I
Depois de quase uma vida inteira dedicada ao estudo da obra eciana, com mais de trinta títulos publicados, o pesquisador A. Campos Matos (1928) decidiu se lançar àquele que considera o maior desafio de sua carreira literária ao assumir-se também como ficcionista, mas sem deixar de lado o seu culto a Eça de Queiroz (1845-1900). E assim produziu este Diário íntimo de Carlos da Maia (1890-1930), que acaba de sair à luz pelas Edições Colibri, de Lisboa, em edição restrita de 450 exemplares, dos quais 200 foram numerados e rubricados pelo autor.
Quem conhece a obra de Eça de Queiroz bem sabe que Carlos da Maia é personagem do célebre romance Os Maias (1888), protagonista do drama de incesto involuntário com Maria Eduarda, sua irmã dois anos mais velha. Inspirado nessa vida tumultuada, Campos Matos escreveu o que seria não a continuação de Os Maias, mas o imaginário percurso de seu protagonista durante o período de 40 anos (1890-1930) registrado por ele mesmo, depois do insólito caso familiar.
Nascido em Lisboa em 1855, Carlos da Maia teria sido assassinado em 1930, aos 75 anos de idade, a tiro de zagalote (bala de espingarda) por um vizinho inconformado com a perda de um terreno baldio de 350 hectares que dizia pertencer-lhe, mas que um juiz da Régua acabara de atribuir ao patrimônio da quinta de Santa Olávia, propriedade da família Maia à beira do rio Douro, em frente à estação de Aregos, local em que se passa boa parte do romance de Eça de Queiroz.
Estas informações constam de um introito que o filho de Carlos da Maia, Carlos Afonso, teria escrito para um hipotético terceiro volume de Os Maias, empreitada da qual teria desistido ao descobrir a existência do diário deixado pelo pai e preservado por sua mãe, Rosália, a filha do caseiro de Santa Olávia com quem seu progenitor casaria depois do conturbado caso de incesto com Maria Eduarda.
Obviamente, trata-se de um exercício de ficção da ficção a que Campos Matos se devotou, seguindo as pegadas de outros autores que também se inspiraram em personagens alheias. Campos Matos no posfácio que escreveu para este livro cita, entre outros, os casos do filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955), que escreveu Meditações do Quixote (1914), uma das principais obras de filosofia do século 20, do poeta e ensaísta Vasco Graça Moura (1942-2014), autor de Os Lusíadas para gente nova (2012), um diálogo com o texto de Luís de Camões (1524-1580), e o próprio Eça de Queiroz que produziu Correspondência de Carlos Fradique Mendes (1900), com base no primeiro Fradique, que é uma criação coletiva.
Sem contar a ficção inspirada em Eça de Queiroz artisticamente mais bem sucedida até aqui que é A bela angevina (2005), de José-Augusto França (1922), que não se baseia em personagem eciana, mas em quatro fotografias de uma desconhecida de Angers que foram localizadas em 1989 no espólio do escritor pela professora Beatriz Berrini. Vista ao lado de Eça numa das fotos, a desconhecida possivelmente teria vivido um enlace amoroso com o escritor durante o período em que este morou na França.
II
É de se lembrar que a narrativa de Eça de Queiroz em Os Maias tem início com Pedro da Maia, filho de Afonso da Maia, personagem educado de acordo com padrões românticos, que se casa com Maria Monforte, filha de um traficante de escravos e, por isso, também conhecida como “a negreira”. Dessa união, nascem dois filhos: Maria Eduarda e Carlos. O casal se separa logo depois. A menina fica com a mãe e o menino com o pai, que se suicida, depois que a mulher foge com um napolitano.
Descendente de uma família nobre da Beira, educado pelo avô, segundo padrões britânicos, Carlos da Maia forma-se em Medicina, mas nunca exerceria a profissão a sério. É um desocupado que está sempre acompanhado de João da Ega, ex-estudante de Direito em Coimbra, um tipo espirituoso e adepto do naturalismo em Literatura.
Após alguns encontros amorosos com a condessa Gouvarinho, Carlos conhece, por intermédio de Dâmaso Salcede, um tipo medíocre e balofo, a mulher de Castro Gomes, um brasileiro rico, e apaixona-se por ela. A amada rompe com Castro Gomes, com quem não era casada legalmente, e vai viver com Carlos da Maia, acompanhada de uma filha, criança ainda. É quando Joaquim Guimarães, um velho jornalista, entrega a João da Ega uma caixa de documentos a ele confiada por Maria Monforte em Paris, para que ele a encaminhasse a Carlos. Este julgava que a irmã, como a mãe, estivesse morta há muito tempo.
Ega lê os documentos e, aterrorizado, vai mostrá-los a Carlos: ele e sua amada, Maria Eduarda, a antiga madame Castro Gomes, eram irmãos. Desnorteado, Carlos volta a encontrar-se com a irmã, numa atitude de incesto consciente, de que, mais tarde, arrepende-se. Surpreendido com o reaparecimento da neta, que surgia como amante do irmão, o austero Afonso da Maia falece. A situação entre os irmãos só é solucionada após o funeral: Maria Eduarda, com a identidade esclarecida e seus direitos reconhecidos, volta para Paris, refaz sua vida e lá se casa. Já Carlos da Maia viaja para a América e o Japão, em companhia de Ega. Só dez anos mais tarde retornaria a Lisboa, fixando depois residência também em Paris, onde alia a falta do que fazer ao diletantismo.
III
Na ficção de Campos Matos, no começo de 1890, Carlos da Maia encontra-se a viver sozinho já havia dois anos num apartamento dos Champs Elysées, quando decide começar a registrar acontecimentos e reflexões que lhe “turbilhonam a mente”. É a época do ultimato inglês, uma advertência em forma de telegrama enviado ao governo português pelas autoridades inglesas, em que era exigida a retirada imediata das forças militares portuguesas dos territórios entre Angola e Moçambique, que correspondem aos atuais Zimbábue e Malauí.
Caso a exigência não fosse aceita por Portugal, a Inglaterra avançaria com uma intervenção militar. Diante da humilhante capitulação, Carlos da Maia faz uma reflexão que espelha boa parte do pensamento da elite lusa ilustrada ainda hoje em relação aos seus antepassados: “(…) Tão miseráveis, sem recursos na metrópole, mas sonhamos ainda com um grande império, para nos estiolar e enfraquecer. Absurda coisa! Não temos capacidade para progredir e trabalhar nesta nesga de terra que definha a olhos vistos, mas pretendemos tomar conta de quase um continente!…”
O desalento de Carlos da Maia com a própria elite portuguesa da qual descende é visível na anotação que faz em 1914, à época da deflagração da Primeira Guerra Mundial: “Os nossos soldados, analfabetos quase todos, e pessimamente preparados, vão ser trucidados por alemães bem armados e bem treinados”, prevê, citando em seguida palavras de Eça n’As Farpas: “(…) A Europa pensará que imensos territórios, pelo facto lamentável de pertencerem a Portugal, não devem ficar perpetuamente sequestrados do movimento da civilização.”
O diário registra acontecimentos de que Carlos da Maia participa como médico estagiário num hospital de Paris e, depois de uma viagem a Londres e uma passagem pelo Porto, o seu refúgio na quinta de Santa Olávia, onde continua o seu trabalho de espectador do mundo. Por todo o diário, não faltam reflexões sobre os acontecimentos que envolvem Portugal e o mundo nem alusões musicais ou referências à grande pintura e a religiões (em que ridiculariza o fenômeno do aparecimento de Nossa Senhora de Fátima a três pastorinhos analfabetos) e muito menos a autores franceses, como Honoré de Balzac (1799-1850), Guy de Maupassant (1850-1893), Marcel Proust (1871-1922) e Gustave Flaubert (1821-1880), e portugueses, como Antero de Quental (1842-1891), Camilo Castelo Branco (1825-1890), António Feliciano de Castilho (1800-1875), António Nobre (1867-1900), António Feijó (1859-1917), Pinheiro Chagas (1842-1895), Oliveira Martins (1845-1894), Raul Brandão (1867-1930), Aquilino Ribeiro (1885-1963), José Régio (1901-1969), Fernando Pessoa (1888-1935) e Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), ou ainda a Machado de Assis (1839-1908) e, naturalmente, a Eça de Queiroz, seu criador. De fato, Carlos da Maia não só se refere várias vezes ao seu criador como conta sobre as ocasiões em que esteve bem próximo dele sem se atrever a lhe dirigir a palavra.
