Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre a responsabilidade penal

A sociedade atual tem sido denominada a sociedade da informação. O cotidiano dos seres humanos foi invadido por uma gama enorme de meios de comunicação, que controlam dados ininterruptos e assim põem o cidadão, em tempo integral, em contato com alguma forma dela. Ao mesmo tempo, então, que ela é transmitida por meios cada vez mais variados, o que implicaria sua democratização, alguns denominados meios de comunicação de massa formam monopólios de geração e transmissão de informação, a exemplo das grandes cadeias nacionais de rádio e televisão ou das agências internacionais de notícias.

A atividade da imprensa, nesse contexto de profundas transformações no trato com a comunicação em geral, tem sofrido alterações relevantes. Os profissionais de jornalismo notam o interesse crescente das grandes agências pela notícia como forma de mercadoria, o que importa, grosso modo, em maior zelo por duas qualidades essenciais desse produto: sua imediaticidade e a capacidade de gerar interesse no público em geral. A premência de notícias imediatas e que devam chamar a atenção de um público-alvo, consumidor, cria risco grave de ofensas a bens do cidadão, que a lei deve tutelar, a exemplo da honra, o direito à vida privada, o direito à intimidade e à imagem.

Em paralelo à necessidade de resguardar esses bens jurídicos pessoais, o Estado deve tutelar o direito – principalmente, dos órgãos de notícia – à liberdade de informação e expressão de pensamento, bem como à liberdade de imprensa. Em tempos em que é absolutamente superada a repressão a esse exercício pela censura estatal, não arrefece o debate sobre a verdadeira liberdade de imprensa no contexto democrático, em face, principalmente, da concentração das agências de notícias e de sua subserviência a alguns interesses de grupos econômicos determinados.

Envolta por todo esse contexto, nossa Lei de Imprensa, no 5.250, data do ano de 1967. Em tempo de sua elaboração, não só os meios de trato com a informação afastavam-se muito dessa realidade tecnológica aqui descrita, como também a liberdade de informação e expressão de pensamento não representava fato na realidade política nacional. Faz-se necessário, assim, rever a aplicação da Lei de Imprensa diante dessa nova realidade e sua suficiência e adequação para coibir os abusos da liberdade de imprensa, ao mesmo tempo em que se garante seu exercício regular.

Invasão de privacidade

Respeitando-se a intervenção mínima do Direito penal, aqui investiga-se a necessidade de sua utilização, com o objetivo principal de resguardar o cidadão em seus direitos pessoais, parte mais fraca se comparada à potência das grandes organizações de trato com a informação. A tutela penal da liberdade de imprensa é colocada em xeque, quando se tem em vista possíveis instrumentos mais eficazes de repressão de eventuais abusos, como as indenizações na esfera cível ou a própria aplicação de multas por via administrativa. Deve ela, nesse sentido, reservar-se aos casos extremos, sem deixar de considerar, claro, que há momentos vários em que a intervenção penal faz-se imprescindível.

Desse objetivo principal e da análise da lei em vigor surge como tema premente o sistema diferenciado da Lei de Imprensa para a responsabilidade penal do agente, qual seja a responsabilidade penal sucessiva. A ordem em cascata que a lei dispõe para a atribuição de autoria dos delitos ou responsabilidade por eles é ora encarada pela doutrina como meio de estabelecimento de responsabilidade objetiva – fugindo ao princípio basilar da culpabilidade –, ora é encarada como modo justificável e razoável de estabelecimento de autoria do delito – considerada a atividade específica da imprensa e o risco incomum que ela importa ao contexto social – ou, em outras palavras, sua potencialidade lesiva. Essa dimensão de risco fez desde longa data – considerado que o sistema sucessivo data do Império – crescer a preocupação do legislador com a atribuição de responsabilidade aos agentes da imprensa, chegando mesmo à aferição de responsabilidade penal solidária para os autores dos fatos típicos da lei específica, por breve espaço de tempo.

Se, de um lado, hoje dá-se maior realce ao princípio da culpabilidade – como limite que a pena não pode ultrapassar – e vê-se com olhos menos crédulos a eficiência da reprimenda penal, certo é que pouco se tem valorizado a regulação dos órgãos de comunicação. Muito se fala – e isso aqui é tema de breve abordagem – a respeito da ética e da responsabilidade, em sentido lato, da atividade do jornalista, porém a consagração da liberdade de imprensa, talvez, tenha feito com que a sociedade em si venha aos poucos concedendo menor importância à possibilidade de dano dos órgãos de divulgação de notícia.

