Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Estado de exceção e as manifestações (auto)golpistas

1. Tendo em vista a análise do modelo de realização do imperialismo estadunidense e sua intervencionista presença contemporânea, estilo dron, nas manifestações de rua do Brasil em 2013 e 15 de março de 2015, este ensaio propõe atualizar o aforismo oitavo, presente no texto “Sobre o conceito de História” (1940), do filósofo alemão, Walter Benjamin (1892-1940), que assim diz: “ A tradição do oprimido nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é regra geral. Precisamos chegar a um conceito de história que corresponda a essa verdade”.

2. Dizer que o estado de exceção é regra geral, com Walter Benjamin, é assumir integralmente o seguinte argumento: num mundo, como o nosso e das civilizações precedentes, em que as riquezas coletivamente produzidas são planejadas e apropriadas por oligarquias, o estado de exceção é regra geral, em todos os planos da vida cotidiana, pela evidente razão de que, entre iguais, para antecipar um diálogo com Giorgio Agamben (2015) não existe estado de exceção, razão suficiente para deduzir o contrário: se o que prevalece por todos os lados é a desigualdade esta é a prova cabal de que o estado de exceção é por ele mesmo a soberania da violência da lei contra as maiorias inferiorizadas, excluídas.

3. Em Meios sem fim: notas sobre a política (2015), Giorgio Agamben (1942) define a soberania como o nexo constituído entre direito e violência em escala planetária.

4. O soberano seria, sob esse ponto de vista, o guardião do nexo entre a violência e o direito na guerra civil planetária como resultado do estado de exceção planetário.

5. Para realizar a guarda do nexo entre o direito e a violência, o soberano tem a seu serviço o poder de polícia planetário.

6. Bem mais que mera executora administrativa do estado de exceção, a polícia planetária se constitui como realização em ato do nexo entre direito e violência; ato que se expressa pela exclusão da vida nua – pelo, portanto, policiamento do povo e também pela criminalização permanente do povo policiado.

7. A polícia é a realização do nexo da decisão soberana entre o direito e violência porque o estado de exceção planetário tem só um objetivo: evitar a igualdade, porque, ainda com Agamben, “entre iguais não há império”.

8. Um povo policiado é nesse sentido não apenas um povo abandonado, excluído, mas também, antes de tudo, um povo criminalizado pela polícia do estado de exceção soberano, apresentado por esta como inferior, improdutivo, corruptível, ignorante.

9. Num mundo acertadamente definido por Guy Debord, no livro A sociedade do espetáculo (1967), como o da sociedade do espetáculo integrado, o soberano, sendo o nexo entre o direito e a violência, o guardião desse nexo, é também antes de tudo um guardião de um sistema de aparência planetário.

10. A função da polícia nesse sistema de aparência planetário do estado de exceção é a de editar mundialmente (ou geopoliticamente) a partilha dos rostos contemporâneos, razão pela qual, diz Agamben: “A verdade, o rosto e a exposição são hoje objeto de uma guerra civil planetária, cujo campo de batalha é toda a vida social, cujas tropas de assalto são os media, cujas vítimas são todos os povos da terra (1915, p.90)”.

11. Em termos gerais, estou plenamente de acordo com Agamben.

12. Não compartilho, no entanto, com a conclusão a que chega. Para Agamben, o soberano, como guardião do nexo entre direito e a violência, é simultaneamente o Estado e a História.

13. Para superar o estado de exceção e portanto para romper o nexo entre o direito e a violência seria necessário, segundo Agamben, extinguir o Estado e eliminar a História e, por tabela, abandonar qualquer ideia de fim.

14. Não será circunstancial, por isso mesmo, que Agamben afirme que o imperialismo seja uma velha figura da soberania dos Estados-nação do século 19, assim como o nacionalismo, razão pela qual, conclui Agamben, ambos, nacionalismo e imperialismo, são categorias que não dão conta da complexidade do contemporâneo, marcada por um contexto planetário de disputa da aparência povo, editando-o policialmente.

15. Gosto muito de ler Agamben. Tenho-o como referência teórica importante, sem contar a sedução fascinante que emana de seu estilo, literariamente ambíguo, sinuante, aporético, mas penso que suas conclusões, inclusive e antes de tudo a que diz respeito ao imperialismo, é equivocada e o é porque ele dialoga criticamente com o imperialismo europeu, deixando de lado o americano.

16. Agamben faz uma leitura singular do mundo contemporâneo, ao apresentá-lo como marcado por uma guerra civil planetária em que as tropas de assalto, a função de polícia soberana, é levada a cabo pelos media, num contexto em que as vítimas são os povos da Terra.

17. Também é insuperável quando diz que o homem alcançou na atualidade o seu fim da história porque o totalitarismo contemporâneo, sendo planetário, “assume como tarefa a pura e simples existência fática dos povos (1915, p.126)”.

18. Tanto a guerra civil planetária como sistema de aparência policial que edita a seu bel-prazer o povo, descritos singularmente por Agamben, no livro Meios sem fim: notas sobre a política, são traços do modelo de realização do imperialismo americano – o verdadeiro guardião contemporâneo do nexo entre o direito e a violência.

19. Ao falar em fim do imperialismo, portanto, é preciso entender que Agamben, consciente ou não, refere-se ao imperialismo europeu, que estava centrado na disputa territorial do planeta tendo como figura soberana os Estados-nação europeus.

20. O fim da história e o fim do imperialismo, com a existência fática de um povo planetariamente abandonado, tem a ver, nesse sentido, com a definição que Lênin, em Imperialismo, etapa final do capitalismo (1916), realizou do imperialismo (europeu), definindo-o como marcado por países armados até os dentes que disputa(vam) a partição bélica do planeta.

21. Se partimos da hipótese de que o romantismo, como estilo de uma época, emergiu tendo como tema não apenas os Estados-nação mas também as forças da Terra, é possível definir o imperialismo europeu como romântico, porque, ao mesmo tempo com Lênin e com Agamben, foi protagonizado por um processo de soberania em que os Estados-nação europeus, no movimento bélico de suas guerras de pilhagem, foram os guardiães do nexo entre o direito e a violência, em escala planetária.

22. Um exemplo literário de uma ficção romântica que pode exemplificar o imperialismo europeu éFrankenstein (1818), obra da escritora britânica Mary Shelley, por meio da qual é possível ler a formação de um pesquisador, o doutor Frankenstein, um dedicado estudioso das ciências naturais e da alquimia medieval.

23. Por si mesmas, no contexto do século 19 europeu, as ciências naturais, como o próprio nome indica, são as ciências das forças da terra, a saber: ciência da fauna e as forças animais; ciência da flora e das forças vegetais. ciência dos mares, e das forças marítimas; ciência climática e das forças atmosféricas; ciências da vida e, portanto, das forças e das potencialidades biológicas dos seres, não sendo circunstancial a emergência no 19 do livro A origem das espécies (1859), do naturalista inglês Charles Darwin.

24. O amálgama das ciências da natureza com alquimia medieval, campo de estudo do doutor Frankenstein, protagonista do romance de Mary Shelley, é por si mesmo o romantismo da combinação científica e estética das forças da bio (entendida como vida humana) e das forças da zóe (entendida como vida animal).

25. O romantismo, nesse sentido, pode ser compreendido como a estética das combinações das forças da Terra.

26. No caso do romance de Mary Shelley, seu enredo é sobre antes de tudo a combinação das forças humanas com as forças animais (ou por extensão, com as forças da natureza), tendo em vista uma alquimia de forças híbridas cujo objetivo era a criação de uma segunda vida, nem humana e nem animal e ao mesmo tempo humana e animal.

27. Essa segunda vida é o monstro que o doutor Frankenstein criou. Um monstro como segunda natureza que ficou sem lugar no mundo porque estava fora da natureza dos animais e também fora da natureza humana, razões suficientes para que a criatura viesse a se revoltar contra o criador.

