Charlie Brown inspirou o batismo do Charlie Hebdo. O grupo de humoristas liderado por François Cavanna e George Bernier produzia, nos anos 1960, a revista mensal Charlie (que editava tiras, entre elas Peanuts, de Charlie Schulz) e o semanário Hara-Kiri Hebdo, este com a personalidade cáustica que o caracterizava.
Em 1970, em exemplo das incoerências típicas da relação entre o Estado francês e o direito à liberdade de expressão, Hara-Kiri foi censurada por debochar da morte do general Charles de Gaulle (com a manchete “Baile trágico em Colombey: um morto”, em referência à cidade onde o militar morrera). A publicação trocou então de nome, para Charlie Hebdo, de modo a se diferenciar da irmã mensal, homenagear Schulz e zombar de De Gaulle.
Após o massacre de 7 de janeiro de 2015, propagou-se a frase “Je Suis Charlie” para manifestar solidariedade aos mortos. A expressão também serviu de mote para um amplo e muitas vezes acalorado debate entre jornalistas sobre a extensão dessa solidariedade, em especial se ela deveria justificar a reprodução dos cartuns considerados blasfemos por muçulmanos radicais.
Não faltaram acusações de hipocrisia aos que, embora se dissessem Charlie, acharam melhor não publicar os desenhos mais agressivos, ou para não expor suas empresas e funcionários a risco de violência ou porque sua linha editorial não comporta esse tipo de humor.
Mas o que significa declarar que alguém é outro? A mais antiga utilização desse recurso retórico é a de Cícero em Verrem: “Civis romanus sum” (“Eu sou um cidadão de Roma”), colocada na boca de um homem prestes a ser crucificado por um governador da Sicília, para proclamar seu direito de ser julgado pelas leis do Império Romano, que incluía a Sicília, com todas as garantias inerentes a essa condição, que o governador não lhe dava.
Muito diferente foi a maneira como John Kennedy usou a fórmula em 1963, junto ao recém-construído Muro de Berlim. “Ich bin ein Berliner” queria dizer que Kennedy se colocava no lugar dos berlinenses, os quais, por isso, sabiam que podiam contar com ele (e com o país que ele liderava).
Ser Charlie é um conceito ainda um pouco diferente dos dois anteriores, pois Charlie não é pessoa nem país. Charlie é a representação do direito de se expressar livremente, não importa se o expressado se aborreça, insulte, ou ofenda.
Muitos jornalistas responderam “Eu não sou Charlie”, provavelmente porque interpretaram a frase no sentido de Cícero: ao se identificar com o Charlie Hebdo a pessoa se identifica com o que a publicação faz e com os juízos de valor que ela expressa em relação a religiões e instituições.
Claro que não é necessariamente assim. Ser Charlie não implica compartilhar estilo, métodos ou ideias do Charlie Hebdo. Mas exige, sim, não ceder ao que Timothy Garton Ash chama de “veto assassino”, ou seja, à chantagem de quem ameaça: “Se você disser o que eu não quero ouvir, eu mato você.” Seja o assassino potencial quem for.
Por isso é que todas as publicações do mundo que defendem a liberdade de expressão deveriam ter republicado os cartuns do Charlie Hebdo. Porque quem se recusou a fazê-lo mostrou-se vulnerável a intimidações similares, que podem vir tanto de extremistas islâmicos quanto (como tem ocorrido) de líderes de cartéis de drogas (México e Colômbia), mafiosos (Itália), políticos (Brasil).
Ser Charlie não quer dizer agir como Charlie Hebdo. Alguns vão ser Charlie e agir como Charlie Brown. Mas garantem que Hebdo e todos ajam como quiserem.
Peanuts foi vítima de humor escatológico
É difícil imaginar estilos de humor mais antagônicos do que os dos Charlies: o debochado Hebdo e o ingênuo Brown. Mas a tira Peanuts, de Charles Schulz, talvez por ter sido a mais famosa do mundo (no auge, nos anos 1970, tinha 355 milhões de leitores diários em 2.600 publicações de 75 países e em 21 línguas), despertou os instintos de humoristas agressivos.
Em 1986, Jim Reardon, que mais tarde também teve seu período de fama como um dos criadores de Os Simpsons, fez o curta-metragem Tragam-Me a Cabeça de Charlie Brown, no qual Snoopy, Linus, Lucy, Schroeder e os outros personagens tentam matar Brown para ganhar uma recompensa, mas é ele quem acaba matando todos e outros mais, inclusive Mickey e Popeye.
O filme termina com uma nota em que Reardon pede, ironicamente, a Schulz que não o processe por difamação: “Isso nos faria passar anos nos tribunais, e você já tem metade do dinheiro do mundo, enquanto eu não tenho nada” (para quem quiser ver: https://www.youtube.com/watch?v=A15v4tTab0Y).
Todos são iguais, mas alguns são mais iguais
A lógica orwelliana se aplica na França. Dias após o establishment francês ter se solidarizado com o Charlie Hebdo e exaltado os princípios de liberdade, o humorista Dieudonné M’bala M’bala foi detido por ter brincado com a tragédia de modo considerado antissemita.
As leis na França proíbem “discurso de ódio”, categoria em que o cômico foi incluído, e separam o direito de atacar ideias e instituições do fato de atacar pessoas individuais e propagar ódio. A linha entre um e outro é tênue, subjetiva.
Certa está a revista The Economist: “O único discurso que pode ser coibido é o que claramente pode causar graves danos, mas não danos emocionais.”
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Carlos Eduardo Lins da Silva, livredocente e doutor em comunicação pela USP, mestre em comunicação pela Michigan State University e editor da revista Política Externa