Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Vera Guimarães Martins

Manchete da Folha na segunda-feira (16): “‘Fora, Dilma’ reúne 210 mil em São Paulo e multidões no país”. Está aí uma manchete equivocada, e não exatamente (ou só) pela razão que provocou quase uma centena de protestos à ombudsman. A bronca do leitorado se concentrou no cálculo da multidão, considerado irrisório diante do milhão de pessoas divulgado pela Polícia Militar, mas o enunciado todo é infel.

Primeiro por empacotar num único slogan a diversidade de razões dos que foram às ruas. Não há dúvida de que os protestos eram contra o governo petista, mas colocar todo mundo no mesmo saco do “Fora, Dilma” é uma inferência indevida, como mostravam as declarações dos manifestantes entrevistados.

O segundo problema foi cravar o número (que é sempre estimativa, e não conta exata) em vez da dimensão: foi o maior ato político na cidade desde as Diretas-Já.

Para coroar, o jornal errou ao informar que o maior ato político havia sido o comício pelas diretas da Sé, em janeiro de 1984. Foi o do Vale do Anhangabaú, em abril do mesmo ano, cujo comparecimento então divulgado foi de 1 milhão de pessoas. Em 1994, nos dez anos das Direta-Já, o Datafolha mediu a área e calculou que ali não cabiam mais de 400 mil. Em 2011, já com a novidade do software de georreferenciamento, uma nova medição ajustou o número para 379.400 pessoas.

A mesma revisão fechou as contas na Paulista em 949 mil; na Consolação em 564 mil e na praça Campo de Bagatelle (em frente ao Campo de Marte) em 1,15 milhão –todos com lotação de 7 pessoas/m2, padrão do metrô no horário de pico.

Desde então, o Datafolha usou o método para medir a Parada Gay, a Marcha dos Evangélicos, o encontro do papa na praia de Copacabana. Em todos os casos, a discrepância entre estimativas provocaram torrentes de reclamações, principalmente de organizadores acostumados a divulgar números grandiosos.

A encrenca é filha da esquizofrenia praticada pelo próprio jornal, que, na maioria das vezes, publica as estimativas da PM e só em alguns eventos investe em medição própria. O resultado é um samba do crioulo doido, que só ajuda a levar água ao moinho da desconfiança.

Ironicamente, o mesmo jornal que investiu tempo e dinheiro em busca de parâmetros mais próximos da realidade continua publicando notícias como a do último 2 de janeiro: “Réveillon na Paulista com 2 milhões é tranquilo”. O título não diz, mas o cálculo é da PM. Faz sentido divulgar acriticamente o dado, sem ressalvar que, de acordo com o Datafolha, ali não cabe essa gente toda? (No lado da PM, 2 milhões numa festa que não ocupa toda a via e 1 milhão no protesto?)

Pode haver erro nos cálculos? Certamente, e dos dois lados. Cada metodologia tem limitações que afetam o resultado, segundo afirmam dois especialistas ouvidos por esta coluna, Moacyr Duarte, pesquisador sênior da Coppe, instituto de pesquisa de engenharia da UFRJ, e Marcelo Zuffo, professor titular da Escola Politécnica da USP. Para corrigi-las usam-se ferramentas que tentam compensar as distorções.

Na tarde de sexta (20), a Secretaria da Segurança Pública concordou em passar à ombudsman algumas das fotos feitas pelo helicóptero Águia, que haviam sido negadas ao jornal. São poucas e concentradas nos pontos mais lotados, locais que a polícia deve privilegiar porque são os mais sujeitos a problemas. As imagens e a explicação das duas metodologias foram enviadas aos professores para avaliação.

Zuffo e Duarte fizeram ótimas ponderações, mas elas são extensas para este espaço e não deu tempo de ouvir o Datafolha e a PM. Isso vai ser feito durante a semana, e o resultado será postado na página digital da ombudsman. Talvez a discussão colabore para afiar os instrumentos. Essa discrepância brutal torna as estimativas inúteis e só alimenta a desinformação.

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Vera Guimarães Martinsé ombudsman daFolha de S. Paulo