Prolífico e versátil, Eugênio Bucci é formado em Jornalismo e Direito pela Universidade de São Paulo, onde obteve o doutorado e atualmente é livre-docente. Foi presidente da Radiobrás (2003-2007).
É autor de livros sobre jornalismo e articulista em O Estado de S.Paulo e Época. Nesta entrevista por e-mail, adverte contra a tendência de exclusão do jornalismo do debate político.
Num artigo publicado após as eleições, o Sr. observou que o marketing político crescentemente trata de impedir que os jornalistas abordem e questionem os candidatos. Poderia sintetizar essa análise?
Eugênio Bucci – Eu quis chamar a atenção do público para a clamorosa ausência de jornalistas nos debates. Vimos isso em todas as emissoras, num cenário praticamente sem exceção. Por exigência das campanhas, quero dizer, do marketing das campanhas de cada candidato, a figura do repórter com a incumbência de questionar os candidatos foi vetada. É interessante observar que, nisso, os candidatos estavam perfeitamente de acordo entre si. Daí me veio a seguinte pergunta: isso significa que a democracia pode prescindir da imprensa? Pode parecer uma pergunta um tanto extremada, mas não é bem isso. Veja que, para os candidatos e seus partidos, o debate ideal era aquele sem a presença de jornalistas. Bastava que um candidato pudesse fazer perguntas ao outro e, com isso, o princípio do contraditório estaria perfeitamente atendido. E o que se viu na TV? Algo desolador. Um candidato perguntava sobre um assunto, o outro respondia sobre um tema completamente diferente, e assim o telespectador tinha de se contentar com o dito pelo não dito. Um candidato era cúmplice do outro na construção da mentira pessoal de cada um. Aquilo não era contraditório, mas um diálogo de surdos, em que um não levava em conta o argumento do outro. No final, um ofendia o outro, e nada era esclarecido. A falta que faz o bom jornalismo ficou evidente, mas ninguém parece ter se dado conta disso. Para os partidos, contudo, a democracia ideal é aquele teatro de nonsense, um estúdio sem repórteres capazes de contestar os monólogos de cada um. É essa a democracia que queremos? Queremos mesmo uma democracia sem imprensa?
Essa é uma tendência que veio para ficar?
E.B. – Creio que sim, uma tendência forte. O poder de barganha dos partidos é muito grande. Quando estão unidos, como estão nessa exigência de expulsar os jornalistas dos debates, o poder de barganha é maior ainda. Ou as emissoras concordam com as exigências que eles impõem ou os candidatos simplesmente não vão ao debate. A tendência, portanto, é muito forte. Caberá aos meios jornalísticos saber encontrar modos de resistir a ela.
Estamos assistindo a uma desintermediação da informação a exemplo do que ocorre, em parte, com a publicidade?
E.B. – Sem dúvida. Os debates sem jornalistas são exatamente isso: a prevalência do discurso publicitário, decorado pelos candidatos, que podem monologar à vontade, sem ter de prestar esclarecimentos ao cidadão e à imprensa. Isso esvazia os debates de conteúdo crítico. Os debates deixam de ser esclarecedores e o eleitor é quem sai perdendo. A publicidade é legítima e necessária nas campanhas políticas, mas não é a instância ideal para a conformação de um ambiente informativo e crítico. Isso só pode ser proporcionado pela imprensa e pelo jornalismo independente. Não é por outra razão que se costuma dizer que sem imprensa livre a democracia não funciona – e, no limite, não existe.
Quais as consequências disso?
E.B. – A primeira consequência é o empobrecimento perverso do debate público. A outra consequência é o enfraquecimento da instituição da imprensa. Não há como não constatar que a imprensa sai debilitada desse processo. Ela sai relativamente humilhada. É como se os partidos políticos dissessem, em coro, em uníssono, para os órgãos de imprensa: “Ei, vocês não são necessários! Podemos muito bem fazer uma eleição sem a presença incômoda de vocês!”. De nossa parte, seria o caso de perguntar: eleições sem imprensa são realmente eleições livres? Seria também o caso de perguntar: qual o compromisso desses candidatos com a democracia, se eles entram num acordo entre si para expulsar os repórteres dos debates?
