Por estar convicto de que a imprensa é um poder que pode estar na contramão dos interesses do país, o general De Gaulle decidiu criar um jornal para defender os interesses da França, recém-libertada da ocupação alemã, que durou quase cinco anos. Nascia o Le Monde.
O primeiro número do diário vespertino foi publicado dia 18 de dezembro de 1944 (com data do dia seguinte, como até hoje). Surgiu da determinação do general de Gaulle de dotar o país de um jornal prestigioso voltado para o mundo. Mas, logo nos primeiros anos de vida, a redação se libertou do peso de cotidiano oficioso pois os jornalistas tinham um projeto de jornal totalmente independente.
Convidado a dirigir o Le Monde, Hubert Beuve-Méry não tinha vocação de vassalo do poder. Fundou uma sociedade de responsabilidade limitada e depois a Société des Rédacteurs du Monde para defender a independência da redação e deixou claro que não aceitava estar sob a proteção ou dependência de qualquer poder, político ou econômico. No primeiro editorial Beuve-Méry deu o tom : “O jornal vai garantir ao leitor informações claras, verdadeiras e, na medida do possível, rápidas e completas”.
Nascia o mais respeitado jornal francês, conhecido como “le quotidien de référence” por seu compromisso com o jornalismo isento, no qual os jornalistas decidem de A a Z o conteúdo editorial. A atual “Charte d’éthique et de déontologie” (Código de Ética), reescrita para se adaptar às novas mídias sem nunca se afastar dos princípios fundadores, diz claramente : “A independência editorial das publicações do grupo Le Monde em relação aos acionistas, anunciantes, poderes públicos, políticos, econômicos, ideológicos e religiosos é condição necessária a uma informação livre e de qualidade”.
Logo no preâmbulo a “Charte d’éthique” assinala que seu objetivo é “definir os princípios essenciais de independência, de liberdade e de fiabilidade da informação, além de precisar os direitos e deveres dos jornalistas, dos dirigentes assim como dos acionistas.”
O caso HSBC
No mês de fevereiro deste ano, o jornal deu, mais uma vez, provas de sua absoluta liberdade de edição em relação aos acionistas ao publicar em duas edições seguidas o furo sobre o sistema de fraudes fiscais de contribuintes do mundo inteiro que tinham contas na Suíça, no banco inglês HSBC.
No dia seguinte à primeira publicação pelo Le Monde de algumas dezenas de contribuintes franceses – de uma lista de 3 mil que para escapar do fisco francês se beneficiaram do guarda-chuva do HSBC – dois dos três acionistas do jornal, Mathieu Pigasse e Pierre Bergé, declararam publicamente, em entrevistas, não concordar com a decisão editorial.
Mathieu Pigasse, diretor-geral do Banco Lazard, conhecido por suas posições de esquerda e por seu interesse particular pela imprensa (detém parte do grupo Le Monde, juntamente com Pierre Bergé e Xavier Niel, além da revista Les Inrocks) criticou a decisão editorial de publicar nomes como um certo “populismo” ou “macartismo fiscal”. Mas declarou-se “orgulhoso” pelo trabalho de investigação feito pelos jornalistas do Le Monde.
Pierre Bergé – ex-companheiro de Yves Saint-Laurent, criador e responsável pelo sucesso da marca do estilista –, que viu a publicação de nomes como uma espécie de “delação”, lembrou: “Eu me comprometi por escrito a não intervir no conteúdo do jornal, o que sempre respeitei. Mas não me comprometi a me calar e não criticar as matérias”. Entre os direitos dos acionistas não consta no código de ética nenhuma intervenção no conteúdo editorial. Isso faz deles um leitor como outro qualquer.
De fato, o código de ética do jornal, assinado por seus três acionistas ao comprar o título em 2010, diz que o papel deles é “definir a estratégia da empresa e não tentar pesar sobre o sentido da informação”, como assinalou a Société des rédacteurs du Monde (SRM), que viu nas críticas dos dois acionistas uma “tentativa de intrusão no conteúdo editorial do jornal”. O presidente atual da SRM, Alain Beuve-Méry, afirmou que, como leitores, tanto Pigasse quanto Bergé podem se expressar e criticar o jornal à vontade. Como acionistas, têm que respeitar a código de ética, ou charte d’éthique, que assinaram.
Jornalistas fuzilados depois da libertação de Paris
Le Monde tem a política no seu DNA. Nasceu como herdeiro natural do jornal Le Temps, acusado de colaboração com os nazistas. Dele herdou a apresentação gráfica sóbria, além de parte da redação e o local na Rue des Italiens. A imprensa que colaborou com o ocupante e com o governo fantoche do marechal Pétain, instalado em Vichy, desapareceu com a vitória dos aliados e o restabelecimento da democracia. Alguns dos diretores dos jornais colaboracionistas foram julgados e fuzilados, como Georges Suarez, que dirigia o jornal Aujourd’hui, patrocinado pela embaixada alemã. Foi o primeiro jornalista condenado à morte depois da libertação de Paris, em 1944. Apesar de judeu, Suarez vendera a alma ao nazi-fascismo.
No imediato pós-guerra, o papel era drasticamente racionado e o Le Monde, como outros jornais, começou a circular em folha única impressa dos dois lados. Ao completar 70 anos em dezembro de 2014, o jornal comemorou a publicação de 21 mil números.
Com o tempo, o jornal foi se tornando um grupo de imprensa poderoso e multifacetado que hoje conta diversos títulos, entre eles o jornal online lemonde.fr, o Le Monde Diplomatique, Le Monde des Religions, o Courrier International, as revistas Télérama e La Vie.
Para a direita ele é à esquerda demais. Uma esquerda mais radical o considera de centro-esquerda e o critica por não tomar posições mais claras defendendo os países mais frágeis contra o poder da Troika, como no caso da Grécia. No entanto, para jornalistas de todos os espectros do leque político, o Le Monde é um modelo. Tornou-se o ”jornal de referência” na avaliação de jornalistas e políticos por sua ética e sua independência.
Mas nenhum jornal pode se tornar uma referência se não tiver como norte os três princípios que abrem a lista dos “deveres dos jornalistas” do Le Monde:
1. Respeitar a verdade, quaisquer que sejam as consequências para si mesmo, em razão do direito que o público tem de conhecer a verdade;
2.Defender a liberdade de informação, de comentário e crítica;
3. Publicar somente informações cuja origem é conhecida ou então acompanhá-las das reservas que se impõem; não suprimir as informações essenciais e não alterar os textos e documentos.
Em outro texto do código de ética do jornal lê-se que as diversas mídias do grupo têm por vocação fornecer uma informação de qualidade, precisa, devidamente checada e equilibrada. Os jornalistas devem ter um olhar crítico sobre os acontecimentos e os jornais do grupo devem expressar o pluralismo das opiniões.
Quantos jornais e revistas da grande imprensa brasileira poderiam garantir que respeitam esses deveres básicos do bom jornalismo?
Para garantir a pluralidade da informação, a République Française subvenciona, através de ajudas diretas e indiretas, os órgãos de informação, abrangendo todo o espectro ideológico. Assim, seja o comunista L’Humanité, o católico La Croix, os jornais de centro-esquerda Le Monde e Libération ou o direitista Le Figaro, todos recebem subvenções do Estado. No orçamento de 2013 estas se elevavam a 513 milhões de euros, segundo o Projeto de Lei de Finanças. Além dessas ajudas diretas, o Estado também garante tarifas de postagens especiais para os jornais e um sistema fiscal que beneficia os 36 mil jornalistas franceses.
Exatamente um mês depois do atentado que dizimou a redação do jornal satírico Charlie Hebdo, foi aprovada nova lei de ajuda à imprensa que prevê isenção fiscal de pessoa física para doações a empresas jornalísticas com menos de 50 assalariados. A lei recebeu o nome de Charb, o diretor de Charlie, morto no massacre de 7 de janeiro.
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A resistência dos jornalistas – L.D-P,
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Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris