Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Oximoros e insultos em cartazes da manifestação de 15/3

Um dos conceitos mais interessantes da linguística é o oximoro, grosso modo, poder-se-ia dizer que é a contradição em si. Aplicado aos protestos realizados por oposicionistas, no dia 15 de março, leva à inevitável leitura de que se os manifestantes tencionavam dar um verniz democrático ao seu movimento, esse não resistiu à existência das muitas faixas que clamavam pela volta da ditadura, disfarçada eufemicamente nos dizeres “intervenção militar” e “regime militar”. Como todos sabem, seria o retorno do velho e terrível governo autoritário, que vigeu no Brasil durante longuíssimos 21 anos.

Desde a promulgação da Constituição Federal, em outubro de 1988, o direito de manifestação é garantido por lei. Todos têm liberdade para expressar seus desejos e anseios publicamente, evidentemente, não contrariando as leis vigentes no Estado Democrático de Direito. Por conseguinte, vários dos lemas vistos (e amplamente registrados pelos meios de comunicação em massa, brasileiros e estrangeiros, assim como por indivíduos que participaram do movimento ou simplesmente passavam por perto no momento em que ocorriam as passeatas) são, por óbvio, legítimos à luz da legislação brasileira. Ressalte-se o principal, que pede o (quase inatingível) fim da corrupção na política.

Por outro lado, na vida cotidiana, muitos tipos de desvios legal e/ou eticamente condenáveis são tolerados, ao menos quando cometidos por um dos “nossos”, inclusive por gente que impunha tal bandeira nas passeatas em nome da deposição da presidenta da República – cuja vitória lícita e democrática ainda está muito presente na memória coletiva. Tudo isso de acordo com a elasticidade moral (que, a rigor e, com efeito, resulta imoral) do chamado “jeitinho brasileiro”, aceito por muitos dependendo dos propósitos a que serve e da relação que se tem com quem recorre a ele. Fenômeno que se pode chamar de “indignação seletiva” com a corrupção, condenada moralmente ou apontada como crime apenas quando cometida por políticos de partidos de matizes ideológicos distintos dos nossos.

Proteção legal

Até aí a problemática tem cunho sociocultural e merece abordagens mais amplas no âmbito das pesquisas em ciências humanas e sociais. Entretanto, reduzindo-se aqui o objeto de análise à manifestação de 15 de março, deve-se enfatizar que muitos cartazes e desenhos feriam a lei e deveriam ser coibidos em nome dela, como, o que demandava “intervenção militar”, inclusive em inglês, francês e até alemão. Curiosamente, parece não ter havido pedido de “volta ao governo militar” feito em espanhol, talvez devido ao fato de este ser o idioma predominante em quase toda a nossa vizinhança e também à semelhança desses países conosco nos aspectos sociais, políticos e econômicos; ou ainda porque o que interessa aos extratos mais ricos da população, maioria entre as centenas de milhares de participantes dos protestos de 15 de março são o modus vivendi europeu ocidental e, principalmente, estadunidense.

As faixas e os cartazes com grosserias e ofensas à presidenta da República (alguns com erros pueris de grafia, e outros verificados inclusive nas frases em línguas estrangeiras escritas em alguns cartazes, quiçá para atrair a atenção das mentes colonialistas de olho no imenso país recentemente independentizado) e ao seu antecessor são, obviamente, condenáveis não somente por sua impropriedade e desnecessidade no embate ideológico. Mas, sobremodo, por seu papel antipedagógico, pois incutem nas novas gerações o ódio a um governo democraticamente eleito, elevando o xingamento e a apologia à violência à falsa condição de “argumentos” na disputa política.

Relembre-se ainda a hedionda imagem dos dois mandatários petistas como bonecos enforcados em um viaduto na cidade de São Paulo. Será mesmo que alguém considera isso edificante na construção da consciência política do povo brasileiro? Trata-se de um ato defensável à luz da ainda jovem democracia brasileira? Improvável que alguém argumente a favor de tais expedientes em que se usam signos verbais e imagéticos para disseminar a violência.

Contudo, lamentavelmente, muitos não se importaram em marchar ao lado dos que cultuavam a agressão (por enquanto, ainda simbólica) a quem pensa diferente e prega valores como justiça social. E, pior ainda, boa parte da multidão ali reunida pode, talvez irrefletidamente, considerar haver validez nessa atitude apologética ao ódio e à intolerância, às quais quiçá aderisse em seu intento irracional de derrubar um governo reeleito democraticamente porquanto seja trabalhista e priorize aqueles que mais precisam.

Destarte, o caráter de legitimidade da manifestação do dia 15 de março (organizada por oposicionistas, conforme comprovado em levantamento feito durante a manifestação em São Paulo, palco em que se reuniu a maior quantidade de pessoas vociferando contra o governo atual) ficou comprometido. E é inevitável que se infira que para muitos dos manifestantes que lá estavam vale tudo – até demandar flagrantes ilegalidades, oximoricamente em nome de uma “democracia” enviesada – para que os derrotados nas urnas há apenas quatro meses e meio assumam o poder.

Assim, mantém-se robusta a impressão de que muitos na oposição querem apear o PT do poder de qualquer maneira, até mesmo recorrendo e/ou tolerando ilicitudes irresponsáveis e inconsequentes como defender a volta ao regime autoritário, em que (ode à obviedade) sua fúria e seu ódio, destilados em um movimento político que poderia ter legitimidade, seriam absolutamente reprimidos na eventual ditadura que cogitam como alternativa para comandar o país. Por fim, é fundamental que se observem outros possíveis movimentos oposicionistas sempre sob a égide da Constituição, ou seja, à luz da proteção legal e societária do Estado Democrático de Direito em vigor no Brasil há menos de três décadas, e que, ressalte-se, rege todos que vivem neste país.

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Luciano Zarur é jornalista, professor universitário e mestre em filosofia