A tal ponto chega a recriação que Campos Matos faz de personagens e ambientes ecianos que, às vezes, tem-se a nítida impressão que se lê o próprio Eça de Queiroz. É como se Campos Matos quisesse escrever o livro (ou o terceiro volume de Os Maias) que Eça escreveria se a vida não lhe tivesse sido breve, ao lhe reproduzir com perfeição o sarcasmo e a ironia, como o faz neste trecho em que Carlos da Maia analisa a própria atividade de ficcionista: “(…) Devo dizer a este propósito que é necessário ter cuidado com a veracidade do que escrevem os escritores, sobretudo os ficcionistas. Estão sempre prontos a sacrificar a verdade dos factos se entenderem que esse sacrifício lhes traz vantagens de forma e efeitos de estilo, ou satisfações à sua vaidade.”
É claro que isso só foi possível porque Campos Matos, à força do seu ofício de investigador, criou tamanha intimidade com Eça de Queiroz e sua obra que só mesmo de sua pena poder-se-ia esperar tal resultado. Um excepcional e feliz resultado.
IV
O arquiteto e historiador da literatura portuguesa Alfredo Campos Matos, nascido na Póvoa do Varzim, como Eça de Queiroz, tem vasto currículo queiroziano, que começou com Imagens do Portugal Queirosiano (1976). É autor em grande parte do Dicionário de Eça de Queiroz, publicado em 1988, que deu lugar a uma edição aumentada em 1993 e, em 2000, ao Suplemento ao Dicionário de Eça de Queiroz. Aliás, do Dicionário de Eça de Queiroz está para sair uma terceira edição pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, de Lisboa, que conta com numerosos colaboradores portugueses e estrangeiros.
Em 2014, Campos Matos publicou pela Editora Unicamp e Ateliê Editorial a edição brasileira (revista e aumentada) de Eça de Queiroz. Uma biografia, considerada desde que lançada em 2009 por Edições Afrontamento, do Porto, como a mais completa e mais rica biografia do romancista português. Ao final de 2014, publicou Eça de Queiroz – Correspondência (Adenda II), do qual é responsável pela introdução, organização e anotações. Publicado por Colares Editora, de Lisboa, o livro reúne duas cartas inéditas de Eça de Queiroz a Guerra Junqueiro (1850-1923), datada de 1878, e ao seu amigo Eduardo Prado (1860-1901), milionário brasileiro de quem se tornou amigo em Paris e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.
Publicou ainda Eça de Queiroz-Emília de Castro, Correspondência Epistolar (1995) e, posteriormente, Cartas de Amor de Anna Conover e Mollie Bidwell para José Maria Eça de Queiroz, cônsul de Portugal em Havana: 1873-1874 (1999). É também autor de Diálogo com Eça de Queiroz (1999), A Casa de Tormes, Inventário de um Patrimônio (2000), Viagem no Portugal de Eça de Queiroz (2000), A Igreja Românica de S. Pedro de Rates: Guia para Visitantes (2000), Eça de Queiroz, Marcos Bibliográficos e Literários (1845-1900), catálogo da exposição do Instituto Camões (2000), Ilustrações e Ilustradores na Obra de Eça de Queiroz (2001), O Mistério da Estrada de Ponte de Lima: António Feijó, Eça de Queiroz (2001), Sobre Eça de Queiroz (2002), Sete Biografias de Eça de Queiroz (2004), Dicionário de Citações de Eça de Queiroz (2005), Eça de Queirós, Postais Ilustrados (2006), A Guerrilha Literária Eça de Queiroz-Camilo Castelo Branco (2008), Eça de Queiroz. Correspondência (2008), Eça de Queiroz-Ramalho Ortigão, Retrato da “Ramalhal Figura” (2009), Silêncios, Sombra e Ocultações em Eça de Queiroz (2011) e Sexo e Sensualidade em Eça de Queiroz (2012), entre outros. No total, já publicou 36 livros, incluindo obras sobre arquitetura.
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros