Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo vs. relações públicas

O ruidoso marqueteiro João Santana, jornalista de origem, Prêmio Esso em 1992 pela cobertura do escândalo Collor, não foi o único vencedor de sua categoria nas eleições de 2014, ao reeleger a presidente da República, Dilma Rousseff. No Rio de Janeiro e em São Paulo, o PMDB e o PSDB reelegeram seus governadores. Ao unir os dois, aparece outro grande vitorioso do ano, bem menos ruidoso, por sinal, fazendo do silêncio uma de suas virtudes: a maior agência de relações públicas do país, a carioca FSB.

Teria hoje uma redação com mais de 600 profissionais, em sua maioria ex-jornalistas, muitos deles ex-repórteres investigativos, superando quase todas as redações de mídia tradicional no país, tanto da televisão como da imprensa. Em 2013, quando ainda mantinha informações sobre clientes em seu site institucional, a FSB anotou os serviços que prestava para dois dos maiores – o governo do Estado do Rio de Janeiro, do PMDB, e a Sabesp, estatal do governo do Estado de São Paulo, do PSDB.

Para o segundo, o trabalho realizado foi “posicionar a Sabesp como principal fonte de informação do setor no Estado de São Paulo”, com o “estreitamento da relação com a mídia geral e segmentada”, alcançando por esses e outros caminhos um “número de matérias positivas quatro vezes maior que o de negativas”. Nada mal, às vésperas da campanha estadual e, principalmente, das primeiras evidências da crise no abastecimento de água, pela Sabesp, da região metropolitana de São Paulo.

Não que a mídia “geral e segmentada” tenha sido o único alvo. A agência atua também e cada vez mais junto à mídia digital, por exemplo, “monitorando a presença na web e administrando a imagem” dos mais diversos clientes. Entre outros que já recorreram em algum momento aos serviços estão o Consórcio Belo Monte e vários ministérios, mais a Ambev e o Fluminense. Registre-se que a FSB não está sozinha, pelo contrário, no campo em pleno florescimento das relações públicas no Brasil.

Logo atrás vem a paulista CDN, com quantidade semelhante de jornalistas e clientes também os mais diversos e conflitantes, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) a governos estaduais tucanos. No final do mesmo ano de 2013, a agência foi comprada por Nizan Guanaes, que vinha havia tempos buscando entrar na área. Uma década antes, o publicitário já havia anunciado publicamente que as agências de propaganda não faturavam como antes e o futuro estava nas agências de relações públicas, “PR”.

FSB e CDN são as líderes destacadas, com redações grandes e estáveis, seguidas por InPress, Máquina, Insight, não necessariamente por ordem de grandeza, além das representantes locais de grandes forças estrangeiras, como a americana Edelman, maior agência independente de RP no mundo, WPP e Interpublic. E redações temporárias com dezenas de jornalistas e outros profissionais de comunicação se espalharam pelas campanhas eleitorais majoritárias de 2014, com serviços nas mesmas duas frentes, mídia tradicional e, cada vez mais, digital.

RP no ambiente digital

O crescente poder das estruturas de relações públicas não se restringe ao Brasil. Chegou como parte de um movimento já mais avançado em países como Reino Unido e, sobretudo, Estados Unidos. O jornalista John Lloyd, diretor do Instituto Reuters para o Estudo de Jornalismo, da Universidade Oxford, acaba de publicar com Laura Toogood, diretora da agência de relações públicas Digitalis, um estudo que busca identificar como vem acontecendo e o que significa essa aproximação entre RP e jornalismo.

Lançado em livro pela I. B. Tauris no dia 28 de janeiro, Journalism and PR – News Media and Public Relations in the Digital Age (Jornalismo e RP –Mídia Jornalística e Relações Públicas na Era Digital) pode ser encomendado no site da editora ou via Amazon. Na obra de 160 páginas, Lloyd e Toogood avisam desde logo que se trata de um fenômeno de mão dupla: não só as agências se aproximam do jornalismo, mas também este vem se aproximando ou, melhor, se adaptando ao novo ambiente.

No caso, as pontes são lançadas pelos veículos via redações paralelas, ligadas a seus departamentos comerciais, não às redações propriamente jornalísticas. É a chamada publicidade nativa, native advertising, também tratada por vezes como branded content, conteúdo com marca, patrocinado. Ou ainda, na expressão usada pelos mais críticos, matéria paga. O mecanismo é controverso, mas a queda agora acelerada na receita publicitária levou à aceleração também de sua adoção nos Estados Unidos e no Reino Unido.

No jornal The New York Times, que já soma quase um ano e 40 campanhas de native, a redação paralela passou por uma nova rodada de contratações em janeiro e chegou a 35 profissionais. Com prioridade ainda maior para native, por se negar a cobrar pelo acesso do leitor ao seu conteúdo digital, como fizeram NYT e outros com o chamado paywall, o londrino The Guardian acaba de estrear novo desenho online, projetado para ampliar a visualização de conteúdo patrocinado. Mas há muito mais em jogo.

A constatação central de Lloyd e Toogood é que acontece hoje “a diminuição da dependência que as relações públicas têm do jornalismo e o crescimento da dependência que o jornalismo tem das relações públicas”. As agências ainda precisam dos veículos tradicionais para “endosso de terceiro”, verniz de credibilidade, mas elas têm agora outros “aliados, muitas vezes mais poderosos”. Executivos de RP, ouvidos no estudo, acreditam que podem tomar, e na verdade já estão tomando, as funções do jornalismo.

