Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Eles sabem tudo de você

Há três anos em asilo político na embaixada do Equador, em Londres, Julian Assange virou uma espécie de mito em Londres. Nunca visto, mas sempre presente, o fundador do site WikiLeaks lança no Brasil o livro Quando o Google Encontrou o WikiLeaks (Boitempo), no qual narra um encontro que teve com Eric Schmidt, presidente do conselho do Google, e acusa a empresa de tecnologia de fornecer dados privados de usuários para o Departamento de Estado dos EUA e a NSA, Agência Nacional de Segurança ­ a mesma que espionou a presidente Dilma Rousseff e a Petrobras, de acordo com documentos revelados pelo agente americano Edward Snowden.

Assange recebeu o Valor no prédio oficial que virou sua casa por tempo indeterminado. Apesar dos rumores de que os três anos em asilo teriam prejudicado a saúde do jornalista e hacker, ele parecia bem-humorado durante o encontro de uma hora. Vestindo jaqueta de couro marrom, ele fala baixo, mas com entusiasmo. Pensa demoradamente antes de cada resposta e abre grandes parênteses entre frases, mexendo nos longos cabelos brancos e coçando a barba, também branca. “O Google é o maior sistema industrial de vigilância que o mundo já viu. É algo novo no mundo, no mesmo sentido em que a invenção da bomba atômica mudou a maneira como povos, Estados e economias se relacionavam”, diz. Procurado pelo Valor, o Google preferiu não comentar as afirmações de Assange.

A embaixada ocupa parte de um prédio que abriga também a embaixada da Colômbia em Londres. O edifício é vigiado 24 horas por dia pela polícia britânica, o que custou aos cofres do governo da Inglaterra £ 10 milhões [cerca de R$ 44,5 milhões] até agora. Do lado de fora, turistas e curiosos tiram fotos na esperança de flagrar Assange ou algum de seus amigos famosos, como Lady Gaga, espiando pela janela.

Do lado de dentro, smartphones e câmeras fotográficas são proibidos para garantir a segurança do asilado. Protegido por um batalhão de assessores, Assange luta por liberdade de informação, mas é envolvido em uma aura de mistério. Perguntas se as acusações de estupro das quais foi alvo em 2010 – e pelas quais recebeu um pedido de extradição do governo da Suécia – foram vetadas.

A MI6 deu consultoria ao Paquistão em sistemas de identidade

Qual é a maior ameaça que uma empresa como o Google oferece a um cidadão comum?

Julian Assange – Algo mais relacionável do ponto de vista individual é que a soberania de uma sociedade inteira é afetada por isso. Se a NSA espiona empresas brasileiras como a Petrobras, isso torna essas empresas mais frágeis. E os brasileiros vão sofrer os efeitos disso em sua economia, já que a intenção é fazer que essas empresas sejam tomadas por organizações internacionais. Além disso, todas as informações são coletadas. Significa que se você tem um smartphone, como muitas pessoas têm, o Google sabe onde você esteve, pelo que você procurou, como se movimentou na cidade há um dia, dois meses ou três anos. O Google o conhece melhor que você. Você pode pensar: tudo bem, entendo que o Google e a NSA são ameaça para a soberania da América Latina ou a força de empresas como a Petrobras. Mas isso me afeta? Não se esqueça que essa informação coletada pelo Google pode ser fornecida para o governo brasileiro, para a polícia brasileira, o que já ocorre em pequena escala. Se você é um ativista no Brasil, por exemplo, o Google pode fornecer informações sobre você para a polícia, violando sua privacidade.

Já vivemos em um mundo onde os governos veem e sabem de tudo?

J.A. – Sim, até em países pequenos. Revelamos que uma companhia de vigilância francesa vendeu sistema de segurança para Muammar Kadafi [ditador da Líbia morto em 2010] em 2009. O governo francês, por meio desse sistema vendido por uma empresa privada, pôde mapear todo o sistema de poder na Líbia. Essas informações certamente foram usadas depois para desestabilizar o país inteiro. Revelamos um sistema em que a [agência de inteligência e espionagem britânica] MI6 criou uma empresa em Londres, a Identity Systems, que atuou dando consultoria para o Paquistão em sistemas de identidade. Eles obtiveram todas as informações, impressões digitais, fotos, dados de identidade, de uma população inteira.

“Hillary Clinton é uma liberal intervencionista”

Em um acordo após os ataques terroristas em Paris, em janeiro, a Europa aumentou a detenção de cidadãos não europeus em suas fronteiras. Detenção em massa e a coleção de dados em massa ajudam a prevenir terrorismo?

J.A. – Os grandes países da Europa tentam produzir um sistema muito particular. Querem manter salários baixos e, para isso, precisam de imigrantes. Mas a imigração também produz efeitos negativos. Incluindo, raramente e ocasionalmente, militância islâmica dentro deles. Ao mesmo tempo, querem destruir países como o Iraque e a Líbia para roubar seu petróleo, enfraquecer a Síria para desestabilizar a Rússia. A soma desses fatores resulta em vigilância em massa. Se esses países europeus fechassem completamente suas fronteiras, isso diminuiria o terrorismo, mas levaria a um aumento dos salários. Eles não querem isso. Se parassem de invadir países no Oriente Médio, as motivações para ataques terroristas e o fluxo de armas e treinamento militar nesses países diminuiria, mas a Europa também não deseja isso. O resultado é a abordagem agressiva nas fronteiras, além de criar sociedades incrivelmente totalitárias.

Há grande chance de Hillary Clinton ser a candidata à Presidência no ano que vem…

J.A. – Ela já está concorrendo há algum tempo, de alguma forma [risos].

Dada a história dela com o WikiLeaks, já que vocês publicaram milhares de documentos diplomáticos dos EUA quando ela era secretária de Estado, qual será o impacto nas políticas de inteligência dos EUA caso ela seja eleita?

J.A. – Pesquisei isso hoje, ela é a favorita para ganhar as eleições. Eric Schmidt, do Google, tem uma aliança muito forte com ela. E o diretor do Google Ideas já trabalhou diretamente com Hillary. Há uma enorme intersecção entre o Google e o Departamento de Estado dos Estados Unidos e a campanha de Hillary. O que isso vai significar? Primeiro, não tenho tanta certeza de que ela vá ganhar. Não podemos nos esquecer de que os americanos a odiavam tanto que, apesar de ela ter acesso à rede política de Bill Clinton, preferiram eleger um candidato negro cujo nome do meio é Hussein. Sim, ele sempre foi uma fraude, de certa forma, mas Hillary irritou muita gente no passado. Ela tem trabalhado em sua campanha eleitoral há quatro anos, e isso é visível, por exemplo, quando se analisa a Clinton Foundation. Essa fundação é uma fachada para a campanha de Hillary. Ela era secretária de Estado quando publicamos no WikiLeaks os documentos diplomáticos dos EUA. Tivemos uma enorme briga com o Departamento de Estado e tive a chance de observar como Hillary funciona. Suspeito que ela não se esqueceu essa experiência [risos]. Ela é… [pensa]. Difícil dizer… uma liberal intervencionista e uma pessoa muito dura. Está em sintonia com a ideia de “excepcionalidade americana”, mas não da mesma forma que [o ex­presidente] Ronald Reagan. É uma forma mais sofisticada, menos kitsch, que flerta com todas as grandes empresas americanas. Ela é muito boa nisso. Hillary tem a personalidade de um predador, mais até do que Obama. Ele parece ter deixado as agências de inteligência americanas em paz, talvez por não ter muita experiência na área. Já Hillary certamente vai encorajar essas agências, e os militares, a fazer o máximo que puderem.

“Suspeito que nos próximos anos Snowden vá ao Brasil

Após o escândalo de espionagem de Dilma Rousseff e da Petrobras pela NSA, algumas medidas têm sido discutidas para proteger a soberania do Brasil na internet, incluindo construir uma nova rede de cabos submarinos que não passe pelos EUA. Isso resolveria o problema?

J.A. – É um problema complexo que pede soluções diferentes. Para a América Latina e o Brasil, há três ameaças que vêm dos EUA e de seus aliados. Em primeiro lugar, a retenção em massa de dados que passam fisicamente pelos EUA por cabos submarinos. Em segundo, empresas como o Google, que sugam as informações de populações inteiras por meio de serviços como o Gmail e repassam esses dados para agências de inteligência. Em terceiro, a possibilidade de, por exemplo, os EUA desligarem a internet na América Latina ou no Brasil para aplicar sanções, na eventualidade de uma disputa ou conflito, o que criaria um desastre econômico. A resposta para o terceiro problema é criar uma rede de telecomunicações que não passe fisicamente pelos EUA e aliados. Para proteger telecomunicações que passam pelos EUA a resposta é criptografar esses dados, o que não é tão complicado. Se o Brasil criar uma lei na qual determina que telecomunicações internacionais devem ser criptografadas, é preciso também atualizar esses sistemas e o equipamento com frequência, já que a NSA gasta US$ 350 milhões por ano subornando empresas de tecnologia para poder hackear sistemas pelo mundo. Para evitar que empresas como o Google e o Facebook obtenham informações por meio de serviços, é preciso encorajar o uso de serviços diferentes e mais seguros. O governo brasileiro deve investir em universidades para criar novas formas de criptografia e subsidiar novas empresas de tecnologia ­ é preciso entender que a maior parte dessas empresas não vai prosperar, mas, se uma delas criar a tecnologia certa, milhões de pessoas vão usá­la. Além disso, a segurança das informações de Dilma Rousseff e seu gabinete precisam ser reforçadas, o que é difícil, porque a maior parte das empresas de tecnologia do mundo, especialmente as que integram a União Europeia, trabalham com a NSA.

O senhor acredita que o Brasil deveria ter oferecido asilo político a Edward Snowden?

J.A. – Sim. O WikiLeaks mandou pedidos silenciosos de asilo para Snowden a mais de 20 países, incluindo o Brasil, e a maioria foi negada por tecnicalidades. Se Snowden tivesse chegado ao Brasil ou à embaixada brasileira e pedido asilo, o governo Dilma acabaria oferecendo porque pareceria muito fraco se não o fizesse. O governo não quis lidar com essas complicações. Acredito que as tensões criadas por esse escândalo entre o Brasil e os EUA foram boas para o Brasil, apesar de, no curto prazo, terem criado algumas dificuldades operacionais. Mas acho que criou consciência para os brasileiros. Snowden conseguiu o asilo na Rússia e pode viajar, tem documentos para viajar. Suspeito que nos próximos anos ele vá ao Brasil.

“É o quinto ano que os EUA fazem essa investigação sobre nós”

O senhor e Snowden têm contato?

J.A. – [Pausa] O WikiLeaks criou uma campanha para fundar a defesa de Snowden. [Hesita] Não quero dizer nada que possa prejudicá­lo, mas… monitoro a situação dele de perto e com muito cuidado.

Em relação ao seu asilo. Por que o governo da Suécia se recusa a dialogar com o senhor? E como está a situação com o Reino Unido e os EUA?

J.A. – Os Estados Unidos querem parecer fortes, o Reino Unido quer parecer forte, a Suécia parece estar constrangida com o papel que tem exercido em toda essa história. Vou dar um exemplo disso. Há semanas, os EUA divulgaram formalmente que a investigação contra o WikiLeaks continua, sob a acusação de conspiração para cometer espionagem. Isso é uma grande ameaça para o jornalismo. O que dizem é que se um jornalista trabalha com uma fonte para obter informações faz parte de uma conspiração para cometer espionagem. A rotina de uma organização de mídia inclui o trabalho com fontes e, portanto, significa que todos os jornalistas e organizações de mídia, de acordo com os EUA, praticam espionagem. O governo americano está tentando aplicar as suas leis a todas as organizações de mídia do mundo, sob o pretexto de que, se publicar informações sobre os EUA, você cai sob a sua jurisdição.

