Este colunista passou boa parte da vida recomendando a estudantes de Jornalismo que lessem muito, lessem de tudo; e que, especialmente, lessem notícias, todas as notícias que pudessem.
A primeira recomendação continua valendo: ler bons livros, maus livros, bulas de remédio, histórias em quadrinhos – que ensinam a escrever o necessário com frases curtas e precisas. A segunda continua a ser feita, mas com muito menos convicção: o texto dos jornais anda péssimo, concordância e regência foram praticamente abolidas e, em todos os veículos de informação escrita, a precisão das notícias virou artigo de luxo, raramente localizável. Lendo vários noticiários, de vários veículos, e com cuidado (nada de acreditar nos títulos, por exemplo), ainda é possível informar-se com alguma confiança. Mas nunca se pode ter a certeza de que os fatos ocorreram realmente como foram descritos.
O grande Renato Ribeiro Pompeu, intelectual de bom nível, redator de primeiríssima qualidade, costumava dizer que bastava ler na imprensa o relato de algum fato de que fomos testemunhas para provar que era tudo chutado. Octavio Frias de Oliveira, um mestre do jornalismo, embora negasse ser jornalista, dizia que, quando líamos no jornal informações erradas a respeito de algo que conhecíamos, colocávamos em dúvida todas as demais informações do jornal. Renato Pompeu, sempre ele, reclamou tanto dos absurdos do material que recebia de alguns repórteres que levou Mino Carta a escrever alguns ótimos versos sobre o caso. De memória, a quadra de abertura:
“Renato Pompeu, dos Ribeiros/ senhor do texto conciso/ escreve ao deus dos pauteiros/ e pede um repórter preciso”.
Naquela época, sabia-se que havia erros de informação em quase todas as editorias de um veículo de comunicação, menos em Esporte (já que os repórteres eram altamente especializados no tema) e em Religião (já que noções ao menos de catolicismo todos os repórteres tinham). De lá para cá, enforcaram Jesus Cristo e chamaram o Corinthians de “adversário vermelho” do Internacional de Porto Alegre (sendo que o uniforme vermelho é o do Inter, não o do Corinthians). E escreveram que a melhor volta de um treino de classificação foi a de Nico Rosberg, mas que o primeiro no grid seria Lewis Hamilton.
Já para erros de Português não há limites – o que acaba levando ao descrédito aquela ideia de que quem lê habitualmente escreve com correção, de forma automática. Uma informação sobre determinado automóvel que teve problemas, e que se dizia pertencer à repórter Glória Maria, garantiu que o carro “não a pertence”. No novo modelo de carro apresentado numa exposição, “o estilo de traços fluidos foram abandonados”. “O troféu o foi entregue”. “Não lhe recebi”. “Lady Gaga foi apresentado (…)”
Mas vamos a um exemplo prático de como andam as coisas. Um leitor fiel, Alexandru Solomon, ficou perplexo ao ler o noticiário abaixo.
A notícia como ela não é
Primeira página de um grande jornal impresso, de circulação nacional:
** “Investigadores da Polícia Federal atribuem ao atual modelo do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) a existência de suposta fraude (…)”.
Página interna, complementação da notícia:
** “Investigadores da Operação Zelotes, que desbaratou esquema de corrupção para apagar ou reduzir multas de grandes contribuintes (…)”.
Suposta fraude, como diz a primeira página, ou um confirmado esquema de corrupção, como diz a página interna? Mas vamos em frente:
Título do infográfico: “19 bilhões”.
No texto: “Até agora a PF encontrou irregularidades em processos que somam R$ 6 bi (…)”
Dezenove ou seis? Um é pouco mais que o triplo do outro. Adivinhemos que a verdade esteja no meio. Adivinhemos? Sim: é a saída que o noticiário nos deixa.
O local do incêndio
Durante um bom número de horas, o grande incêndio do porto de Santos foi transferido, nos noticiários de TV, para Cubatão. É perto, mas uma cidade é uma cidade, outra cidade é outra cidade. E, já que o incêndio tinha sido transposto para Cubatão, tome matérias sobre problemas de décadas atrás sobre poluição, que Cubatão já superou, ou sobre o incêndio de Vila Socó, que destruiu 1.200 barracos e matou centenas de pessoas. Demorou para cair a ficha: o incêndio foi no distrito industrial da Alemoa, em Santos.
