Em 2007, o jornalista inglês Dom Phillips, então com 42 anos, chegou ao Brasil com pouco mais do que as lembranças de infância sobre a seleção brasileira de futebol e algumas viagens de turismo ao país. Como correspondente do “Washington Post”, o principal diário da capital americana e uma das mais importantes publicações dos Estados Unidos, acompanhou o processo de crescimento econômico e de inclusão social, mas, agora, se preocupa com a polarização que domina a cena política e chega às avenidas de muitas cidades.
“Ficou muito claro nas manifestações que a esquerda perdeu a capacidade de ouvir o mercado e a direita perdeu a capacidade de perceber os avanços sociais. O quadro parece pior porque o Brasil já é quatro ou cinco países em um só”, afirma Phillips. “O Brasil é muito complexo e imprevisível.”
Phillips é um dos muitos correspondentes internacionais no país que procuram compreender essa complexidade, com mudanças rápidas, que ganha as páginas dos jornais e revistas mundo afora. Os principais fatos são praticamente os mesmos, mas os enfoques divergem um pouco. Na segundafeira, o “Financial Times” previu que a situação do país ainda vai piorar antes de melhorar e pode registrar o pior desempenho desde 1931. Um dia depois, o espanhol “El País” noticiava que “com a pior aprovação de um presidente da República desde 1999”, Dilma Rousseff se preparava para buscar apoio no Nordeste. O quase bicentenário “The Guardian”, da Inglaterra, que publicou as primeiras reportagens baseadas nos documentos secretos obtidos por Edward Snowden, referiuse aos protestos de 15 de março como “manifestações da direita”. A “Forbes”, revista americana de economia e negócios, chamou os atos de “festival do ódio”. O “New York Times” afirmou que o impeachment da presidente Dilma Rousseff ainda parece uma possibilidade distante e destacou o que chamou de atitude “pouco confrontadora” da presidente da República diante dos protestos.
O escândalo da Petrobras e a polarização da disputa presidencial abriram novas frentes para a exposição do Brasil
Assim como as manchetes, as análises dos correspondentes também têm perspectivas diferentes. “A crise brasileira não é diversa da de outros países europeus, que ainda tentam retomar o crescimento econômico, ou de nações latinoamericanas que enfrentam problemas parecidos de corrupção, nem sempre com o mesmo grau de exposição que o assunto tem na mídia nacional. O imprevisível é o que vai acontecer com o governo Dilma”, afirma Eleonora Gosman, correspondente de “Clarin”, o maior jornal da Argentina. “Se a realidade de outros Juan Arias, de “El País”: liderança diferencia e agrava a situação do Brasil países é igual à brasileira, por causa da corrupção e das dificuldades políticas e econômicas, o que diferencia e agrava a situação do Brasil é que o país é um dos líderes do continente”, diz Juan Arias, do “El País”, o jornal de maior tiragem da Espanha. “A boa notícia é que o mundo está mais interessando nas coisas positivas do que negativas do Brasil”, afirma Gareth Chetwynd, presidente da Associação dos Correspondentes da Imprensa Estrangeira.
Duas capas de “The Economist”, a publicação inglesa cujos textos repercutem em todo o mundo, são emblemáticas da mudança de tom das correspondências que os jornalistas estrangeiros enviam sobre o país. Em 2009, o Cristo Redentor, cartãopostal do Rio, foi reproduzido como se estivesse decolando, para retratar um país em ascensão tão fulgurante que parecia imune à crise internacional que se abatera sobre a Europa e os Estados Unidos. Três anos depois, o Cristo Redentor, de pontacabeça, revelava um país com sérios problemas na economia.
Neste ano, uma passista de escola de samba do Carnaval carioca com os pés na lama estampou a nova percepção da publicação, na edição para as Américas, sobre a realidade brasileira, agora com os escândalos de corrupção na Petrobras e as dificuldades políticas e econômicas do segundo mandato de Dilma Rousseff. “Se o Brasil está mais conectado com as ideias da revista, a imagem melhora. Se aumenta a influência do Estado sobre a economia, elevase o tom de crítica. Os protestos de março puseram o Brasil de volta sob os holofotes do mundo”, diz a cientista política Camila Maria Risso Sales, que, depois de três anos de estudos focados nas edições de “The Economist”, preparase para apresentar sua tese de doutorado sobre a imagem internacional do Brasil na Universidade Federal de São Carlos.
