Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma trilogia sobre a imprensa brasileira

O ano era 1808. O cenário, o cais do porto de Lisboa. Funcionários da Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra de Portugal esperavam ansiosos pelos dois prelos Stanhope (a marca mais respeitada de prensa da época) e por várias caixas de tipos móveis que o governo havia encomendado ao Reino Unido. O material serviria à impressão de documentos oficiais e facilitaria enormemente o dia a dia do governo português. Era, portanto, motivo de comemoração. Mas o francês Napoleão Bonaparte se aproximava de Lisboa a passos largos e, antes mesmo que os funcionários pudessem pôr os olhos nos desejados aparelhos, eles foram embarcados no navio Medusa e cruzaram o Oceano Atlântico, integrando a frota que trouxe a Família Real portuguesa ao Rio de Janeiro. Foi assim – meio aos trancos e barrancos – que a imprensa chegou ao Brasil.

A saga, contada no primeiro volume da trilogia História dos jornais no Brasil, que o jornalista e historiador Matías Molina lança pela Companhia das Letras, ainda teve novos capítulos. Na colônia, eram poucas as pessoas capazes de manusear o prelo e os tipos móveis. Então o governo decidiu enviar a Londres alguém que pudesse aprender tudo sobre os Stanhope e tirar o máximo deles. O escolhido passou dois anos estudando no Reino Unido e, quando voltou, pronto para fazer deslanchar a imprensa brasileira, teve um “desacordo salarial” e retornou a Lisboa – levando consigo todo o conhecimento adquirido. Insistente, D. João ordenou então que um inglês especializado no assunto fosse trazido ao Brasil para que desse aulas a uma equipe. O selecionado, entretanto, aportou no Rio de Janeiro sem falar português e o workshop naufragou.

Essas são algumas das muitas histórias reunidas por Molina neste primeiro volume, que acompanha a trajetória da imprensa brasileira do período colonial até 1840, na Regência. Os dois próximos livros, ainda sem data de publicação, tratarão da imprensa carioca e paulista, respectivamente, e se estenderão até os dias atuais. Neles, o escritor também levantará hipóteses sobre o futuro da imprensa, com destaque para a adequação ao ambiente da internet e para a opção por jornais populares.

Nascido em Madri e naturalizado brasileiro há seis décadas, o jornalista e historiador Matías Molina, de 77 anos, foi editor-chefe do grupo de revistas técnicas da Editora Abril, editor de Economia do jornal Folha de S.Paulo e correspondente em Londres e editor-chefe da Gazeta Mercantil. Nos últimos seis anos, encheu sua casa, em São Paulo, “com todas as publicações sobre a imprensa brasileira de que se tem notícia”, diz. Com isso, comprovou que até 1808 não circulava por aqui qualquer publicação e que a primeira oficina de fundição só surgiu em 1859, mais de 400 anos depois de o alemão Johannes Gutenberg imprimir as primeiras Bíblias do mundo e dar início a uma revolução que ecoa até hoje.

Brasil só teve imprensa depois de outras colônias

Nos primeiros capítulos de História dos jornais no Brasil – volume I, Molina revisita uma polêmica das grandes: por que não houve imprensa no Brasil colônia se Portugal já conhecia a tipografia desde 1487, 13 anos antes de Pedro Álvares Cabral aportar por aqui? De quem é, afinal, a culpa por esse atraso de quase quatro séculos?

“Esse é um debate sem fim”, adverte Molina, rindo. “Mas temos dois fatos concretos com os quais podemos trabalhar. O primeiro é que não se conhece nenhum decreto nem qualquer lei vinda de Lisboa que tivesse proibido a imprensa no Brasil. O segundo é que nas outras colônias portuguesas, na África e na Ásia, a tipografia foi instalada pelos jesuítas já no século 16 e 17. Então, ao que tudo indica, só o Brasil ficou de fora mesmo.”