28. O imperialismo europeu (e sobretudo inglês) é do estilo doutor Frankenstein, uma mistura alquímica das forças da Terra cujo objetivo consciente e inconsciente era o de controlar, colonizar, submeter o seguinte suposto monstro: os povos da Terra, essa mistura alquímica, sob o olhar do soberano imperialismo europeu, de zoe (animal) com bios (vida humana), de morte, natureza em dissecação, logo excluída, e sua ressurreição pela ideologia técnico-científica do doutor Frankenstein.

29. Porque somos terráqueos, obviamente são sempre as forças da Terra que estão em jogo, independente do imperialismo. O que distingue o imperialismo americano do europeu, no entanto, é o ponto de vista (ou a tecnociência) a partir do qual ele realiza sua mistura alquímica das forças da Terra: é um ponto de vista cosmológico, o do imperialismo americano, a partir do qual as forças da Terra são esquadrinhadas, mapeadas, combinadas de modo satelital, compreendendo esse modo como mediação ou mistura alquímica das forças da Terra com as forças do cosmos.

30. Em diálogo com Deleuze e Guattari (1980), chamo o domínio bélico planetário das tecnologias das forças da terra, de imperialismo europeu romântico, ao estilo doutor Frankenstein; e, por sua vez, designo como imperialismo americano moderno o monopólio estadunidense das tecnologias de captura das forças cosmológicas, a partir do qual realiza sem cessar uma alquímica combinação soberana das forças da Terra com as forças do cosmos.

31. O imperialismo moderno americano é ele mesmo o soberano que guarda, no seu estado de exceção planetário, o nexo do direito com a violência e o faz tendo em vista um poder de polícia igualmente planetário que tem como epicentro os media, a sociedade do espetáculo integrado, que assim o é, integrado, porque igualmente edita e reedita a Terra de fora da Terra, razão pela qual, nela e através dela, o planeta todo se torna uma alquímica vida nua engendrada pela combinação entre as forças da Terra e as forças do cosmos; alquimia que produz uma realidade fática do fim da história porque seu passado, o passado da Terra, tornou-se também uma mera força arbitrária a ser ilimitadamente (ou exotericamente) misturada, soberanamente.

32. Os dois imperialismos, o europeu e o americano, como doutores Frankenstein, tiveram e têm o seguinte objetivo: decretar o estado de exceção sobre os povos do mundo, transformando-os em criaturas às quais Agamben dá o nome de vida nua, assim as descrevendo: “O sujeito último que se trata de excetuar e, ao mesmo tempo, de incluir na cidade, é sempre a vida nua (1915, p.15)”.

33. A diferença do imperialismo europeu para o americano, nesse sentido, tem relação com as formas como excluem e incluem a vida nua planetária.

34. O imperialismo europeu romântico excluiu e incluiu as vidas nuas estabelecendo uma diferença hierárquica entre: 1) o norte e o sul (uma diferença geopolítica), no contexto da qual o norte era incluído e o sul do planeta era excluído. Essa relação entre de exclusão do norte em relação ao sul do planeta tornou imperativo que este, o sul do planeta, para ser incluído, realizasse um movimento de submissão e incorporação das instituições produzidas pelo norte; 2) burgueses e operários, tal que estes deviam se referendar na ideologia daqueles como o único meio de inclusão possível, desde que aceitassem a condição de não proprietários dos meios de produção; 3) brancos europeus e peles não brancas; 4) patriarcado e alteridades de gênero como mulheres, gays, travestis; (5) outras.

35. Fundamentalmente, no que diz respeito ao imperialismo romântico europeu, a relação dicotômica entre os pares mencionados deveria ser hierárquica, positivando o primeiro termo e tornando o segundo refém dele para que pudesse ser incluído, ainda que inferiorizado, no estado de exceção da civilização burguesa de seu período.

36. Por sua vez, o imperialismo americano moderno, porque edita as forças da Terra, a vida nua, de fora da Terra, combinando suas imagens como um ato mágico de Photoshop,decidiu o estado de exceção planetário substituindo a realidade pela imagem espetacular, tal que esta, podendo ser ilimitadamente recombinada, torna-se a polícia em ato da relação entre direito e violência, a partir do seguinte referencial: a vida nua só é incluída se for capturada pela indústria cultural, pela cultura de massas, pelos média, razão pela qual deve tornar-se ignorante em relação à sua realidade concreta, na maioria das vezes mais agônica, sob o ponto vista hierárquico, que a situação posta em terreno pelo imperialismo europeu.

37. Os media, portanto, são a polícia do imperialismo americano e o são planetariamente.

38. Embora de alguma forma Agamben admita o argumento precedente, tanto que dialogo com seu livro Meios sem fim: Notas sobre a política, para fazer tal afirmação, a de que os , media, como epicentro do sistema de aparência do contemporâneo excluem sem história concreta a vida nua e a incluem imageticamente, como história virtual, produzindo assim uma realidade fática concreta para sua exclusão efetiva, minha discordância de Agamben, como disse, deriva do fato de que ele ignora completamente o imperialismo americano, razão pela qual não apenas o elimina como categoria digna de análise como também deixa de lado o seguinte referencial a meu juízo ( ainda que sem juízo), indispensável: o sistema de aparência dos media se constitui como a polícia do estado de exceção do contemporâneo e tem como referencial de soberania o imperialismo americano.

39. Como o que existe, sob o signo dos media como polícia do estado de exceção do imperialismo moderno americano é pura imagem sem lastro na vida real, é possível inferir que a praça pública também em seu contexto não passe de um puro rosto em exposição irreal, assim como o próprio campo de batalha teatralizado pela praça pública virtual tenha como horizonte uma vida social igualmente virtual – edição de edições espetacularizadas. Nada mais!

40. Não assumindo, portanto, que a realidade dos media, como polícia planetária, seja a irrealidade do estado de exceção do imperialismo americano, Agamben a generaliza, como se a batalha pela produção das aparências da vida social , pelos media, fosse levada a cabo por diferentes atores do mundo contemporâneo, em posições de combate, digamos, mais ou menos semelhantes.

41. Parto do argumento de que o monopólio dos media é imanente à soberania do imperialismo moderno americano, assim como, no estado de exceção como regra geral, a polícia se constitua como a cara da coroa do soberano – uma mesma moeda, portando.

42. É por isso mesmo que nada ofende mais ao imperialismo moderno americano que uma real democratização dos media, pela evidente razão de que estes se constituem como a sua polícia planetária em ato – a que realiza o estado de exceção como regra geral, substituindo a realidade pela virtualidade midiática, como exclusivo puro meio técnico de incorporação editável da vida nua.

43. É nesse sentido que ousaria dizer que Agamben seja ainda, não obstante o seu fascínio e o acerto de suas análises, um teórico do imperialismo americano, argumento que justifico tendo em vista o que está na base de seu pensamento, a saber: o niilismo e a crise dos fins, da teleologia, dois traços onipresentes na cultura, no pensamento e na política mundial do contemporâneo; traços, a meu juízo, conscientemente produzidos pelo imperialismo moderno americano.

44. Quase tudo por todos os lados é rendição ao niilismo como vontade de nada e por consequência quase tudo por todos os lados vomite sem cessar a ladainha de que a finalidade, qualquer que seja, é autoritária, é coisa do Estado, da História, de ditadores, de populistas e que portanto o niilismo de um fim sem fim é tudo que nos reste como (im)possibilidade.

45. A eficiência do niilismo e da crise dos fins, gestada pelo imperialismo americano, tem um objetivo muito simples, a saber: evitar uma práxis pós-capitalista e antiimperialista e principalmente uma práxis que tenha clareza dos desafios da nossa época: destituir a polícia dos media incluindo a vida nua coletiva como protagonista do presente e do futuro tendo em vista principalmente o destronamento do imperialismo americano, colocando no seu lugar, aí sim, o fim sem fim da imanência povo a construir o Estado mundial de uma sociedade sem Estado, porque sem opressores e oprimidos, porque sem classes sociais.

46. Sob esse ponto de vista, o documentário A revolução não será televisionada (2003), sobre o golpe de estado ocorrido na Venezuela em 2002, contra o ex-presidente Hugo Chávez, de Kim Barthey e Donnacha O’Briain, constitui um exemplo paradigmático da polícia midiática onipresente no contemporâneo e braço armado do estado de exceção da soberania do imperialismo estadunidense que funciona incluindo a vida nua televisionando-a, midiatizando-a, recriando-a virtualmente, como um Frankenstein satelital da falsificação de tudo, então tornado fetiche de nada, no efeito de niilismo que a virtualização, sem base no real, produz, sem cessar.

47. E porque as revoluções de vidas nuas destronando suas oligarquias vinculadas à soberania do imperialismo americano não serão televisionadas ou só serão se forem incluídas como momento do falso, como virtualidade capturada, aqui se chega ao caso das manifestações de junho-julho de 2013 e as de 15 de março do corrente ano, no Brasil. Ambas, é preciso dizer com toda tranquilidade possível, foram largamente televisionadas com o objetivo claro de colocar no lugar da realidade de nosso drama histórico de vida nua, o sistema de aparência policial das revoluções coloridas, planejadas, financiadas e executadas pelo imperialismo americano.

48. Não obstante todas as contradições do PT e principalmente considerando a evidência lastimável de que tenha abandonado a agenda socialista, sua vocação social que o faz propor uma lei de partilha para a exploração das maiores jazidas de petróleo, as do pré-sal, encontradas nos últimos tempos, assim como a sua insistência em não abandonar a lei do conteúdo nacional, que pressupõe uma exigência mínima de conteúdo nacional para todas empresas fornecedoras da Petrobrás, é mais que suficiente para deixar o imperialismo americano de cabelo em pé, sem contar a relação propositiva e afirmativa do Brasil com e no BRICs; e seu, ainda que hesitante, apoio aos governos da Venezuela, da Argentina, de Bolívia, de Equador, na América Latina.

49. Não compartilho, nesse sentido, com o consenso entre as esquerdas brasileiras e mundiais fundamentado na premissa de que o que ocorreu no Brasil em junho e julho de 2013 tenha sido espontaneamente revolucionário e portanto diverso das manifestações do último domingo, 15 de março, fundamentalmente planejadas por setores reacionários da sociedade brasileira, sem contar o fato de que os três principais movimentos que as planejaram e as convocaram “Vem para rua”, “Movimento Brasil Livre”, “ Movimentos Rebelados Online”, na linha de um “não existem alternativas”, palavra de ordem do neoliberalismo belicista de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, são a encarnação “incluída” do momento do falso do sistema de aparência dos media: seus jovens soldados da vanguarda do estado de exceção decretado contra a vida nua brasileira realmente existente, além de em tudo lembrarem de imediato os movimentos criados pelo Frankenstein estadunidense em países como Líbia, Síria, Iraque, Venezuela.

50. Em ambas manifestações, as de 2013 e as do último domingo, dia 15 de março, prevaleceu a concepção de palavra de ordem elaborada por Deleuze e Guattari (1980), cujos traços principais são: 1. a palavra de ordem, diferente do que estamos acostumados a pensar, nunca é simples, evidente, monotemática; 2. a palavra de ordem emerge no movimento sem fim da variação de situações igualmente variadas de e da linguagem em ação; 3. a palavra de ordem é a parasita da linguagem; 4. a função da linguagem não é comunicar, mas transmitir palavra de ordem parasitando-a a pretexto desse ou daquele assunto, desse ou daquele tema, dessa ou daquela demanda.

51.

O soberano planetário imperialismo americano decreta o seu estado de exceção planetário na variação indefinida de palavras de ordem e o faz por meio dos média, essa tecnologia satelital que é nela mesma, como puro meios de meios, a técnica das técnicas da produção ilimitada de palavras de ordem, como parasita da linguagem, tendo em vista variações indefinidas de situações de linguagem, como programas jornalísticos, novelas, publicidades, reportagens, programas de esportes, de auditório, filmes, shows musicais, entrevistas, redes sociais, portais de internet – e um sem fim de outros.

