O último capítulo da novela Império, com duas horas e meia de duração, fim de semana (13-14/3), não alcançou muito Ibope mas foi divertido para os jornalistas. Até no final o afetado blogueiro gay Teo Pereira (Paulo Betti) soltava máximas sobre jornalismo, como “o jornalista separa o joio do trigo, mas assim que encontra o joio clica ‘publique-se’”. Quando Teo foi preso gritava para os carcereiros: “Cuidado, eu sou jornalista do tempo em que jornalista ainda tinha diploma!” – como se os policiais ligassem para isso. E na hora em que negociou a publicação da biografia maledicente com José Alfredo (Alexandre Nero), o “Imperador” autorizou o livro sem cortes, era contra a censura, ensinando: “O que me cita me excita… depois, eu processo”. E Teo comemorou: “Viva a imprensa livre!”
A novela de Aguinaldo Silva vinha cheia de gozações e cacos para os coleguinhas, como a menção de Jurema (Elizângela) ao filho: “Coitado, ele é jornalista, ganha uma merreca”. Não dá para sentir orgulho da profissão, mas ninguém estava mentindo. Jornalismo mudou de status, caiu, e o “império” da Globo, mais do que ninguém, sabe disso.
Estamos cansados de ler com certo rubor o que se passa nos bastidores da mídia como a crise interna do New York Times exposta pelo jornalista americano David Carr que participou da Flip no ano passado, e morreu recentemente.
Os jornalistas não estão muito bem na foto da genial trilogia de Haruki Murakami, 1Q84 (Alfaguara) – em alusão ao livro de George Orwell, 1984 – que explica já na abertura: “Eis o mundo do espetáculo/ em que tudo é fantasia;/ mas se você acreditar em mim,/ real ele se tornará”.
A mesma coisa acontece na imperdível trilogia Millenium (Companhia das Letras),do sueco Stieg Larsson, onde o personagem principal e jornalista sério, Mikael Blomkvist, só consegue se desenrascar da armadilha armada contra ele quando a amiga hacker,Lisbeth Salander, invade contas secretas dos seus inimigos na internet.
Os Imperfeccionistas (Companhia das Letras), de Tom Rachman, é um poço de veleidades dos bastidores das redações no tempo em que o papel dominava, onde coleguinhas desbancados pela velocidade e facilidade da internet apelam para qualquer meio escuso para se manter nas páginas. Fora o deboche e o escárnio, cada um dos onze capítulos nos faz reconhecer tipos e fontes. Tal qual a jornalista blogueira Zoe Barnes, da série House of Cards (Netflix),pronta autilizaros métodos e achaques mais baixos parasubirde escala no jornal The Washington Herald e provar que o blog atrai mais leitores do que as “antiquadas” matérias no papel.
Dá vergonha ver em filmes como as personalidades driblam aquele bando de jornalistas com o gravador na mão e câmeras prontas para atacar, como quaisquer cães raivosos, e obter um flash, uma declaração, por mais irrisória. O cinegrafista inventado de O Abutre entra nas casas e nas cenas do crime para alterar peças e tornar detalhes mais venenosos para a matéria que vai vender em primeira mão.
Números de audiência
A profissão nunca esteve tão por baixo, mas é bom tomarmos conhecimento de como somos vistos e entendidos para perder a altivez que nos tornava heróis respeitadíssimos há não muito tempo. Encarar a verdade diminui decepção e angústia.
Quando isso aconteceu? Foi de repente, mas Aguinaldo Silva sabe bem como as coisas funcionam. Foi jornalista da Última Hora Nordeste em 1962, editor na década de 1970 do primeiro jornal gay brasileiro, o tabloide O Lampião,depois de ser repórter policial no jornal O Globo. Por isso foi convidado pela TV Globo para escrever a série Plantão de Polícia e nunca mais saiu da ficção.
Aguinaldo, na novela, além de colocar os jornalistas na berlinda e aparecer ele próprio no final como fazia Alfred Hitchcock em seus filmes, ainda goza o novo idioma adotado recentemente nos meios de comunicação, quando a ex-pobre, que fica ex-rica, Magnólia (Zezé Polessa), sem papas na língua, descobre que está “negativada”. “Eles não dão crédito até para negativados?”, pergunta a Severo (Tato Gabus Mendes). Falido, o marido tasca: “Negativado? Negativado não existe, é um eufemismo, um jeito carinhoso de dizer que o sujeito está inadimplente, devedor, é trambiqueiro”.
Na mosca. A língua portuguesa ganhou uma criatividade perigosa e complicada quando, em vez de ouvirmos repórteres de rádio dizerem que o sinal não funciona, dizem “sem marca sinalizatória” (!). Se o trânsito engarrafa, dizem “trânsito potencializado”. E quando o sinal apaga por causa da chuva, ouvimos que “estamos sem sinalização semafórica”. Haja gozação na novela! Pior é o produto com muita publicidade ser “publicizado”, ou o erro ser sempre “sistêmico”. E quando há uma série de coisas a ser ditas, haja criatividade: o/a repórter diz “vamos elencar”.
Ninguém mais fala francês e a Rua Conde de Frontin, que antes se lia com a pronúncia correta (“frontein”), agora é “frontin” mesmo, e a Haddock Lobo, de longa data com agá mudo, virou “Rrradock Lobo”. Magnólia usa até um “houveram” achando chique, mas muito repórter já usou a mesma aberração no ar.
“Cruzes”, diria Téo Pereira. Palavras como “tiro ao árvaro”, “luminar” em vez de iluminar, só ficam bem, e muito bem, em Adoniran Barbosa. Em vez de ficar na dúvida que penumbra o jornalismo desde que Mário de Andrade, homenageado da próxima Flip, morreu em 1945 (“Era? Não era?”), Aguinaldo, além do blogueiro gay e do cabeleleiro Xana (Ailton Graça) , ainda une numa boa o casal de homossexuais Claudio (José Mayer) e Léo (Klebber Toledo) diante da improvável e surrealista esposa Beatriz (Suzy Rêgo), que aceita tudo – isso, sim, só na novela.
Parece que Impérioteve só entre 44 e 46 pontos de audiência no capítulo final e em sua reprise, mas para os jornalistas do tempo em que tinham diploma, e sabiam português, foi bem engraçada.
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Norma Couri é jornalista