A arrogância e a miopia de certa esquerda brasileira, e do próprio PT, contribuem para o sangramento da presidente. As manifestações anti-Dilma do próximo domingo são a continuidade de uma onda crescente.
O panelaço contra Dilma Rousseff (PT) e as manifestações desfavoráveis ao governo da presidente são os assuntos da semana no Brasil. Na imprensa e nas redes sociais, muito se fala disso desde o domingo (8/3), quando Dilma fez um pronunciamento de cerca de 15 minutos pela televisão, em rede nacional, no Dia da Mulher. O discurso serviu tanto para alimentar o ódio que só cresce em seus adversários desde as últimas eleições, no ano passado, quanto para jogar um balde de água fria em certas pessoas da esquerda brasileira que tinham alguma esperança de um reposicionamento político da presidente neste momento de crise. Para os petistas a qualquer custo e defensores cegos do atual governo do PT, sobrou apenas o descontentamento de verem a popularidade da presidente cair ainda mais e, consequentemente, buscarem responsáveis externos: a “mídia manipuladora”, a “elite golpista”, os “coxinhas reacionários” e por aí vai.
Ainda no domingo, durante o pronunciamento de Dilma na televisão, diversas pessoas em vários locais do país saíram para as janelas e sacadas e foram bater panela em sinal de protesto. O gesto é indissociável de uma comparação com os “panelaços” argentinos dos anos 1990 e 2000, durante crise econômica no país vizinho, promovidos pela classe média. Rapidamente, o panelaço brasileiro foi ridicularizado na internet, com a pecha de um movimento de protesto gourmet. Considerando que desde 2013, quando alguns insistem que o “gigante acordou” e as ruas brasileiras viraram (ou continuaram a ser?) palco de diversos protestos, uma manifestação feita das varandas tem mesmo ares de ridícula. Prova do anacronismo em que vive um setor da classe média e da elite brasileira. Um protesto asséptico feito de dentro de apartamentos, sem o desgaste físico e os riscos existentes em uma manifestação de rua, é a cara de um Brasil que insiste em não sair da “casa grande” e colocar o pé no chão do país em que vive.
Enquanto o panelaço repercutia, rapidamente soou o alerta: se esse ridículo protesto foi feito por uma parcela ínfima da população e sequer ganhou as ruas, por que estamos falando tanto disso? Evidentemente, o assunto havia se alastrado e não havia muito mais a ser feito. O protesto existiu e repercutiu, mas foi nas redes socais e na imprensa que ele ganhou peso, importância, relevância. Seja pelos que o rechaçavam, seja pelos que o apoiavam. E os setores a quem esse panelaço interessa supervalorizaram a relevância do mesmo, dando eco à colher de pau na frigideira. O pós-panelaço foi muito mais importante do que o protesto em si. Isso porque ele está sendo o aquecimento da manifestação anunciada para domingo (15/3), em que cidadãos desfavoráveis à presidente Dilma vão descer das sacadas e irão às ruas, de fato.
Às mil “dilmaravilhas”
Não é a primeira vez que isso vai acontecer. Muitos protestos foram realizados pela direita brasileira antes, durante e após o período eleitoral em que a presidente foi reeleita. E a repercussão desses movimentos nas redes sociais e na imprensa sempre variou desde a ridicularização pela pífia quantidade de participantes até o alarmismo e o medo latente de uma possível ascensão de uma neodireita, de um neofascismo. E houve também apoiadores, claro. Nomes da direita brasileira viraram símbolos dessa movimentação toda. Rodrigo Constantino – que foi pra Miami – virou o herói intelectual de muita gente. Olavo de Carvalho também. Lobão – que não foi pra Miami – virou (continuou / voltou a ser) ídolo de muitos – inclusive de Diogo Mainardi, que não mora em Miami, mas na Itália. Isso apenas para ficar em alguns exemplos.