É apenas uma questão de marketing e de cultura política ou está associada à emergência das novas tecnologias?
E.B. – Seguramente, as tecnologias estão relacionados a tudo o que se passa à nossa volta. Mas, nesse caso, o problema é exclusivamente de mentalidade política. Mais exatamente, é um problema de falta de cultura democrática no ambiente eleitoral brasileiro. Nesse sentido, o ponto grave aqui não tem relação direta com tecnologia.
Qual deve ser a resposta do jornalismo a esse desafio?
E.B. – Penso que a resposta deve vir dos meios jornalísticos. Eles deveriam ter um acordo entre si de nunca mais, sob nenhuma justificativa, aceitar realizar debates eleitorais sem a presença de jornalistas livres para perguntar o que julgam pertinente aos candidatos, com direito de réplica.
E qual o papel do leitor nisso?
E.B. – O leitor e o telespectador, assim como o ouvinte, deveriam protestar, também. O nosso problema adicional é que muitos deles mal perceberam a real dimensão do vazio aberto pela falta de jornalistas nos debates.
No mesmo artigo, o Sr. afirma que “precisamos da imprensa porque o poder mente, mesmo quando seus agentes não desejam mentir”. Como é isso?
E.B. – É isso mesmo. Quando entregue à lógica de seu próprio monólogo, o poder tende a mentir, pois se lança ao autoelogio sem travas, o que é uma forma estranha de discurso patológico, mitômano, possuído pelo culto de si mesmo. A democracia depende de contrapesos e da contestação, o que, nesse caso, só pode ser proporcionado pela instituição da imprensa. Não há outro modo. Não é verdade que, sem imprensa, o público faria isso sozinho. Esse é um raciocínio enganoso. Sem imprensa, o público não faria isso pela simples razão de que a imprensa nada mais é do que a forma concreta, histórica, pela qual as sociedades livres questionam o poder. Se não há imprensa, é porque, naquela sociedade, o poder não está sendo investigado, debatido e questionado.
É possível mudar esse quadro?
E.B. – Sim. Isso depende, antes de mais nada, da atitude dos próprios veículos e dos profissionais de imprensa. É preciso ir a público e explicar o significado sombrio dessa tentativa delirante do poder de expulsar os jornalistas dos debates eleitorais.
Há quem cobre do jornalismo que seja objetivo no sentido de que se limite a apresentar os fatos e as versões de cada parte envolvida em cada questão. Por exemplo: apresentar a versão do governo e a da oposição, deixando ao leitor a avaliação crítica. Isso é bom jornalismo?
E.B. – Objetividade não é isso. Objetividade, no jornalismo, resulta do exercício crítico da intersubjetividade. A objetividade não é apenas o discurso que decorre dos objetos (em oposição ao discurso subjetivo, que seria aquele que decorre dos pontos de vista subjetivos, sem laços com a realidade objetiva). Na imprensa, a objetividade é produzida pelo diálogo (e não apenas pelo embate) das várias versões, dos vários critérios, das várias leituras possíveis dos fatos de domínio comum. A intermediação, aí, é imprescindível e insubstituível. Essa intermediação precisa passar por instâncias relativamente independentes em relação aos grupos que disputam diretamente o poder. Aí é que entra o papel essencial da imprensa. Só ela pode proporcionar esse tipo de mediação. Não que ela seja o critério final da verdade. Não é. Ela é apenas indispensável para a qualidade do debate público. Sem ela, vou repetir, não há democracia e muito menos eleições de qualidade.
O Sr. já afirmou que a verdade “não é a média aritmética entre duas mentiras”. Poderia detalhar isso?
E.B. – Claro. Quem acredita que da troca de ofensas entre dois candidatos pode emergir a verdade, acredita que a verdade é a média aritmética entre duas mentiras (as mentiras de cada um dos dois candidatos). Isso é um absurdo, um claro absurdo, mas é nisso em que acreditam os partidos que acreditam que não são necessários os jornalistas no debate eleitoral. A verdade não resulta do choque entre os delírios do candidato A e os delírios do candidato B. A verdade, nesse caso, entendida como uma leitura dos fatos menos poluída de veleidades e de voluntarismos propagandísticos, só pode emergir do diálogo crítico (e, portanto, um debate mediado) entre as proposições de cada um deles, à luz das necessidades, dos direitos e das indagações da cidadania.