Do noticiário, de prático, dava para inferir que o incêndio atrapalhava o trânsito na estrada e retardava as viagens para as praias bem no início do feriadão.
É mentira, e daí?
Um longo artigo de um cavalheiro que se intitula antropólogo, num grande jornal, defende o sacrifício de animais durante as cerimônias religiosas do Batuque, uma religião nascida no Brasil (com maior presença no Rio Grande do Sul) e origem africana. Há os costumeiros protestos contra os sacrifícios e a habitual defesa das tradições vindas da África. Até aí, sem problema. Mas o tal antropólogo diz, e o jornal publica, que o judaísmo também sacrifica animais nas sinagogas, e contra isso não há protestos para não melindrar “a poderosa comunidade judaica”. Só que não há, e nunca houve, sacrifícios em sinagogas. Houve sacrifícios no Templo de Jerusalém, mas cessaram no ano 70, com a destruição pelo Exército romano do templo e da cidade; e nunca mais foram retomados. Seria simples descobrir que o tal sacrifício não existe visitando qualquer sinagoga, perguntando a alguém, mas isso talvez dê muito trabalho. E o jornal, como o papel, aceita acriticamente tudo o que lhe imprimem, por mais imbecil que seja.
Cretinismo partidário
Os meios de comunicação serviram principalmente como correias de transmissão da loucura partidária que dominou parte do país. Malucos alucinados festejaram, em redes sociais, a morte do filho do governador Alckmin – uma das alegações dos canalhas radicalizados é que não lamentavam “a morte de reaças”. Mas esse tipo de calhordice ficou restrito às redes sociais. Pior foi a atitude de calhordas disfarçados de políticos que exigiam que todos os que lamentassem a morte de Thomaz Alckmin lamentassem ao mesmo tempo a morte de um garoto de dez anos no Areal, no Complexo do Alemão, Rio, atingido por uma bala disparada, ao que tudo indica, pela polícia. Acontece que:
- 1. Cada pessoa que morre é uma perda para todos.
- 2. Mas cada um lamenta quem quiser. Todos os dias morrem no Brasil, vítimas de homicídios, cerca de 150 pessoas. É normal que as pessoas que conhecemos, de uma maneira ou de outra, ou que são nossas parentes, ou amigos, sejam lamentadas de forma especial.
- 3. E a imprensa deu espaço a calhordas disfarçados de políticos para perguntar qual das mortes era a mais lamentável. Depende: cada uma das famílias atingidas tem sua própria opinião. O círculo de amigos de cada vítima e de sua família também tem opinião formada. E morte não é torneio, para saber quem vale mais.
Os idiotas da não objetividade
Um grupo de Facebook que se intitula “Partido Anti-PT” publicou uma charge na qual três pessoas, assim que ouvem a TV anunciar “um pronunciamento da presidente da República”, baixam a roupa, se viram de costas para a TV e ficam de quatro esperando o noticiário (seu cachorro, ao lado do sofá, toma a mesma posição).
Caiu o mundo: muitas críticas e um internauta mais agressivo chamou o chargista de “escumalha, gentalha racista e sem escrúpulos” (por que racista? Talvez porque xingar os adversários de racistas esteja no manual de conduta).
E de que se tratava? De uma charge publicada nos tempos de Fernando Henrique, para criticá-lo, com uma única diferença: em vez de pronunciamento “da presidente”, era “do presidente”. O resto, igualzinho. E quem agora acusou o chargista de escumalha racista e chamou-o de gentalha, na época ficou quietinho.
A regulação da mídia
Tudo bem, a imprensa ainda mais controlada do que já é hoje pode reclamar da ausência de certas personalidades públicas no concurso de Miss Universo, pode exigir que os especialistas em receber boladas no Petrolão substituam o goleiro da Seleção, pode dizer que não há filas na Venezuela e que a Coreia do Norte é um exemplo de democracia, sob o comando do Querido Líder (seu título oficial) Kim Jong-un, filho e neto de presidentes de quem herdou o regime democrático (o avô, Kim il-Sung, era o Grande Líder, e seu pai, Kim Jong-il, era o Estimado Líder).
Porque a imprensa, caros leitores, precisa fazer muita força para não ser controlada pelo governo federal. As verbas oficiais de publicidade federal alcançam R$ 1,9 bilhão por ano – sendo R$ 200 milhões destinados à Secretaria de Comunicação, R$ 500 milhões dos ministérios, R$ 1,2 bilhão das empresas estatais. Com esse volume de dinheiro à disposição, só mesmo veículos absolutamente impermeáveis a pressões conseguem resistir.
E esse dinheiro todo está livre de contingenciamentos, cortes, economias. Nesse ninguém mexe. E, entre propaganda e atividades essenciais de governo, adivinhe o caro colega qual o preferido das autoridades.
Boa notícia
Não podemos esquecer que os quase R$ 2 bilhões acima citados se referem a verbas federais. Há ainda as estaduais (com suas empresas que anunciam fartamente – no ano passado, por exemplo, a Sabesp, que trabalha com saneamento no estado de São Paulo, fazia publicidade em rede nacional de TV) – e as municipais. Os serviços que aguardem o que sobrar de verbas. Aqui está um caso exemplar:
A Vara da Infância e Juventude de Foz do Iguaçu (PR), bloqueou as verbas de publicidade do município até que sejam resolvidos os problemas dos serviços de pediatria do Hospital Municipal Padre Germano Lauck. Um dos problemas é inacreditável num serviço de pediatria: não há equipe médica especializada para atendimento na UTI pediátrica.
O problema agora deve ser resolvido. A prefeitura fará o que for possível, até mesmo trabalhar direito, para restabelecer logo suas verbas de propaganda.
A coluna do Castello
Foram dois anos de pesquisas, oito mil colunas para ler, o desafio de colocar num livro um dos maiores jornalistas brasileiros, Carlos Castello Branco, por muito tempo o principal colunista político do país. Castelinho escrevia no Jornal do Brasil dirigido por Alberto Dines, ao lado de monstros sagrados do jornalismo, como Fernando Gabeira, Luiz Paulo Horta, Murillo Felisberto, Luiz Orlando Carneiro, o grande Walter Fontoura, Wilson Figueiredo, Carlos Lemos, Nilo Dante, Carlinhos de Oliveira, Bárbara Heliodora – ali, quem não fosse excelente não tinha lugar no plantel. E Castelinho era titular absoluto.
Carlos Marchi, ele também um jornalista de excelentes credenciais, decidiu enfrentar o desafio. E seu livro já está nas livrarias. Para quem gosta de Jornalismo, para quem gosta de Política, para quem gosta de História, um prazer. Para quem gosta do Brasil, essencial.
Em pessoa, Lapouge
Um brasileiro que nasceu na França de família francesa, criou-se na França, vive na França. Mas poucos são tão brasileiros quanto ele – até no português fluente. Gilles Lapouge lança na terça-feira (7/4), em São Paulo, o Dicionário dos Apaixonados pelo Brasil, no Teatro Aliança Francesa, às 17h.
Vale a pena: Lapouge veio ao Brasil em 1951, aqui viveu dois anos. Desde então é correspondente de O Estado de S.Paulo em Paris. Em seu livro, fala de todas as vezes em que esteve no Brasil e de todas as partes do Brasil que conheceu – uma preciosidade.
Reserve a data
Este lançamento é para a terça-feira, dia 14/4: no Salão Branco do Supremo Tribunal Federal, Brasília, a partir das 18h30, com a presença do presidente do Supremo, ministro Ricardo Lewandowski, sai o Anuário da Justiça Brasil 2015, editado pelo Consultor Jurídico, com a colaboração da Fundação Armando Álvares Penteado. Para quem trabalha no meio, imprescindível.
Como…
De um grande portal noticioso:
** “De acordo com Daphne Booth, após bater nas antenas, o avião arremetou e, depois, deslizou cerca de 300 metros na pista.”
Arremetou, do verbo “arremetar”. Como diria Pelé, entendje?
