A comparação entre a pena e a espada pode ter feito sentido no passado, mas hoje o mantra bélico segundo o qual o repórter é como um soldado não tem razão de ser. O papel da imprensa é informar e criar condições para que ideias divergentes possam “conversar” entre si
Se há um lugar-comum na cultura jornalística, é a comparação entre a pena e a espada. A toda hora, em todo lugar, em charges, artigos, livros e panfletos, eis que surge alguém para dizer que a caneta é uma arma ainda mais poderosa que o fuzil. Muita gente que trabalha nas redações embarca na mesma metáfora e acaba, de forma irrefletida, dando curso ao velho mantra bélico (sim, uma contradição em termos) segundo o qual o bom repórter é mais ou menos como um bom soldado, o redator-chefe é um bom general de brigada e a redação é uma tropa. Trabalhar em jornais seria mais ou menos como tomar parte em guerras intermináveis contra nefandos inimigos, cruéis e selvagens.
Bem sabemos que lugares-comuns são nocivos à clareza, à elegância e à precisão do texto. Esse, especialmente, tem feito estragos de grande monta, e não apenas nos textos, mas em todas as esferas direta ou indiretamente relacionadas às atividades jornalísticas. A suposição enganosa de que redigir artigos ou rabiscar uma caricatura seja um ato marcial induz a conclusões desastrosas. A maior delas talvez seja essa de achar que uma agressão bélica (uma charge num semanário, por exemplo) deve ser respondida com a legítima defesa, também ela agressiva. Se a pena é mesmo uma arma, seria então razoável confrontá-la com outra arma, de igual para igual. Daí a atirar contra um cartunista é apenas um passo (aparentemente lógico).
É o caso, então, de perguntar: de onde vem o equívoco? Nos primórdios dos jornais impressos, nos séculos 17 e 18, a analogia talvez tivesse algum sentido. Escreviam nas páginas públicas os filósofos iluministas, animados pelas veleidades de levar ao povo as luzes da razão, sempre lutando contra as trevas, tomados pela vocação heroica de vencer o absolutismo etc. Com graça ou com grossura, era com a pena na mão que os homens de letras travavam seu combate: pela República, pela abolição da escravatura e, mais tarde, já no limiar do século 20, pelo voto das mulheres e pelos tantos “ismos” da política. Até ali, então, a metáfora tinha alguma justificativa.
Embaralhamento danoso
Hoje, não dá mais. O papel primordial dos veículos noticiosos não é mais a propaganda ideológica, como já foi, mas o serviço público de informar, aliado ao dever de produzir as condições dialógicas para que ideias divergentes possam “conversar” entre si, no âmbito do tão falado “debate público” mediado pela ética da urbanidade. Não obstante, a ideia de que trabalhar na imprensa é uma guerra sangrenta, embora às vezes santa, ainda persiste, incólume.
Na manhã de 7 de janeiro de 2015, quando dois terroristas promoveram o inominável massacre na redação do jornal francês Charlie Hebdo, em Paris, assassinando dez jornalistas, entre eles cartunistas mundialmente célebres, as comparações entre canetinhas hidrográficas e mísseis nucleares voltaram à carga. Capas de revistas semanais foram às bancas com alusões gráficas às similitudes entre o grafite e a baioneta, entre a lapiseira e a metralhadora, entre o nanquim e as bombas de napalm.
As metáforas militares empesteiam a indústria da comunicação de ponta a ponta. São especialmente endêmicas na publicidade e no marketing, cujos praticantes se deliciam com expressões como “público-alvo”, “disparar e-mail marketing” e leem Shun Tzu para entender o “mercado” como se ele fosse um campo de batalha. Não nos cabe aqui tecer recomendações a uns ou outros, mas vale registrar que, ao menos do repertório próprio da imprensa, essas metáforas deveriam ser varridas. Definitivamente, letras, vídeos, fotos, falas e desenhos não são munição. O ofício de que tratamos nesta revista não tem nada a ver com guerrear.
Para que fique claro: a função mais luminosa dos redatores das folhas públicas já foi disseminar teses sociais, popularizar doutrinas e, no limite, “lutar” pela vitória de utopias emancipadoras. Hoje é diferente. Em lugar de fazer proselitismo, cabe ao jornalista zelar pelos padrões de interlocução entre pontos de vista díspares e igualmente justos e legítimos. Em nada, absolutamente nada, isso se aproxima das táticas de guerrilha, da logística da Segunda Guerra ou da estratégia de Napoleão Bonaparte. O jornalismo não é guerra. Aliás, o jornalismo é o contrário da guerra. É parte do esforço pelo qual a civilização suplanta as conflagrações armadas e constrói a paz. A melhor aspiração da imprensa não é mais vencer uma guerra, mesmo que “apenas” ideológica, mas superar todas as guerras, e a própria ideia de que a guerra seja parteira de soluções duradouras. A imprensa, no seu âmago, não acredita na violência como solução, mas se pretende mais elevada, melhor e mais eficaz que qualquer método violento. Por isso a velha metáfora nos é tão nociva. Que governantes falem em “batalha da comunicação”, a gente entende, embora lamente. Que jornalistas embarquem nessa, ainda que com as melhores e mais combativas intenções, é chato.
Quando dizem que suas penas são espadas, jornalistas promovem um embaralhamento conceitual danoso, que reforça, involuntariamente, a intolerância dos fundamentalistas que levam tudo ao pé da letra. Nosso discurso deveria ser o oposto. Em vez de glorificar nossos instrumentos de trabalho como um fuzileiro que idolatra o gatilho, rejeitar qualquer comparação desse tipo, pois essa comparação nos é ofensiva. Não seremos nós que diremos que nossas penas são espadas. Em vez disso, convidamos os fanáticos a abandonar a espada e empunhar a pena.
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