Em que ponto está a investigação?

J.A. – É a maior investigação do mundo envolvendo uma organização de mídia, que inclui 12 departamentos diferentes do governo americano, incluindo o FBI, a CBI, o Pentágono, os Departamentos de Justiça e de Estado, entre outros. É o quinto ano dessa investigação, que, de acordo com o que tenho ouvido, agora inclui a nossa relação com Edward Snowden. Há forte pressão do governo americano sobre suas agências de inteligência para que o público não entenda que eles perderam para nós.

“O New York Times publicou que torturei gatos”

As investigações prejudicaram as operações do WikiLeaks?

J.A. – Eles pediram que destruíssemos todos os documentos que obtivemos e publicamos. Não fizemos nada disso e publicamos todos os documentos. Não interrompemos as operações, apesar de bloqueio bancário que envolveu empresas como MasterCard, Visa, PayPal… E vencemos o bloqueio na Justiça. Temos um número cada vez maior de pessoas trabalhando na nossa organização e manobramos a fuga de Snowden contra a maior caçada que as agências de inteligência já conduziram. É muito importante para esses países e agências que eles pareçam fortes e projetem uma imagem de poder para o mundo. Essa é a força que usam para exercer influência. Na cabeça das pessoas, os EUA são extremamente poderosos. Sim, poderosos de muitas formas. Mas também podem ser manobrados e se você for rápido. Até por uma pequena organização. Um Estado, por definição, é uma organização que detém poder sobre determinado território. Eu e o governo do Equador quebramos essa percepção. Há partes do território do Reino Unido que o governo britânico não controla. Ok, é uma embaixada, há vários acordos. Mas é uma ameaça enorme para o prestígio do Reino Unido.

De que forma essa ameaça se dá?

J.A. – Você pode ver isso nas declarações de Boris Johnson, o prefeito de Londres. Há um ano, em um grande discurso sobre como Londres será em 2030, disse que o Reino Unido, sua população, seu PIB e sua taxa de crescimento serão maiores que o da Alemanha. Para o establishment britânico, essa é a grande ameaça ao prestígio do Reino Unido, a Alemanha. Além disso, disse: em 2030, Julian Assange ainda estará na Embaixada do Equador em Londres, mas perdida estará a ideia de que o Reino Unido está em declínio. O establishment de Londres compara seu prestígio à minha saída desta embaixada. É lisonjeiro, mas absurdo, comparar a minha posição nesta embaixada à posição geopolítica da Alemanha.

Do que o senhor mais sente falta?

J.A. – Não gosto de falar disso para não dar a eles o prazer de ouvir a resposta. A situação é difícil para a minha família, eles não pediram por nada disso. Essa é a maior dificuldade. Fora isso, não falo sobre o assunto porque não darei a esses idiotas o prazer de saber o que me faz falta. Estou envolvido no meu trabalho. Considero uma grande vitória que uma pequena empresa de mídia conseguiu, apesar de um bloqueio bancário, ser atacada por 12 agências de inteligência diferentes, sobreviver e fazer algo extraordinário. Às vezes, eu mesmo fico chocado.

O senhor fica surpreso com o fato de ter virado uma celebridade? Já recebeu visitas de famosos, é tema de uma sitcomna BBC, filmes…

J.A. – No começo, sim. À medida que o tempo passa, damos risada. É absurdo. As pessoas que se tornam famosas, ou infames, no meu caso, o seu mito público é algo separado de você. É por isso que pessoas famosas às vezes falam de si mesmas na terceira pessoa. O mito criado ao seu redor não diz muito sobre você, é criado e alimentado por seus oponentes e pelas pessoas que o apoiam. As pessoas que você conhece ou a sua família apenas dão risada de coisas como o New York Times publicando que torturei gatos. Ou mesmo da forma heroica como você é retratado às vezes.

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Gabriel Marchi, para o Valor Econômico, em Londres