Todas essas manifestações foram marcadas por certa pluralidade – ainda que muita gente tenha se negado a enxergar isso. Dividindo essa direita brasileira em três grandes blocos e passando por cima de muita complexidade, esses grupos podem ser vistos como: manifestantes que são contra o governo de Dilma e o PT; outros que, além disso, defendem o impeachment da presidente; e um terceiro grupo que é tudo isso e ainda pede uma intervenção militar tal como aconteceu em 1964. Contudo, ao invés de atentar-se a isso e a travar uma discussão mais séria, grande parte da esquerda preferiu tratar esse movimento como uma corja de imbecis que só pensam/falam/agem de maneira idiota. Ao fazer isso, cometem os mesmos erros inescrupulosos de uma direita que não se preocupa em entender a complexidade da esquerda e generaliza tudo em cima de rótulos simplistas como “comunistas”, “baderneiros”, “vândalos” ou seja lá o que for. É o “vai pra Cuba” versus o “vai pra Miami”.
Aliás, é muito curiosa essa tendência quase natural de levarmos as discussões para o campo de uma dicotomia, do binarismo, do maniqueísmo. Desde a época das eleições e até mesmo antes disso, com as crescentes manifestações contra a Copa do Mundo e/ou pelas lutas do transporte público, muitos petistas vem cometendo esse grande erro. Desejosos de assumirem o monopólio da esquerda, enxergando-se como única esquerda possível e/ou existente, os míopes do PT parecem viver num excelente país que apenas eles conseguem enxergar. Muitas vezes usando a empregada doméstica ou o porteiro do prédio como chancela de seus discursos, insistem em apontar um país que vive às mil “dilmaravilhas” e que só a “elite golpista”, a “mídia manipuladora” e os “coxinhas reaças” não enxergam. E se alguém que se diz à esquerda também não enxerga esse belo Brasil é porque entrou no jogo da direita e está contra o país.
A lógica da “governabilidade”
Dilma e o PT estão vivendo uma crise profunda. E se grande parte disso é fruto de um desgaste natural enfrentado por um partido que está há mais de uma década no poder, outro tanto é por culpa do próprio partido, de seus dirigentes e da própria presidente. Pense bem: um jovem que hoje tem cerca de 16 anos de idade e pode votar nas últimas eleições muito possivelmente não tem uma memória sequer de um país que não fosse governado pelo PT, pois era uma criança por volta dos quatro anos de idade quando Lula assumiu a presidência. Se muitos brasileiros não têm memória alguma da ditadura civil-militar, há uma geração mais recente que não sabe o que é a inflação do imediato do pós-ditadura, que não acompanhou as mudanças recentes de moeda e a implantação do Plano Real e tantas outras coisas mais. É natural que essa geração associe qualquer crise política, econômica, social etc. ao PT, pois é essa a referência que essas pessoas têm de um governo, de uma nação.
Fora isso, há uma legião de ex-petistas que hoje apoia a direita brasileira e que votou em Aécio Neves (PSDB) nas últimas eleições. Voto que se deu tanto por “protesto”, quanto por desejo de “renovar” a política brasileira ou por realmente acreditar nos tucanos como alternativa melhor do que a atual (entre outros motivos, claro). E os números das últimas eleições mostram como a diferença entre os votos dos petistas e tucanos está cada vez menor – o que há muito vem sendo discutido. Aliás, o jogo inescrupuloso do marketing petista de atacar Marina Silva (Rede Sustentabilidade) para poder chegar ao segundo turno contra um adversário conhecido quase virou um tiro pela culatra. Seguros demais da velha dicotomia PSDB x PT, os petistas quase viram Aécio ser eleito. Precisaram usar a “tática Regina Duarte” do medo para conseguirem vencer as eleições. Acabaram eleitos justamente por um apoio de última hora dos dissidentes “mais à esquerda”.
Em 2015, foi justamente essa “esquerda mais à esquerda” que novamente se decepcionou com Dilma e com o PT, assim como tantos outros “petistas” que vestiram a camisa (ou melhor, avatares de redes sociais) e saíram em defesa da presidente durante as eleições – principalmente no segundo turno. Ainda que muitos corações valentes insistam na míope ideia de que vai tudo bem e que toda essa movimentação não passa de golpe, os movimentos (à direita) desfavoráveis à Dilma chegam neste domingo com a consistência que jamais tiveram nesses últimos meses e anos. E a tendência é que a força dessa oposição cresça mais e mais, como desejam aqueles que querem ver a Dilma e o PT sangrarem. O assunto vai ser imensamente explorado pela mídia e vai repercutir mais e mais nas redes sociais, as forças serão canalizadas contra o governo da presidente e, claro, a “elite golpista”, a “mídia manipuladora” e os “coxinhas reaças” vão aproveitar ao máximo isso tudo.
