Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um jornalista libertário

Foi em um cantinho improvisado por office-­boys da redação da “Gazeta Mercantil”, em torno de uma pequena TV, em 1990, que conheci Armênio Guedes, jornalista nascido na Bahia em 1918 e morto no dia 12, aos 96 anos.

Fugíamos da vigilância do chefe o severo jornalista Matías M. Molina para pescar furtivamente imagens, reprises, e bater papo furado sobre os jogos de uma das Copas do Mundo mais enfadonhas da história, a da Itália. “Não tolero esse jogo travado da seleção”, dizia ele, numa indignação discreta, em voz baixa, para não sermos detectados. “Não tolero esse Lazzaroni. Não foi para ver essa porcaria que nos apinhamos aqui nessa clandestinidade.”

Armênio começara, naquele ano de 1990, aos 71 anos, a secretariar as reuniões de pauta, para, depois, editar a coluna de opinião da “Gazeta Mercantil”, na época o maior diário de economia da América Latina. Eu, repórter novato, tendo abandonado a advocacia, escrevia sobre temas jurídicos.

Os textos da “Gazeta” eram precisos e as análises, desapaixonadas. Roberto Müller, regente de uma orquestra de jornalistas notáveis, extirpava dos textos todo e qualquer contrabando, ideológico ou pessoal, que pudesse comprometer o principal produto do jornal a credibilidade. Tentávamos sugerir rumos para o disfuncional capitalismo brasileiro, às voltas naquela época com mais um plano de estabilização fracassado o Collor 1, de triste memória.

Portanto, foi com certa surpresa que descobri, ao longo dos meses, naquele templo da objetividade jornalística, quem de fato era Armênio sua militância de 50 anos no Partido Comunista Brasileiro, sua convivência com Luís Carlos Prestes, a clandestinidade, o exílio, as perdas pessoais.

No início, achei aquilo meio esquisito. O que faziam comunistas dirigindo um jornal de negócios? Aprendi, depois, que Armênio estava no lugar certo, na hora certa. Tinha apego à noção de liberdade, respeito absoluto à tolerância, admiração por novas tecnologias e uma compreensão ímpar do caminho tortuoso pelo qual engatinhavam a democracia e a economia brasileiras.

Armênio nos conquistou pela personalidade encantadora, por um humor fino e mordaz e por sua generosidade única.

Ele nunca teve a cabeça de um velho nem se valeu de nenhuma autoridade derivada de sua idade, de sua experiência ou dos cargos que ocupou.

Comunista avulso

Não por acaso tinha tantos amigos, de várias gerações: jovens repórteres, diagramadores, secretárias, motoristas. Ele conhecia o nome de cada um, seus problemas, interessava­-se genuinamente em ajudar o outro.

Fazia observações curiosas, embora sensatas, sobre o jornalismo: “É uma esculhambação esse negócio de ter uma manchete espalhafatosa por dia. A vida não caminha assim. Isso afasta as pessoas da leitura”.

Armênio gargalhava diante de piadas e apreciava boas imitações. Embora muito bem casado com Cecília Comegno, amava as mulheres –­ amor, diga-­se, recíproco. Moças não saíam de sua mesa, atraídas pela cortesia e por seus olhos azuis. Quando alguma beldade vinha cumprimentá­-lo, e ele notava meu olhar embasbacado, o que deve ter ocorrido algumas vezes, repetia alegremente um mantra baiano: “Tire os olhos, canalha! Isso aí é mulher para muita competência. Pra mim não dá mais? pra ‘voismicê’ nem nunca dará”.

Numa contradição com as décadas de disciplina comunista, Armênio abominava autoridades e tinha alergia à burocracia. Não usava crachás, por exemplo. Sempre que um segurança lhe chamava a atenção (“Seu Armênio, sem o crachá de novo!”), ele retrucava: “Se o amigo sabe meu nome e conhece até meus hábitos, por que diabos precisa pedir meu crachá?” O argumento, definitivo, funcionava.

Armênio era tímido e tinha aversão à autopromoção. Preferia sempre o anonimato jornalístico. Advertia os mais jovens sobre excessos de palavras, de temperatura, de protagonismo e tinha prazer em melhorar textos alheios. “Fuja desse falso moralismo, esse parágrafo vai te perseguir por anos”, advertia. Ou: “Esse cara é muito chato, ninguém vai ler uma linha dessa entrevista”.

Armênio mencionava seu passado em doses homeopáticas, sempre em alusão a conversas corriqueiras. Nunca de forma enciclopédica, heroica ou enfadonha.

Falava de suas perdas. Uma delas, relatada por seus biógrafos, foi a do irmão Célio Guedes, morto pela ditadura militar em 1972, quando, cumprindo uma missão do Partido Comunista, buscava, de Montevidéu, o médico Fued Saad, que voltaria clandestinamente ao país. Ao cruzar, os dois foram identificados e detidos. Célio, rendido, foi assassinado.

Da outra perda a da irmã Iracema, oito anos mais velha, sua tutora quando criança pouco falava. Em 1968, vivendo na semiclandestinidade no Rio, Armênio recebeu Iracema, cujo filho fora baleado em uma manifestação em Salvador.

Como achasse que Iracema dirigia muito mal, prometeu que a levaria de Fusca, ele ao volante, até uma agência de turismo no Leblon, para comprar as passagens de volta. Armênio atrasou­-se, e Iracema decidiu dirigir ela mesma o Fusca, levando uma prima no banco do carona. Um ônibus atingiu o carro na rua Dias Ferreira, no bairro. As duas morreram. Armênio culpou­-se por não ter chegado a tempo? e sofreu muito porque, avisado pelo porteiro do acidente e das mortes, chegou a ver o carro acidentado, rodeado de policiais, mas não pôde aproximar­-se porque seria preso.

Seria de esperar que uma vida tão longa, e marcada por tantas perdas traumáticas, tivesse resultado numa figura embrutecida. Mas Armênio era diferente. Os golpes que recebeu nunca lhe roubaram a doçura, a alegria de viver. Para cada perda que a vida lhe impôs, ele tinha uma capacidade ímpar de inventar novos amigos.

Armênio dizia­-se um comunista avulso. Eu sempre o considerei outra coisa: um libertário. E, acima de tudo, uma das pessoas mais humildes, cativantes e generosas que já conheci.

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Marcio Aith, 47 anos, é jornalista e advogado e secretário de Comunicação do Estado de São Paulo