Em que consiste uma imprensa independente, no seu entender?
E.B. – Pensemos a imprensa como instituição social (uma instituição não estatal), e não pensemos tanto em termos deste ou daquele órgão de imprensa. Se vista como instituição, a imprensa pode ser entendida como a resultante dos processos pelos quais a sociedade civil dialoga consigo mesma em relação ao poder, tematizando o poder, lançando pontes que permitem a interlocução da sociedade com o próprio poder (geralmente cristalizado no comando do Estado). A imprensa pode ser independente na exata medida em que não depende, para existir, dos favores, das permissões ou da sustentação financeira vinda do Estado. Além disso, ela precisa também ser independente do chamado poder econômico, que por vezes se materializa em cartéis não-declarados, que tentam direcionar o debate público. A imprensa é mais independente quando a sua sustentação provém diretamente dos cidadãos que compõem a sociedade. Só assim ela poderá ser veículo de críticas em relação ao poder econômico. O mesmo raciocínio vale para o poder das igrejas, que hoje constitui uma fator de graves distorções na democracia brasileira.
O Sr. foi presidente da Radiobrás no primeiro governo Lula. Num debate sobre emissoras públicas, algum tempo depois, afirmou que elas não são transparentes nem têm independência, comprometendo a liberdade de imprensa. Por quê?
E.B. – Porque não há dados disponíveis, públicos, abertos, sobre os detalhes da gestão de cada uma delas. Não houve, no nosso país, uma evolução da transparência nas emissoras públicas no mesmo nível em que se deu a evolução da transparência do próprio Estado. Aliás, a publicidade oficial no Brasil também não é transparente. Por fim, o nível de independência das emissoras públicas no Brasil é baixo porque elas não são geridas por diretorias independentes, mas por diretorias nomeadas formal ou informalmente pelos governos.
A presidente Dilma passou o primeiro mandato afirmando que o único controle da mídia que admite é o controle remoto. Antes mesmo de eleita, assinou a Declaração de Chapultepec. Agora fala em “regulação”, em termos vagos, embora alguns setores do PT explicitamente defendam que a regulação seja aplicada sobre o conteúdo. Imprensa independente é compatível com regulação?
E.B. – Há um grande mal-entendido aqui. A imprensa não deve ser regulada, de nenhuma maneira. Por outro lado, o mercado em que atuam os meios de comunicação não apenas pode, como deve e precisa de regulação. É assim nas grandes democracias que aí estão. É assim há muito tempo nos Estados Unidos, na França, no Reino Unido, etc. Regular o mercado não é regular o conteúdo. Aliás, regular o mercado é proteger o conteúdo contra interferências estatais nos conteúdos. No Brasil, por exemplo, como o Estado pode ser anunciante, e como não há limites para o que o Estado anuncica, muitas vezes a autoridade pública tenta cooptar editores com base em pressões típicas de anunciantes. Isso é a selva. Isso não é democracia. Não é democrático que igrejas mandem em redes de rádio e televisão. Não é democrático que parlamentares sejam acionistas de empresas que vivem de concessões públicas. Isso precisa ser regulado. E, se isso for democraticamente regulado, a imprensa no Brasil será mais livre e mais plural.
A questão da independência da mídia é indissociável da liberdade, não é? No entanto, diante do recente ataque ao jornal satírico francês Charlie Hebdo, com o assassinato de diversos colaboradores, foram abundantes os comentários condenando a violência, seguidos de um “mas” que, na prática, matizava a condenação e o direito do jornal de publicar o que bem entendesse. Qual a sua opinião a respeito?
E.B. – Não deve haver “mas” nenhum. A democracia precisa suportar a mais radical liberdade de expressão. A democracia deve assegurar esse direito. Tudo pode depois ser discutido na Justiça, é claro. Mas nunca a violência deve ser admitida como limitadora, como um “mas”, diante desse valor supremo que é a liberdade de expressão.
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Carlos Müller, do Jornal ANJ