Se a própria imprensa de esquerda não fala de outra coisa, o que esperar dos setores que há anos não conseguem emplacar tanto ódio e descontentamento contra o PT? Dilma e o PT sangram e sangram. E o sangue vai escorrer muito mais nos próximos dias. Evidentemente, não sou ingênuo de acreditar que Lula, Dilma e o PT seriam capazes de resolver todos os problemas brasileiros em pouco mais de uma década. Aliás, sei que para uma mudança efetiva no Brasil, basta mais do que vontade e atitude de quem está ocupando o lugar da presidência de uma nação. Requer vontade, interesse e força da Câmara dos Deputados, do Senado, dos legislativos e executivos estaduais e municipais, da Justiça, do setor privado etc. Enfim, da população como um todo. Mas, da parte dos que vem se decepcionando com os governos petistas e que têm se posicionado como “mais à esquerda”, vem à pergunta: de que valeu ao PT e à Dilma jogarem na lógica da “governabilidade” que os petistas tanto insistem?
Chutando cachorro morto?
Por que um partido que conseguiu (às vezes mais, às vezes menos) tanto apoio popular e sempre jogou com a “mídia manipuladora” a serviço da “elite golpista” contra seus governos foi tão tímido em ações e mudanças mais concretas? Por que ceder tanto ao apoio de um partido como o PMDB e ficar tão refém desse “aliado” que agora solta as garrinhas e está quase abandonando o barco para assistir mais de longe o circo pegar fogo? De que valeu essa nomeação estapafúrdia de ministérios no começo deste novo mandato? Como explicar um Partido dos Trabalhadores que endurece leis trabalhistas que prejudicam os trabalhadores, que faz “pacotes” que prejudicam os setores das classes mais baixas da população e que continua poupando à elite que historicamente nunca o apoiou e não o apoiará jamais? Como explicar a lógica de um governo que usa o slogan de “pátria educadora” e começa o novo mandato com corte de verba de mais de 30% para a educação?
Como explicar um partido que se diz de esquerda e que age de maneira negligente e até mesmo inescrupulosa no que diz respeito às manifestações da esquerda e, principalmente, em relação às prisões arbitrárias de presos políticos e processos judiciais kafkianos de manifestantes que foram às ruas nos últimos anos? Como explicar o elogio e a continuação de um projeto desenvolvimentista da ditadura civil-militar, em que interesses econômicos sobressaem aos interesses sociais, ambientais etc? Como explicar Belo Monte? Como explicar o descaso às causas ambientalistas e indígenas? Como explicar o menor número de demarcação de terras indígenas dos recentes governos democráticos? Como explicar o medo de se falar em reforma agrária? Como explicar tamanho apoio aos ruralistas e ao agronegócio, aos latifúndios de monocultura? Como explicar a timidez na defesa dos interesses LGBTs? Como explicar o medo de debater temas “polêmicos” como o aborto, a legalização das drogas etc.? Como explicar o aumento da violência policial, da morte de jovens negros e o crescimento da população carcerária do país? Como explicar o apoio e o elogio à intervenção militar por meio das UPPs em favelas? De que tem valido isso tudo? A quem essa política petista tem servido, de fato?
Na mão da “elite golpista”, da “mídia manipuladora”, dos “coxinhas reacionários”, o PT e a Dilma vão sangrar muito nestes próximos dias. Estes movimentos de protesto do próximo domingo são apenas a continuação de uma onda ainda crescente. Infelizmente, acredito que o pior ainda está por vir. E se a presidente e seu partido continuarem nessa arrogância toda, nessa miopia em enxergarem o país que governam, nessa incapacidade de uma comunicação efetiva com sua população, nesse descaso em relação aos que ainda tem coragem de assumirem um posicionamento de esquerda no Brasil, corre o risco do PT chegar às próximas eleições apenas como um partido anêmico; surrado e sangrado de todos os lados e sem uma gota de sangue sequer para dar sinais de vida saudável. Sugados e depois cuspidos pelos seus adversários políticos e pelos seus próprios partidários e aliados, pelos bancários, pelos ruralistas, pelos empreiteiros e por tantos outros mais. Corro o risco de estar aqui simplesmente chutando cachorro morto?
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Adérito Schneider é jornalista