52.

É na sua suposta diversidade em sua pura técnica de produzir diferentes gêneros de conteúdos e artefatos e suportes de comunicação que a polícia dos media se tornou o braço armado ou o executor público da vida nua mundial, pois, não obstante a diversidade de seus meios e técnicas, a palavra de ordem que tendencialmente circula na maioria deles, se se considera os media corporativos, é: subserviência ao imperialismo americano.

53

Tanto nas manifestações de junho/julho de 2013 como nas últimas de domingo, 15 de março, no Brasil, a pretexto da diversidade de pautas, bandeiras, demandas, a palavra de ordem que as parasitou foi: derrubar o governo Dilma Rousseff ou sangrá-lo até a última gota para derrotá-los a ela ao PT e as esquerdas, deixando o caminho aberto para exploração americana do nosso petróleo, de nossos recursos naturais, enfraquecendo por tabela os governos de esquerda da América Latina e os BRICs.

54.

A palavra de ordem, portanto, num caso e noutro, foi e é: golpe de estado, midiático-jurídico-parlamentar ou mesmo militar, em último caso.

55.

É evidente que as manifestações de junho e julho de 2013 foram, digamos, mais híbridas, porque, além do mesmo perfil de classe presente nas do dia 15 de março deste ano, havia também nelas militantes de esquerda.

56.

No entanto, essa suposta evidência diferencial é ela mesma a variação mais instigante, porque mais falsamente universal, parasitada pelo imperialismo americano, por meio da sua policia midiática planetária, razão pela qual as manifestações de 2013 foram vistas pelos media nacionais e internacionais, incluindo os de esquerda, como o momento revolucionário de nossa Primavera Árabe.

57.

O motivo pelo qual as manifestações de 2013 foram positivadas por quase todos os atores sociais, independente de seus traços ideológicos, tem relação com a diferença fundamental entre o imperialismo europeu e o americano.

58.

Assim como Agamben, embora produza um pensamento instigante, ainda que fale em nome da felicidade coletiva, rende-se ao niilismo do imperialismo americano porque não dialoga com seu efetivo modelo de realização moderno-cosmológico, as esquerdas também no geral cometem o mesmo erro.

59.

Tanto Agamben como as esquerdas (sempre tem exceções) são ainda fundamentalmente românticos. Acreditam nas forças da Terra, por elas mesmas. Pensam que elas irão ou poderão romanticamente (ou espontaneamente; dá no mesmo) tomar o Palácio de Inverno – o soberano.

60.

Ocorre que o verdadeiro lugar do Palácio de Inverno no contemporâneo é o soberano imperialismo estadunidense, esse Leviatã que guarda o estado de exceção planetário a partir do ponto de vista cosmológico, razão pela qual nos edite policialmente, pelos media, como peças de um jogo de xadrez planetário a partir do qual a realidade da vida nua, dos povos do mundo, é substituída pelo cinema – pelo enfim espetáculo de um povo ilimitadamente editável.

61.

Enquanto formos apenas românticos, isto é, enquanto estivermos emparedados pelos muros de nossas próprias forças terráqueas, o Palácio de Inverno (ou de Verão) efetivamente tomado será sempre a sede dos governos que contrariam a soberania do moderno imperialismo americano.

62.

Para produzir um mundo sem soberania e sem vida nua, mais do que nunca a urgência urgentíssima deve ter como horizonte político fundamental a seguinte tarefa insubstituível: despoliciar os media, ocupando-os com nossas vidas nuas fora de todo e qualquer sistema de aparência soberanamente constituído.

63.

Quando então os meios sem fins, na utopia do agora, serão a felicidade coletiva.

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Luís Eustáquio Soares é professor, autor de A sociedade do controle integrado: Franz Kafka e Guimarães Rosa (2014) e de O evangelho segundo satanás (romance, 2011)