Faz-se aqui uma análise histórica da repressão penal aos abusos da atividade de imprensa. Nesse percurso cronológico, demonstra-se como os meios de comunicação foram sempre matéria de disciplina penal específica, não se podendo invocar a liberdade de expressão como escusa da absoluta necessidade de regulamentação de seu exercício, o qual, dotado de relevante função social, sempre representou risco a bens tutelados. Por outro lado, aponto, com fundamentos que se espera sirvam bem ao leitor, a constatação de que nosso País ainda não tem tradição efetiva de trabalho com um sistema político livre, daí a necessidade de repensar-se todo o sistema de responsabilização da atividade dos meios de comunicação de massa.

É ainda nesse contexto que se constrói análise dos bens jurídicos tutelados pela Lei de Imprensa. A princípio, após sucinta análise da importância do conceito de bem jurídico, apresenta-se a conceituação dos direitos coletivos como a liberdade de pensamento, liberdade de informação, direito à informação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa, ao mesmo tempo em que se apontam os textos legais que normatizam ou garantem as aludidas liberdades. Depois, dentre os bens jurídicos tutelados apresentam-se os direitos pessoais, sendo a honra o principal deles. Outros bens jurídicos, como a intimidade e a vida privada, são expostos, não só porque seu estudo é relativamente novo, mas também porque os modernos meios de tecnologia da imprensa têm permitido a invasão cada vez maior da necessária vida reservada, que o ser humano deve preservar até para poder construir para si uma imagem digna de respeitabilidade social. Todos, como afirmo, devem ser interpretados à luz do conceito da dignidade humana, cuja introdução na Constituição acarreta mudanças em seus conceitos, que podem ter efeitos práticos nas discussões da tutela desses direitos.

Carga valorativa

A importância prática da consideração dos bens jurídicos tutelados é notória neste tema, pois os processos penais em matéria de imprensa – ao contrário do quanto ocorre com a maioria dos processos penais, em que os bens não entram em discussão – abrem quase sempre acalorado espaço argumentativo à contraposição entre essas liberdades coletivas e os direitos individuais.

Somente com essa visão dos bens que se tutelam na Lei de Imprensa é que se pode avaliar a importância de seu modo tão peculiar de responsabilização penal. Por isso, aqui, procuro reconstruir brevemente as origens do sistema par cascades e pontuar em que medida é cabível a crítica de que ele, tal qual aparece na Lei de Imprensa, constitua forma de responsabilidade objetiva. Depois, analiso, com alguma brevidade, a posição da doutrina e da jurisprudência nacionais em relação à aplicação dos artigos 28 e 37 da Lei de Imprensa, e seu alcance específico.

Finalmente, a obra aprofunda-se no tema e tem como objetivo principal tratar a respeito do concurso de agentes nos crimes de imprensa. Em face desse tema, cuida da (in)adequação do sistema de responsabilidade em cascata à necessidade de proteção penal dos bens juridicamente tutelados e ao modo de organização dos meios de imprensa. Assim, apresenta-se uma investigação a respeito da adequação da sistemática da Lei de Imprensa, bem como da equivalência de causas no Direito penal. Nesse contexto de complexidade de organização dos meios de imprensa e do freqüente concurso de causas para os delitos dessa natureza, analisa-se o tema à luz da teoria da imputação objetiva, que oferece critérios mais inovadores, dentro de um sistema penal aberto, para que se possa imputar um resultado lesivo a determinado indivíduo, com relevância jurídico-penal.

Os critérios de vínculo entre ação humana e resultado, que aparecem no último capítulo, ainda que amplos e sujeitos, sempre, a críticas e controvérsias, com certeza colocam o instituto mais controverso da Lei de Imprensa atual à luz de considerações doutrinárias do Direito penal mais amplas, atualizadas e completas.

Creio, com a suspeição natural que se atribui ao autor, que a presente obra faz-se muito importante no contexto penal, e, para afirmá-lo, tomo de empréstimo a experiência como advogado atuante na área de imprensa, em atividade criminal. É que os processos-crime de imprensa quase sempre se abrem à discussão das fronteiras da liberdade de imprensa e de seus conflitos com os direitos da personalidade, ainda que se possa deixar de utilizar essa denominação; ainda mais, quase sempre surgem, em embate entre as partes, argumentos favoráveis ou contrários à aplicação da responsabilidade sucessiva – e ainda assim a doutrina nacional pouco discute o tema.

Talvez a conclusão de todo o trabalho não seja satisfatoriamente incisiva, ao menos aos olhos mais positivistas. Mas o resultado final me pareceu bastante próprio, ainda sob o ponto de vista da prática: revelar argumentos para atualizar a responsabilidade penal da Lei de Imprensa, vinculando-a a um sistema penal aberto, acrescido de maior carga valorativa, em que caibam considerações sobre a sociedade atual, com sua dinâmica, sua complexa e difusa organização e seus valores tão mutáveis.

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Advogado, mestre e doutorando em Direito Penal pela USP, professor da Unibero, da Escola Superior de Advocacia e do Centro de Extensão Universitária e membro da União Brasileira de Escritores