…é…
De outro grande portal noticioso:
** “É possível entardecer os efeitos da gravidade com atitudes simples”.
A matéria se refere a maneiras de retardar a perda de firmeza dos seios. E por que “entardecer” em vez de “retardar”, “adiar”, “postergar”? Talvez porque quem redigiu o título tenha algum tipo de entardecimento desenvolvimentacional conhecitivo. Ou não.
…mesmo?
Maitê Proença, botafoguense roxa, promete ficar totalmente nua (exceto por uma coleira escrita Botafogo) se seu time subir de divisão. Como informa um grande jornal impresso, de circulação nacional, Maitê já “pousou” duas vezes para revistas masculinas.
As revistas com Maitê sempre bateram recordes de vendas. É por isso que ela não posa, pousa: é um avião!
Frases
>> Do ex-presidente Lula, na reunião do PT: “Estou indignado com a corrupção.”
>> Do jornalista Rolf Kuntz, comentando a frase de Frei Betto, de que o PT tende a se transformar num arremedo do PMDB: “Então o PT vai melhorar muito.”
>> Da escritora Letícia Dorneles: “Menos política. Mais Humanidade.”
>> Do jornalista Palmério Dória: “O coelhinho da Páscoa não está com nada no Congresso. Deputados e senadores demonstram clara preferência pela galinha dos ovos de ouro.”
>> Do jornalista Sandro Vaia: “‘O sucesso de Dilma é o meu sucesso’, afirma Lula a petistas. De fato.”
>> Do jornalista Gabriel Meissner: “Collor se dizia perseguido pela imprensa. FHC reclamava da imprensa. Lula sempre esbravejou contra a imprensa. Dilma reclama da imprensa. Essa tal de imprensa deve estar fazendo alguma coisa certa.”
E eu com isso?
Os puristas do jornalismo odeiam noticiário frufru. Os jornalistas que enxergam motivação política até no cardápio dos restaurantes (“Lula à dorê por quê?”) odeiam noticiário frufru. O leitor adora noticiário frufru. E até esse pessoal mais empedernido, pode ter certeza, se souber que ninguém está ouvindo vai mesmo é discutir o namoro do galã da novela com a estrela do BBB. Aliás, um dos astros do radicalismo político não saiu do BBB?
** “Filha de Joelma abandona carreira musical e vira corretora de imóveis”
** “Kristen Stewart arrasada com o noivado de Pattinson”
** “Thammy Miranda diz que faz a barba a cada dois dias”
** “Ryan Reynolds não quer que a filha seja atriz”
** “Casamento de Preta Gil terá surpresa a cada meia hora”
** “Kathy Perry exige look ‘joãozinho’”
** “Reynaldo Gianecchini janta com Christiane Alves no Rio”
** “Rihanna acorda Jimmy Kimmel com uma balada em seu quarto”
** “Giba curte praia em clima de romance no Rio”
** “Demi Lovato faz mais uma tatuagem”
** “Marco Luque participa de piquenique especial”
** “Ed Sheeran contrata guarda-costas”
** “Ronaldo assiste a jogo de basquete com a namorada, em Miami”
** “Cristiano Ronaldo curte noite de fado em Lisboa”
** “Glória Pires confessa ser uma mãe coruja”
** “Pharrell Williams circula por Nova York com a esposa”
O grande título
Boas manchetes. E retratam com perfeição como anda nosso jornalismo. Nas contradições, por exemplo:
Título da chamada:
** “Fernando Alonso ‘acordou’ em 1995 e pode não correr mais na Fórmula 1”
Título da matéria nas páginas internas:
** “‘Não acordei em 1995’, desmente Fernando Alonso após acidente na Fórmula 1”
Ou, na área esportiva. Título da chamada:
** “Lewis Hamilton faz 40ª pole da carreira no GP da Malásia”
Título da matéria interna:
** “Rosberg é o mais veloz na última sessão de treinos livres na Malásia”
Deve ter sentido, claro. É assim porque é assim, não é assim?
E o grande título:
** “Tetraplégico ao mergulhar em piscina supera medo e consegue ser pai”
Algum dia, alguma boa alma explicará direitinho essa história a este colunista.
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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação