Não muito tempo atrás, um dos grandes “dilemas” de quem almejava um dia escrever e publicar um livro no Amazonas era: moro aqui, mas não gostaria de escrever sobre Amazônia, floresta, biodiversidade etc. Pode parecer ingênuo, mas frustrava seriamente alguns, principalmente porque as principais referências literárias do estado têm esses temas como fontes de inspiração e assim conseguiram projeção nacional e internacional. Não que tais obras sejam ruins, muito pelo contrário, mas o que os aspirantes a escritor queriam era se enxergar em obras de ficção que eles consumiam na TV, no cinema, nos games e mais tarde na internet.
Há uma geração de novos escritores amazonenses na penumbra que passaram a vida consumindo ficções que se passavam em metrópoles a léguas de distância e que estão ambientando suas próprias aventuras em Manaus.
Uma dessas narrativas acaba de vir à tona, Os Guardiões da Humanidade – O legado do Falcão (Novo Século, 2014, 500 páginas), livro de estreia do tenente do Corpo de Bombeiros Militar do Amazonas Janderson Lopes, escrito em parceria com o ambientalista André Oliveira, que morreu ano passado aos 43 anos. A obra de ficção futurística com elementos míticos e mágicos é ambientada em uma Manaus à beira de uma guerra, no ano 2125 do século 22.
Na obra, Manaus é dividida entre a cidade alta (tecnológica, protegida por uma gigantesca cúpula que controla o clima) e a baixa (uma cidade antiga e alagada, representada pela figura do Teatro Amazonas). Muitos vivem ali, mas quase todos precisam ir à cidade alta trabalhar e estudar. Uma visão catastroficamente atual das grandes cidades dos países emergentes.
Nesse contexto somos apresentados ao protagonista, o introspectivo Peter Hawkson, morador de um dos prédios abandonados da baixa-Manaus. Após um trágico acidente, ele é salvo por uma garota misteriosa – episódio que acaba despertando nele habilidades até então desconhecidas, que o lançarão ao centro de uma disputa entre uma poderosa corporação de avançados recursos tecnológicos e uma aliança de monstros, humanos ascendidos e alienígenas.
É nessa profusão de acontecimentos que o herói descobre ser ascendente de um guardião da humanidade e detentor de uma penosa missão: manter a paz entre os dois mundos.
A obra, escrita em um ano, teve como principal fonte de inspiração os jogos de RPG, sigla abreviada da expressão role playing games, que significa “jogos de interpretação de papéis” e é responsável por criar mundos imaginários. Foi jogando com os amigos que a ideia do livro nasceu e a vocação literária do autor foi estimulada, como ele explica na seguinte entrevista.
Interações com as lendas amazônicas
Como surgiu a ideia de uma ficção futurista ambientada em Manaus?
Janderson Lopes – Tudo surgiu com um jogo de RPG narrado pelo André Oliveira (que escreveu comigo e acabou falecendo em 2014). Eu e uns amigos jogávamos uma aventura narrada entre 1940-50, onde nossos personagens viajavam o mundo, mas tinham sempre Manaus como ponto-base. O mundo proposto pelo André era repleto de lendas e magia, monstros e mitos, inclusive os amazônicos (como o mapinguari). Jogamos por mais de três anos e quando demos um tempo na aventura, entrei em contato com ele para colocarmos no papel algumas dessas aventuras vividas pelos personagens e foi isso que fizemos no começo. De uma variação futurística da aventura que jogávamos surgiu Peter Hawkson. Projetamos assim a nossa Manaus para 110 anos no futuro.
Como o leitor amazonense pode se enxergar na obra? Há muito regionalismo?
J.L. – Acho que todo amazonense que gosta da leitura, e que gosta de ficção, não espera que eu o descreva como um caboclo em pleno século 22. Sinceramente, já vivemos num mundo globalizado. É fato que somos influenciados dia-a-dia por filmes e modas internacionais. Perguntam-me sempre por que o personagem principal tem nome americanizado, como se em nossa própria sociedade esses nomes não existissem. Acredito que o futuro nos reservará uma miscigenação cultural ainda maior. A lembrança regional, porém, está gravada nos marcos e pontos turísticos, como o famoso Teatro Amazonas. Outra lembrança regional também se faz presente na vida de Peter e nas futuras interações com as lendas amazônicas, algo que os leitores verão no próximo volume.
Planejado para uma trilogia
Quem são as tuas principais influências literárias?
J.L.– C. S. Lewis; J. R. R. Martin; J. K. Rowling; J. R. R. Tolkien, Rick Riordan, entre outros.
O que é exatamente um guardião da humanidade?
J.L. – Na aventura existe um mal ainda não revelado, poderoso em poder e terrível em maldade, que está lutando para dominar todos os mundos. Os guardiões são todos os humanos comuns e humanos ascendidos (alfas, arcanos e singulares), bem como elfos, vampiros e qualquer outro que se levante contra esse terrível mal que de tempos em tempos surge no mundo para tentar dominá-lo.
Como a tua profissão de bombeiro interfere no teu processo de escrita?
J.L. – Ele apresenta dois tipos de interferência, uma boa e uma ruim. O bom é que na minha profissão vejo e vivo muita coisa, o que me abre a mente e me inspira. O lado ruim é que há sempre momentos de desgaste e exaustão.
É muito interessante ver, nos últimos anos, muitas aventuras fantásticas e ficções científicas escritas por autores brasileiros. Quais são as dificuldades de quem resolve se aventurar por esses gêneros no Brasil, onde o público está acostumado a consumir produções importadas?
J.L. – A barreira começa na publicação, em achar uma editora que acredite ou queira estabelecer uma parceria com o escritor. Depois, segue para a dificuldade em divulgar e expor o livro publicado, o que é sempre complicado e exaustivo. Por último, caímos nessa dificuldade que é do leitor olhar para nosso livro ainda desconhecido e apostar nele.
Dá para considerar Os Guardiões da Humanidadeuma série?
J.L. – Sim, com certeza. Foi planejado para ser uma trilogia e por isso já estou escrevendo o segundo volume que se chamará O Despertar do Dragão.
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Luiz Guilherme Melo é jornalista e formado em Letras (Língua e Literatura Portuguesa) pela Universidade Federal do Amazonas