Molina pontua ainda que em 1502, apenas dez anos depois da descoberta da América, a Coroa espanhola autorizou a impressão no Novo Mundo. As primeiras tipografias do continente foram instaladas no México (então Nova Espanha) e no Peru (Nova Castela) poucos anos depois da chegada das caravelas de Cristóvão Colombo. Há documentos históricos, impressos na região, que datam de 1533. O Brasil teria, portanto, ficado realmente para trás. Em sua obra, Molina levanta algumas hipóteses para isso.

“Sofremos com o tamanho do país, a baixa densidade demográfica, a dificuldade do transporte, a deficiência dos Correios, a baixa renda, mas, sobretudo, com o elevado nível de analfabetismo e a pouca escolaridade. Talvez esse tenha sido o principal motivo do atraso brasileiro com relação à imprensa. Talvez seja isso o que nos distingue dos países vizinhos.”

A Universidade de Santo Domingo, na República Dominicana, por exemplo, foi fundada em 1538. A de San Marcos de Lima, no Peru, em 1551. Os brasileiros, por sua vez, precisavam ir a Coimbra – única universidade em todo o império português – para ter um curso superior. Dados históricos apresentados por Molina indicam que, entre 1775 e a Independência, só 720 brasileiros se graduaram em Portugal. “No mesmo período”, escreve o autor, “da Universidade do México saíram 7850 bacharéis e 473 doutores e licenciados.”

Mesmo tendo chegado tarde ao território nacional, a imprensa foi peça fundamental para o desenrolar da História do Brasil, pondera Molina.

“Desde 1808, a imprensa ajuda a formar a sociedade brasileira. Ela serviu para construir a unidade nacional e até hoje pauta os principais debates do país. É claro que há momentos de maior e menor influência dela. É claro que, antigamente, o jornal era a única fonte de informação, e que depois vieram o rádio, a televisão e a internet, fazendo com que ele perdesse força. Mas ainda vêm dos jornais as informações consideradas mais confiáveis, mais profundas, aquelas que realmente repercutem e fazem o país pensar”, afirma Molina.

Depois de repassar a história de centenas de publicações, o autor apresenta nas 560 páginas do primeiro volume um perfil detalhado de 20 jornais que circularam pelo Brasil até 1840. Molina dá informações sobre preço de venda e de assinatura, sobre a diagramação, sobre os responsáveis por todos esses jornais e revistas e, é claro, sobre sua influência política nos rumos do país.

O livro apresenta saborosas histórias de amor e ódio, de rancores aparentemente eternos e das mais divertidas intrigas da Corte. Usando linguagem simples, sem cair no tom enciclopédico, Molina traz à tona casos curiosos como o da verborrágica briga de D. Pedro com o português João Soares Lisboa por meio das páginas de O Espelho e O Correio do Rio de Janeiro. De um lado, estava o príncipe regente, nascido em berço de ouro e intelectualmente bem formado. Do outro, um comerciante iletrado disposto a defender com unhas e dentes a independência do Brasil.

Nos próximos volumes, imprensa do Rio e SP até século 21

Molina chama atenção para três jornalistas que, em sua opinião, jamais poderão ser esquecidos pelo povo brasileiro: Hipólito da Costa, do Correio Braziliense; Gonçalves Ledo, de Reverbero Constitucional Fluminense; e Evaristo da Veiga, de A Aurora Fluminense.

“Em comum, esses homens têm o fato de terem encarnado os jornais que publicavam, de terem sido a essência do jornalismo que praticavam. Tanto que, quando se afastaram da linha de produção, por morte, cansaço ou doença, os jornais que faziam simplesmente minguaram e desapareceram. Evaristo da Veiga, por exemplo, é para mim um dos dez maiores jornalistas do país até hoje. Se não fosse pelo tom moderador que ele adotou durante o período da Regência, provavelmente o Brasil teria se esfacelado, repetindo o ocorrido nas colônias espanholas. E nós estaríamos vivendo hoje em dia num país completamente diferente.”

Para o segundo e o terceiro volumes, que Molina diz já estarem “95% escritos”, ele promete não só novas histórias – dessa vez sobre o passado recente da imprensa de Rio de São Paulo –, como também uma avaliação sobre seu futuro.

“O maior desafio pela frente é, sem dúvida, o da adaptação à internet. Existe uma preocupação imensa na imprensa atual com relação a isso, e quero ter alguns capítulos dedicados a esse assunto. Na minha opinião, o futuro a curto e médio prazo seguirá por dois caminhos. Ou os jornais passam a fazer uma versão robusta para a internet ou partem para a venda a preços muito baixos”, diz Molina.

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Jornais do início do século 19 traziam retratos da sociedade e polemizavam sobre monarquia

No primeiro volume da trilogia História dos jornais no Brasil (Companhia das Letras), o jornalista e historiador Matías Molina repassa a trajetória dos 20 principais veículos da época no país. Usando linguagem simples, sem cair no tom enciclopédico, o livro apresenta saborosas histórias de amor e ódio, de rancores aparentemente eternos e das mais divertidas intrigas da Corte. Leia mais sobre alguns jornais da época.

>> Correio Braziliense (1808-1822)

Fundado em Londres por Hipólito José da Costa, o Correio Braziliense foi o primeiro jornal da história a tratar do Brasil. De tiragem mensal, tinha entre 100 e 150 páginas e era lido essencialmente por comerciantes interessados em fazer negócios com Portugal ou sua colônia. A publicação tinha quatro seções – política, comércio e artes, literatura e ciências e miscelânea – e era extremamente crítica ao governo português. À distância, opunha-se ao poder absoluto e propunha a instalação de uma monarquia constitucional. Também era contra a manutenção de sigilo nas questões orçamentárias e insistia em que as contas deveriam ser públicas. Em suas páginas, Hipólito propôs, por exemplo, que o termo “braziliense” fosse usado para identificar aqueles que nascessem no Brasil. “Braziliano” serviria para os indígenas, e “brazileiros” para os portugueses e estrangeiros que aqui viviam naquela época. Apesar de sua primeira edição ter sido publicada em junho de 1808, ela só chegou ao Brasil quatro meses depois, em outubro. Era vendida por Jorge João Dodsworth, leiloeiro que trabalhava na Rua da Alfândega, no Rio.

>> Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822)

Foi o primeiro jornal a ser publicado em território brasileiro, sob os cuidados do Frei Tiburcio José da Rocha – acusado e absolvido pela Inquisição em três processos de heresia. A primeira edição saiu no dia 10 de setembro de 1808, com quatro páginas e um texto que se espalhava em uma única e larga coluna. Com edição bissemanal no início, a Gazeta se vendia como uma publicação independente, quando, na verdade, era guiada muito de perto pelo Conde de Linhares, braço direito do príncipe regente. Em suas páginas, liam-se textos oficiais, artigos publicados na Gazeta de Lisboa, que lhe servira de inspiração, e informações sobre a guerra contra Napoleão. Com o passar dos anos, vieram informações marítimas e políticas. Em seu livro, Matías Molina destaca a importância dos anúncios da Gazeta. Eles tratavam sobre venda de escravos, navios, fazendas e carruagens, mas também sobre meninos e cavalos “extraviados”. Falavam, portanto, da sociedade e dos costumes da época.

>> Idade d’Ouro do Brazil (1811-1823)

Primeiro jornal fora do Rio de Janeiro, a Idade d’Ouro do Brazil era publicada por Manoel Antonio da Silva Serva, um comerciante português que morava em Salvador e que, além de vender móveis, cristais, lustres e livros, também administrava a Real Fábrica de Cartas de Jogar. Em 1811, ele procurou D. João e foi autorizado a abrir a primeira oficina privada do país. Idade d’Ouro do Brazil tinha, no entanto, uma certa ingenuidade. Acreditava que a vinda da Família Real portuguesa traria um período de bonança para o Brasil. Em suas quatro páginas, publicadas duas vezes por semana, defendia a monarquia e a escravidão. Mas foi nesse jornal que o Brasil viu nascer a primeira redação. Ela dispunha de um impressor chefe, um revisor de provas, seis aprendizes de composição (jovens com idades entre 12 e 15 anos) e um encadernador. Também foi na Idade d’Ouro que surgiu o primeiro manual de redação. No documento, de autoria do Conde dos Arcos, pregava-se que os escritos jornalísticos deveriam ser “ministeriais e anunciar novidades da forma mais exata”. Notícias políticas deveriam ser dadas de “forma singela, relatando simplesmente os fatos”.

>> A Aurora Fluminense (1827-1835)

Fundado em 1827, o jornal teve posição fundamental no período da Regência por ter adotado uma posição moderada numa época em que a imprensa se caracterizava pelo extremismo político e pelos desmandos na linguagem. “Queremos constituição, não queremos revolução”, pregava a publicação. Nela, aliás, foi revelado o nome de Evaristo da Veiga, considerado por Molina como um dos dez mais importantes jornalistas do país até hoje. Evaristo era elogiado pela “firmeza de caráter de sustentar o que escreve” e por não ter tido vínculos com as diferentes facções que disputavam o poder no período da Regência. Evaristo ganhou tanta relevância no cenário daquela época que chegou a ser eleito deputado por Minas Gerais, sem nunca ter saído do Rio de Janeiro. A última edição de A Aurora Fluminense saiu em dezembro de 35. Evaristo tinha apenas 36 anos, mas já estava cansado. A publicação acabou logo depois.

>> Correio do Rio de Janeiro (1822-1823)

Fundado pelo comerciante português João Soares Lisboa, que não tinha estudos universitários, “mas tínha assaz firmeza de caráter, e probidade manifestada”. Foi a primeira publicação a defender abertamente a independência do Brasil e a criticar sem dó nem piedade D. Pedro, com um português de fácil entendimento. Pregava que a Assembleia Constituinte era superior à coroa e que D. Pedro deveria se submeter às leis. Por conta disso, Soares Lisboa foi acusado de abusar da liberdade e perseguido por José Bonifácio. Chegou a fugir para Buenos Aires. Em O Espelho, outro jornal da época, D. Pedro atacou-o frontalmente: “V.M não é escritor. Não é coisa alguma na república literária. É um triste Rocinante”.

>> Reverbero Constitucional Fluminense (1821-1827)

Fundado pelo oficial do Exército e comerciante Joaquim Gonçalves Ledo e pelo padre Januário da Cunha Barbosa, o Reverbero nasceu para pregar um governo liberal e permanente, regulado por leis fixas. Sua primeira edição circulou no dia 15 de setembro de 1821, com o apoio financeiro de pequenos empresários. Segundo Molina, foi o jornal que canalizou o pensamento liberal no início do século 19 e que serviu de “elemento de ligação” para esse grupo. Cada edição do Reverbero tinha 12 páginas. Sua tiragem foi, a princípio, quinzenal, mas, diante do sucesso, passou a ser semanal. Ele costumava atacar a monarquia absoluta com toda sua força, classificando-a como uma “administração monstruosa, que depois de nos roubar a liberdade só nos dera em troco dela a pobreza, calamidades e misérias”. Apesar dessa posição, o Reverbero chegou a ser elogiado por Dom Pedro I, como Molina transcreve em seu livro: “Periodistas, aprendei com o Reverbero e então sabereis escrever sem paixão, em estilo constitucional e sem serdes anticonstitucionais”. Para D. Pedro, era a única publicação que “falava português”.

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Cristina Tardáguila, do Globo.com