Em entrevista por telefone, Lloyd, ex-editor no Financial Times e na New Statesman, hoje também colunista na Reuters, explica que os novos “aliados” podem ser resumidos num só, a internet. São as redes sociais, as ferramentas de big data, os canais próprios de comunicação: “O que a revolução digital dá para todos, inclusive indivíduos, é a capacidade de publicarem por si mesmos. Quando é bem organizado, bem direcionado, como acontece com muito do material de RP, pode ter um grande efeito”.

Ou seja, as agências e seus clientes, “sejam eles empresas, partidos, governos”, têm outros canais de comunicação com os públicos que querem influenciar, “sejam consumidores, acionistas ou uma comunidade em particular, por exemplo, a financeira, além é claro do eleitorado, quando são políticos”. Por meio dos novos aliados, todos podem ser alcançados diretamente “e você não precisa tanto de pessoas como nós, jornalistas, para transmitir – e mudar as suas mensagens, talvez criticá-las”.

Jornalismo cidadão

O quadro contrasta com a idealização em torno do “jornalismo cidadão”, que vinha sendo proclamado há quase duas décadas, desde os primórdios das notícias na web, por críticos de mídia como Jay Rosen, professor da Universidade de Nova York. Os porteiros, ou gatekeepers, da mídia tradicional não vêm sendo substituídos pelo público, pela própria audiência cidadã, na apuração e na edição das informações, mas por outras organizações – com lemas como “informar, qualificar, influenciar”, da FSB.

Lloyd confirma que há “uma perda de sentido crítico”. Muito do que se veicula agora como informação não é editado ou criticado por jornalista “ou por qualquer outra pessoa”. Mais significativamente, não é apresentado em contexto. “Uma empresa pode divulgar um material dizendo que vai fazer um grande novo projeto e não há um jornalista, ninguém, para lembrar que, na última vez em que ela divulgou algo assim, o projeto fracassou”. No resumo do autor, “pode-se soltar o que quiser, da maneira que quiser”.

O resultado mais escandaloso disso, quase um pesadelo distópico, aconteceu em Richmond, na baía de São Francisco, nos Estados Unidos. No início do ano passado, foi lançado o Richmond Standard, site noticioso que mimetiza em tudo um site de jornal local. Com uma diferença que o leitor só vai perceber se olhar com atenção: das reportagens aos editoriais, é tudo produzido pela companhia de petróleo Chevron, que tem uma refinaria na cidade e um longo histórico de conflito com a comunidade e seus representantes.

O Standard, título derivado da gigante que gerou a Chevron, o monopólio Standard Oil, foi criado pela agência de relações públicas Singer Associates. Seu editor-chefe é contratado da Singer. O site foi bastante questionado, desde o lançamento, por jornais de São Francisco – embora tenha sido também mencionado como uma saída para a crise dos jornais locais nos Estados Unidos. Mas foi um site ligado à Universidade de Berkeley, cidade ao lado, que abriu campanha para desmascarar a Chevron e seu jornal, de olho nas eleições municipais.

No fim, os candidatos financiados pela companhia de petróleo acabaram derrotados em novembro, o novo prefeito creditou muito de sua vitória aos jornalistas-estudantes – e a história deles foi parar na mídia nacional americana. De maneira geral, o caso Richmond Standard, que segue no ar, transformou-se num alerta sobre os riscos da publicidade nativa, com suas reportagens descaradamente em favor da Chevron e até contra um concorrente. Alerta que vale também para Brasil e outros países.

Expansão do modelo

John Lloyd programou uma visita a São Paulo para este início de 2015, para levantar como a aproximação entre RP e jornalismo está se dando por aqui. Seu livro aborda, além de Estados Unidos e Reino Unido, três países com desenvolvimento distinto do fenômeno, França, Rússia e China. No primeiro, afirma o estudo, a velha resistência ao modelo americano e capitalista nas comunicações veio cedendo ao longo das últimas décadas – e hoje, por exemplo, no marketing político, não se pode mais falar em exception française.

Nos dois últimos, há maior presença estatal. Na Rússia, onde foi correspondente do FT, Lloyd se concentra na “poderosa máquina de RP instalada no Kremlin”, opondo “a grandeza da Rússia” e do presidente Vladimir Putin aos Estados Unidos e à Europa Ocidental. Na China, “os líderes, mesmo sem ter que enfrentar eleições, precisam levar em conta o sentimento do público”, o que torna as relações também importantes, sempre mostrando o presidente Xi Jinping em busca de “unidade e harmonia, as velhas ideias do confucionismo”.

Quanto ao Brasil, sua expectativa é encontrar tendências semelhantes àquelas que identificou nos Estados Unidos e Europa Ocidental. “As agências de relações públicas se tornando mais poderosas, usando mais a internet, com mais recursos. Agora estão produzindo notícias, criando novos canais online, sites. Ou seja, o jornalismo é cada vez mais comandado por RP. Essa é a realidade, eu acredito, em todo lugar onde a mídia é forte.”

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Nelson de Sá é ex-colunista da Folha de S.Paulo, escritor e coordenador do blog de teatro Cacilda