O mundo ocidental parece caminhar para um consenso sobre a descriminalização e liberação do uso recreativo da cannabis (maconha) em suas duas espécies mais populares e conhecidas: a sativa e a indica. Mas ainda há muita oposição no caminho do consumo livre da marijuana. Foram estas as principais conclusões da excelente matéria publicada no Globo (1/3) pela repórter Dandara Tinoco.
Ela abordou casos de pessoas adultas e responsáveis que cansaram da convivência com o crime para a obtenção de maconha. É gente que quer cortar de vez os laços com o tráfico de drogas e está disposta a pagar os altos custos do cultivo da cannabis. O plantio dentro de casa da marijuana é muito caro: exige estufa, iluminação cara, refrigeração e tubos de exaustão de ar para dentro e para fora da estufa. Além de fertilizantes e técnicas especiais de cultivo que demandam tempo e muito dinheiro para pagar a imensa conta de eletricidade. O plantio individual não envolve economias de escala e sem elas os preços estão sempre em alta para o cultivador. Neste caso, o consumo torna-se caro demais para o consumidor médio. Só os mais abastados saem ganhando. Ou melhor, fumando.
O assunto é sério e não permite leviandades ou brincadeiras. O coronel da reserva da Polícia Militar José Vicente da Silva Filho, ex-secretário Nacional de Segurança Pública, acredita que a opção pela maconha como droga a ser liberada é mais aceitável que o tráfico do crime organizado, mas quando o assunto é droga, a atividade deve ser regulada: “Sem regulação, a turma do mal pode se aproveitar da situação e se passar por cultivador”. No fundo, o coronel é um pragmático militar liberal que reconheceu as enormes vantagens do cultivo sobre o tráfico criminal.
Enquanto isso, em Washington DC, a capital americana, a maconha foi liberada em pequenas quantidades para maiores de 21 anos, publicou o portal UOL Notícias (25/2). Colorado e Alaska também legalizaram o uso recreativo da cannabis para maiores de idade. O uso deve ser privado, para continuar legal. A situação ainda é precária, do ponto de vista da lei norte-americana. A maioria dos congressistas e senadores é contra a liberação da maconha.
Não haverá devolução de impostos
Os canabistas americanos beneficiam-se da grande autonomia legal que os estados gozam dentro da União. Mesmo assim, qualquer legislação local não pode estar em contradição com a lei federal. Os estados que liberaram a maconha para uso recreativo o fizeram através de emendas legislativas temporárias que podem ser desfeitas se a conjuntura mudar.
A legalização da maconha para uso recreativo nos Estados Unidos teve um importante aliado em um jornal sobre o qual já comentei na edição 777 deste Observatório. No Colorado, centro dos Estados Unidos, o diário Denver Post teve um papel fundamental na preparação da comunidade local e das autoridades para a liberação da maconha. Ricardo Baca, ex-editor de música e entretenimento do jornal, alguns dias depois da primeira venda legal da maconha em seu estado, passou a editar o blog The Cannabist (O Canabista) desde o início de janeiro de 2014. A publicação é totalmente dedicada à cultura da cannabis em seus diferentes usos: medicinais, recreativos, experimentais e alimentícios, entre muitos outros.
No início de janeiro deste ano, o Canabista (27/1) publicou um problema inusitado, supostamente atrelado ao sucesso da liberação do uso recreativo da marijuana: o negócio, com mercado regulado e amparo legal, cresceu tanto que o IRS, o equivalente ianque à nossa Receita Federal, talvez tivesse que devolver dinheiro à população, graças às vendas de cannabis. A matéria veio da Associated Press e continha um erro grave. Erro que foi propagado na reedição de Ricardo Baca (que não conferiu a fonte) e espalhou-se pela mídia: o governo vai devolver dinheiro a cada cidadão do estado por causa do sucesso nas vendas da maconha. Errado. O Daily Beast (12/2) informou a verdade: o Colorado não vai receber devolução de impostos por suas vendas de maconha porque os negócios do “bagulho” não vão tão bem como se esperava. De 69 milhões de dólares esperados com a liberação, o estado recebeu um total de 44 milhões, ficando aquém das expectativas locais. Não houve nem haverá devolução de impostos originados da venda da maconha porque a autora do artigo falhou ao explicar que a causa real da esperada devolução fiscal não foi a venda de cannabis, mas a lei tributária do estado, explicou Tim Hoover, porta-voz do CFI, o Instituto Fiscal do Colorado.
Experiência não deve ser desencorajada
Já era tarde. A revista High Times republicou o artigo. Que passou pela Rolling Stones, pelo Huffington Post e outros veículos da mídia. A história ficou ainda mais confusa porque parte dela é verdade: a devolução de impostos vai acontecer porque a economia americana cresceu. Pouco, mas cresceu. E o sistema tributário do estado foi beneficiado. a venda da maconha não foi tão grande assim, mas, de alguma forma, contribuiu para a economia do estado.
O Daily Beast jogou um balde de água fria na fantasia dos lucros exorbitantes da venda legal da maconha. Na realidade, o consumo diminuiu. Pelo menos nos dispensários legalizados. A turma do Colorado anda fumando menos, ou comprando de outras fontes. Como a maconha medicinal, ou traficantes comuns. A verdade crua é que a venda legal da maconha no Colorado foi taxada além dos limites do poder de compra da maioria dos consumidores. Ficou cara para o usuário comum, depois dos impostos. No Colorado, quem quer fumar maconha em liberdade tem que arcar com 30% de impostos atrelados ao preço da cannabis no estado.
A experiência levada a cabo no Colorado foi arrojada e não deve ser desencorajada por um erro de imprensa. Acabar com o monopólio do crime organizado sobre a marijuana é o grande desafio daqueles que não têm medo do conservadorismo da maior parte da sociedade que se recusa a discutir a sério a questão da legalização da maconha.
******
Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor