homossexuais, andava de ônibus pirata, engravidou menor de 16 anos e a obrigou a abortar, andava de bicicleta em faixas para pedestres, falava ao celular no teatro e ao volante, jogava no bicho, urinava no mar, comprava em camelô, jogava guimba no metrô, cuspia em calçadas, estacionava em vagas exclusivas para idosos ou cadeirantes…

Numa madrugada, após sonhos tumultuados, ele acordou assustado, com forte tremor no corpo. Era a purificação: “Passei a ver tudo claro, límpido e de forma abrangente. Passei a vislumbrar e rastrear este mundo exatamente como ele é”. A partir daí, nova vida: morreu um homem e outro nasceu, honesto, honestíssimo, radicalmente honesto.

A alusão a Franz Kafka, autor de A Metamorfose, está também no título da obra: Mierdamorfose ou o Semeador da Radical Honestidade, novo romance de Carlos Trigueiro.

Após revelar-se ao diretor da escola em que leciona, Anastácio Penaforte procura um delegado e despeja laudas de vileza nos papéis da Polícia Civil. Aconselhado a procurar médico, explica ao doutor Rubião as ocorrências e o informa sobre uma dificuldade que passou a ter: não consegue mais pronunciar a palavra “poder”, se acompanhada do adjetivo “público”. Só sai “phoder público”. Com som de efe, como no arcaico pharmacia.

O professor tem uma ideia que causa polvorosa em Brasília e o leva à cadeia: criar comissão para erradicar a desonestidade na vida pública, a funcionar permanentemente nas entranhas do governo federal. Um senador, temeroso de que a doença da honestidade seja contagiosa e desestruture o país, monitora-o. “E por que esse professorzinho de merda metido a garanhão não acordou baitola, ou poeta, ou gay, paranormal, ou cronista, ou surfista, ou músico, ou veado, ou lésbico, ou carnavalesco, ou motoqueiro, ou blogueiro, ou corno sabido, ou traficante, ou bicheiro, ou tatuador, ou paraquedista, ou palhaço de circo, ou doleiro, ou contorcionista, ou bispo evangélico, ou panfletista, ou macumbeiro, ou tarólogo, ou miliciano…”

Ficção e realidade

Quem esse professor pensa que é para querer acabar com algumas das tradições mais fortes do Brasil? Malversação, aliciamentos, subornos, sonegações, facilidades, protecionismo, falta de decoro, tráfico de influência, apadrinhamentos, desvio de dinheiro público, venda de sentenças, indústria de multas, superfaturamento em obras, licitações corrompidas, favorecimentos, supersalários, supercomissões, lavagens de dinheiro, propinas, remessas para o exterior, caixinhas, mensalões… Haja moinhos para contra eles lutar Dom Quixote.

Um dos três jornais favoritos de Anastácio Penaforte, O TREM é citado algumas vezes no romance, como neste trecho, já com o protagonista encarcerado: “Antes de sair, me disse que os jornais não eram permitidos, mas no meu caso de prisão provisória perguntou se queria ler algum. Respondi-lhe que os três únicos jornais que me interessavam eram: O TREM Itabirano, honesto e corajoso – de Itabira, Minas Gerais; Rascunho, de Curitiba-PR, e A Folha Dirigida, do Rio de Janeiro, voltada exclusivamente à Educação…”

Mierdamorfose… é crítica contundente ao Brasil do jeitinho, da corrupção, com passagens de fino humor, que provocam risos doloridos. Quando recebe ordem do senador para convocar todos os assessores para discutir o caso Penaforte, um assessor indaga: “Todos?” Todos, responde o político. “Mas meu doutor senador, além do problema do espaço – que não temos suficiente para tanta gente –, o ajuntamento de todos os nossos assessores vai parecer manifestação”.

Olhar ficcional sobre o país real, escreveu Carlos Trigueiro no exemplar que enviou aO TREM. Amazonense radicado no Rio de Janeiro, ele é graduado em administração pública pela Fundação Getúlio Vargas e pós-graduado em disciplinas bancárias pela Universidade de Roma. Morou também na Espanha, China e Estados Unidos. Assina esta locomotiva de papel desde março de 2012.

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Marcos Caldeira Mendonça é jornalista, editor dO TREM Itabirano