Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Reality’ versus realidade

Contra todos os prognósticos, o Big Brother Brasil entrou na reta final da 15ª edição sem dar sinais de que a sua fórmula esteja esgotada.

No ar desde 2002, o reality show da Globo segue firme como uma opção de entretenimento rentável para a emissora, com audiência ainda significativa e, não menos importante, sem perder a capacidade de gerar polêmicas que extrapolam o espaço da televisão.

É um fenômeno, especialmente por se tratar de uma atração sem atores, sem roteiro, “interpretada” por figuras anônimas, exibida em um dos horários mais nobres da emissora.

O formato mexe com o espectador por inúmeros motivos, sendo os mais explícitos o fascínio oferecido pelo voyeurismo e o prazer de julgar o comportamento alheio.

Para quem demoniza o conceito do reality show, é sempre bom lembrar, como já escrevi antes, que a programação da TV paga, supostamente destinada a um público mais qualificado, está hoje dominada por programas em que o público é convidado a compartilhar da intimidade alheia ou decidir o destino de candidatos a prêmios variados.

Para muita gente, porém, o BBB permanece como símbolo maior do que, em tese, a televisão tem de pior. E isso se deve muito à visão que o diretor J. B. Oliveira, o Boninho, tem do programa e do entretenimento, de uma maneira geral.

Promessa de “realidade”

Assim que a cirurgiã-dentista Tamires, de 24 anos, pediu para abandonar o reality, no último domingo (8/3), Boninho se dirigiu aos participantes que restaram e falou: “Quem sai é desistente, é perdedor. Quem é eliminado, lutou até o final com louvor, lutou com a sua alma. Quem perde é quem desiste, quem é fraco.”

De forma provavelmente intencional, o áudio do diretor foi captado por quem acompanhava o programa no canal pago e na internet. “Eu acho que vocês devem acabar de enterrar esse eliminado, essa pessoa que se autoeliminou, que se suicidou ou que foi embora para o espaço.”

Os problemas reais que Tamires enfrentou durante o confinamento, como bullying, machismo e assédio moral, foram encarados como “fraquezas” pelo diretor. Não é difícil enxergar cinismo nesta postura, mas o fato é que, por suas atitudes, Boninho dá a entender que a realidade é apenas um combustível para gerar conteúdo “divertido” na casa.

Diferentes ex-participantes já relataram os danos causados pela exposição da intimidade no BBB – desde distúrbios físicos e mentais até prejuízos profissionais graves.

Cabe a pergunta: o candidato não sabia onde estava se metendo? O prêmio em dinheiro (R$ 1,5 mi) e, tão ou mais importante, a oportunidade de ficar famoso ainda falam mais alto.

Por seu impacto nos mais variados cantos do mundo, o conceito de reality show pode ser considerado a inovação mais significativa no conteúdo da televisão ocorrida nos últimos 15 anos.

Veja o caso de Dropped. O programa francês ia mostrar a experiência de ex-atletas, bem-sucedidos em suas especialidades, ao serem “abandonados” no meio da natureza, na Argentina. A promessa de “realidade” do programa, porém, foi obscurecida pelo choque – real – de dois helicópteros, que causou a morte de dez pessoas.

Acho improvável que mesmo uma tragédia deste tamanho diminua o ímpeto por programas deste gênero.

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Mauricio Stycer, da Folha de S.Paulo