O interesse do mundo pelo Brasil cresceu no rastro da ascensão econômica do país. Até então, a curiosidade ia pouco além do futebol, Pelé, o samba, o Carnaval, a favela, a bossa nova e a Garota de Ipanema. Os primeiros jornalistas europeus e americanos a chegarem ao país depois da redemocratização relatam dificuldades para publicar qualquer reportagem que não fosse sobre o lançamento de um novo disco de Chico Buarque ou matérias sobre a natureza exuberante para cadernos de turismo. Com a chegada das multinacionais atraídas pelo processo de privatização promovido pelo governo Fernando Henrique Cardoso, ampliouse claramente o interesse da mídia estrangeira por informações econômicas.
O panorama mudaria de novo, e radicalmente, com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto. Alguns correspondentes passaram a enviar até três matérias por dia. A partir das manifestações de rua, em junho de 2013, começaram a ganhar mais espaço também as críticas à condução da política econômica do governo da presidente Dilma Rousseff.
Com a Copa do Mundo, no ano passado, o país se manteve no centro das atenções, mas as notícias negativas disputavam espaço com informações sobre a competição e reportagens que procuravam mostrar um pouco mais do país aos leitores das publicações internacionais.
Pesquisa da consultoria GlobeScan/Pipa, realizada do fim de 2013 ao começo de 2014 entre quase 25 mil entrevistados de 21 países, mostrava que, no início da crise que levou multidões às ruas às vésperas da Copa, 45% viam a influência do Brasil como positiva no mundo. Os Estados Unidos vinham abaixo, com 42%. O país com a melhor influência era a Alemanha, com 60%. A proporção dos que enxergavam a influência brasileira como negativa ficava em 26%.
O escândalo da Petrobras e a polarização da disputa presidencial no ano passado abriram novas frentes para a exposição do Brasil no noticiário internacional. De lá para cá, os cenários político e econômico voltaram a cruzar-se em perspectivas que não sugerem enfoques alvissareiros para a observação dos correspondentes internacionais.
O último levantamento do Banco Central sobre o volume de investimentos estrangeiros diretos (IED), por exemplo, registrou redução de 30,2% em fevereiro na comparação com o mês anterior. A expectativa do mercado financeiro é de queda na captação de investimentos no exterior neste ano. “A perspectiva ainda pode se tornar otimista porque volume não é tudo. A venda de ativos importantes da Petrobras, por exemplo, pode atrair muita gente. A qualidade do investidor pode compensar a queda de investimentos, mas em números o interesse caiu mais da metade com a crise. É como se num jogo de tabuleiro você tivesse que andar duas casas para trás”, diz Augusto Sales, sócio da área de estratégia da KPMG Consultoria.
Os fatos noticiados e analisados são praticamente os mesmos, mas os enfoques variam e temse um retrato múltiplo do país
“O preço em baixa do petróleo no mercado internacional afeta mais os investimentos no setor do que a corrupção da Petrobras. Se o preço voltar ao normal, os investimentos podem retomar”, afirma o inglês Gareth Chetwynd, que chegou ao Brasil em 1998 fascinado pelo país, hoje é casado com uma brasileira, tem dois filhos brasileiros e cobre o setor de óleo e gás para o jornal “Upstream”, da Noruega.
Cada linha publicada sobre o Brasil no exterior é acompanhada desde 2007 pela agência de comunicação CDN, ganhadora de uma licitação promovida pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom). O contrato prevê desde o estudo, planejamento, concepção, coordenação e execução das estratégias de comunicação para promoção do Brasil, com ações de longo prazo e continuidade de esforços no exterior, até o planejamento de teleconferências e outras modalidades de eventos com transmissão via satélite e internet com a presidente ou com ministros. O trabalho inclui um relatório sobre o noticiário e análises sobre a imagem institucional do Brasil na mídia mundial. A despesa com o contrato resultante da concorrência foi determinada pelo edital de licitação em R$ 15 milhões para os primeiros 12 meses, incluído o pagamento de jornalistas no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia. Análises regulares realizadas pela Secom e pela própria Presidência também avaliam o andamento da reputação do Brasil no exterior. O Ministério das Relações Exteriores dá sua contribuição por meio das representações diplomáticas.
O retrato do Brasil feito lá fora é obra de profissionais que, além de razões apenas profissionais, também vieram atraídos pela exuberância da natureza e pelo caráter afetivo dos brasileiros ou que acabaram se tornando apaixonados declarados pelo que encontraram aqui. “Em cinco anos, vi, por exemplo, o orgulho negro ser mais assumido pelos brasileiros”, diz a francesa Marie Naudascher, que desembarcou em 2010 quase sem nenhuma informação sobre o país, incumbida de cobrir a Copa do Mundo para a RTL, Rádio Vaticano, Rádio da Suíça e Rádio Deutschewelle, da Alemanha. Acabou se casando com um paulista e depois dos protestos de 2013 escreveu o livro “Les Brésiliens”, em que tenta revelar algumas características da população.
“Penso que uma das qualidades mais importantes do brasileiro é a capacidade de negociar, de evitar o confronto. Espero que esse traço não se perca por causa da situação política”, afirma a portenha Eleonora, que chegou ao Brasil trazendo na bagagem cultural a leitura dos livros de Monteiro Lobato e há 20 anos é correspondente de “Clarin”.
“No Brasil, apesar de sua política fisiológica e patrimonialista, com seus atrasos de modernidade, ainda se sorri mais do que na Europa e isso não é pouco”, afirma o espanhol Arias, que durante 18 anos foi correspondente do “El Pais” na Itália e no Vaticano, tornouse o primeiro correspondente do jornal espanhol no Brasil, em 1999, casou com uma escritora brasileira e hoje mora no litoral do Estado do Rio.
A correspondência dos jornalistas estrangeiros tem circulado livremente, sem percalços, apesar da mudança de tom da cobertura. Nem sempre foi assim. Em 2009, o governo Lula se desgastou com a tentativa de expulsar do país o correspondente Larry Rohter, do “New York Times”, que publicara artigo ironizando supostos hábitos etílicos do presidente brasileiro. O jornalista foi oficialmente acusado de “denegrir a imagem do Brasil no exterior”, nos termos do artigo 26 da lei 6.815, de 18 de agosto de 1980, mas um habeas corpus o manteve no país.
De volta aos Estados Unidos, Rohter manteve o tom crítico ao abordar as iniciativas de Dilma em resposta aos protestos de rua de 2013. No livro “Brasil em Alta”, lançado em 2010, ele tenta contextualizar as mudanças que transformaram um país arruinado pela hiperinflação e pela ditadura militar em uma das maiores economias do mundo, capaz de resistir à crise de 2008.
“Todo os países, inclusive os Estados Unidos, vendem uma imagem de si mesmos que não corresponde plenamente à realidade, porque a autoimagem é sempre diferente da visão do forasteiro”, escreveu Rohter.
“A imprensa internacional continua reafirmando os piores estereótipos brasileiros”, afirma Antonio Brasil, pesquisador do Grupo Interinstitucional de Pesquisas em Telejornalismo (Giptele).
“O Brasil sempre terá uma imagem clichê de país tropical, com sol o ano inteiro. Vende bem, mas ir além é uma luta de todos os dias”, diz Marie Naudascher.
“O Brasil passa por um processo de exposição que pode ser importante na depuração do cenário e para levar o país a um novo ciclo”, afirma Chetwynd. “Antes do governo Lula, a imagem que se tinha do Brasil era pouco mais que estereótipos. Hoje, é a de um gigante ferido”, diz Arias.
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Paulo Vasconcellos, para o Valor Econômico