A China é o país com o maior número de usuários de internet do mundo, com mais de 600 milhões de pessoas conectadas, mas a rede a que os chineses têm acesso é um tanto incompleta. Dos mil maiores sites do mundo, 136 são bloqueados. Pelo Google, 14.351 termos não podem ser encontrados. Twitter e Facebook não conseguem decolar, pois estão fora do ar, e a censura atinge até mesmo o Weibo, ferramenta local de microblogging, que tem 417 palavras proibidas. Para burlar os censores, um grupo de ativistas criou uma técnica que usa o armazenamento em nuvem para passar por cima do chamado “Great Firewall of China”. O sucesso da ferramenta fez com que a organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF) replicasse a experiência em 11 países.
– Nós estamos operando o programa “Liberdade Colateral”, que usa a infraestrutura global de internet para entregar conteúdos bloqueados para a China. A única forma que as autoridades teriam para bloquear esse conteúdo seria derrubando o acesso dos chineses a metade da internet. E nós acreditamos que as autoridades não farão isso – disse ao GLOBO o ativista que assina com o pseudônimo Charlie Smith, cofundador da ONG Great Fire, em entrevista por e-mail.
Relatório elaborado pela ONG americana Freedom House coloca a China na antepenúltima posição no ranking de 89 países em termos de liberdade na internet, à frente apenas da Síria e do Irã. As leis locais dizem garantir a liberdade na rede, mas todas as organizações e indivíduos que atuem dentro do território chinês são proibidos de “produzir, duplicar, anunciar ou disseminar” conteúdos que infrinjam uma série de regras pouco objetivas, como “danificar a honra e os interesses do Estado”, “subverter o poder do Estado e pôr em risco a unificação nacional” ou “propagar ideias heréticas ou supersticiosas”.
Sites com pornografia, jogos de azar e discursos de ódio também são proibidos, mas o que preocupa os ativistas é a circulação de informações. Páginas de agências de notícias e de jornais, como Reuters, “New York Times” e “Wall Street Journal”, são constantemente bloqueadas. Outras, como a versão em mandarim da BBC e do “NYT” e a alemã Deutsche Welle, não saem da lista negra do firewall chinês (recurso que restringe o acesso a dados).
Smith explica que a técnica usa “redes de fornecimento de conteúdo” (CDN, na sigla em inglês), serviço em nuvem oferecido por gigantes como Amazon e Microsoft, para burlar os filtros do governo. As CDNs são imensas redes com servidores espalhados pela internet. Elas são usadas para acelerar o carregamento de sites, porque cópias dos dados ficam armazenadas em diferentes pontos do mundo.
No caso, os ativistas contratam o serviço para hospedar versões espelhadas do site bloqueado. O internauta na China, por trás do firewall, usa um software especial para acessar essa versão espelhada, que, por ser criptografada, fica fora do alcance dos censores. Segundo Smith, caso as autoridades bloqueiem essa via de acesso, todas as páginas abastecidas pelas CDNs seriam afetadas no país, e isso representa praticamente metade da internet.
Técnica é replicada em 11 países
A técnica está sendo utilizada para desbloquear dez sites na China, entre eles as versões em mandarim da BBC e do “New York Times” e a Deutsche-Welle. A experiência foi replicada pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras para liberar o acesso de nove páginas em 11 países: Cazaquistão, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Turquemenistão, Uzbequistão, Bahrein, Irã, Vietnã, Cuba, Rússia e a própria China.
Grégoire Pouget, da RSF, alerta que a censura na internet é crescente. Desde 2008, a ONG publica anualmente o relatório “Inimigos da Internet”, que lista países e instituições que cerceiam a liberdade de expressão na rede.
– A lista de países censurando ou vigiando a rede é maior a cada ano – afirmou Pouget. – No mês passado, na França, cinco sites foram incluídos em uma “lista negra” porque autoridades decidiram que eles estavam publicando artigos com apologia ao terrorismo.
Luís Felipe de Moraes, professor da Coppe/UFRJ, destaca que o controle exercido pelo governo chinês na internet não é apenas político, mas envolve questões econômicas e de segurança contra agências de espionagem. O firewall, explica ele, filtra pacotes de dados pelo conteúdo e impede o acesso a determinados endereços web. Como ele está sendo burlado, é possível que autoridades locais estejam estudando uma forma de contra-atacar.
E parece que é isso o que está acontecendo. Os sites espelhados são acessados, em média, por dois milhões de internautas por mês. No dia 18 de março, eles receberam um ataque distribuído de negação de serviço (DDoS, que usa redes de computadores “zumbis” para acessar um determinado endereço de forma simultânea), que fez o número de requisições de acesso aumentarem 2.500 vezes, o que congestionou o tráfego e fez o custo de hospedagem do serviço disparar. Na semana seguinte, a página da ONG no Github sofreu ataque semelhante.
– Esse ataque hacker mostra que nós estamos no caminho correto – diz Smith, que prefere não acusar o governo chinês pela ação.
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Sérgio Matsuura, do Globo