A primeira entrevista que fiz com Manoel de Oliveira (Jornal do Brasil, 20/09/1991) foi há 25 anos, num hotel em Lisboa, onde o cineasta de 83 anos ria das coisas como um adolescente e alertava: “Sou um dinossauro que quer ser amado”. Não dava a menor indicação se estava falando sério ou fazendo graça: “Ainda não consegui mudar o cinema, talvez o cinema tenha me mudado”.
A última entrevista fiz no Porto, em seu apartamento (Época, 4/7/2011), e ele continuava uma criança engraçada e sem maldade, com talento para fazer rir enquanto falava quatro horas sem cansar. Tinha 102 anos, entrava e saía para trazer cafezinho e brincava: “Em casa falta-me espaço, na vida falta-me tempo”.
Entre uma e outra perdi a conta de quantas vezes entrevistei Manoel de Oliveira, sempre bem humorado. Quando foi homenageado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo ele colocou chapéu, cachecol, óculos escuros e pegou a bengala – mais para compor a figura de dândi – para se disfarçar e poder conversar sem interrupção. No final do programa Roda Viva, quando a produção da TV Cultura veio retirar a camisa que havia emprestado para a gravação, Manoel reagiu: “Essa não, não vou devolver; essa camisa é muito mais bonita do que a minha, levo comigo”. Na ponta que fez em O Céu de Lisboa, de Wim Wenders (1994), Manoel improvisou diante de um diretor espantado, fez uma figura chapliniana que segura um guarda-chuva e desce a ladeira dançando. Confessou: “Pretendia queimar uma rolha para fazer o bigode de Carlitos, não deixaram, poderia parecer Hitler”
Esse era Manoel, irônico e pândego, o cineasta português mais prestigiado no mundo (“Il maestro” para os italianos, “construtor de montanhas mágicas” para os alemães, “cavaleiro da utopia” para os franceses), Leões de Ouro em Veneza, Palma de Ouro em Cannes. Fazia troça da escritora e parceira Agustina Bessa-Luis, autora de As Terras do Risco que virou roteiro do seu O Convento (1995), que reclamou dos atores escolhidos. Ela queria Gérard Dépardieu, ele optou por John Malkovitch. Implicava até com o método de trabalho do amigo: “Manoel não faz outra coisa senão rabiscar roteiros, nunca rabisquei meus originais”. Manoel ria: “Agustina gosta de não gostar dos meus filmes e eu gosto que ela não goste”.
Uma sombra. “Meus colegas de Lisboa não me chamam para nada.” Manoel era motivo de intrigas em casa. Era chamado de “euclipto” por sugar todos os subsídios para suas produções e deixar o terreno seco para o resto dos diretores portugueses. “É inveja”, dizia, “eles não querem ser melhores que você, querem que você não seja melhor do que eles.” A má vontade da crítica portuguesa era um motivo de desapontamento. “Quando O Dia do Desespero (1992) foi exibido aqui um crítico disse que seus cães ladravam melhor do que os atores do filme… a inveja é o mal de Portugal.”
Educado em colégio jesuíta, embora neto de judeu, Manoel discordava de outro português ilustre, José Saramago, comunista e ateu. “Como ele pôde reabilitar Caim no seu romance? [Caim, 2012] Caim só tinha maldade… e ainda duvidou da bondade de Deus em O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). Ora, Deus enviou Cristo à terra porque era a última das religiões… ninguém pede para nascer e quando chega aqui e vê essa merda toda pergunta-se o que veio fazer neste mundo. Eu também, mas sei que só o instinto, a ambição de fazer, e fazer melhor, nos junta a Deus!”
“Tudo, menos as dívidas”
O cineasta mais longevo do mundo continuava a fazer um filme por ano, indo na contramão, “quanto mais a imagem e a música ganham espaço, mais me fixo na palavra, é o espectador quem vai acabar o filme”. George Meliès, Serguei Eisenstein, Carl Dryer, Luis Buñuel eram seus pares. “Quanto mais a câmera avança, mais eu recuo, já se vive tanta mentira no cinema que evito coisas espetaculares como a câmera aos pulos.” A câmera de Manoel quase não se mexe: “O movimento distrai”, dizia, “cada plano é um risco, fazer cinema é como cometer um crime”.
Entre os mais de 60 filmes numa carreira de 83 anos há diabruras como fazer do próprio diabo guardião da biblioteca de O Convento, e povoar o hospício com figuras bíblicas em A Divina Comédia (1991). Há agudas percepções do ser humano, como quando um ator experiente esqueceu o texto na hora da filmagem e agoniado, envergonhado, deixou Manoel e a equipe na mão indo embora. “Vou para casa”, disse. Manoel usou a frase como título de um de seus filmes maravilhosos, Vou para Casa(2001), com Michel Piccoli, uma inteiração de cinema e teatro. E há preciosidades como o travelling em torno de uma árvore gigantesca, que pode simbolizar a vida ou a África, e que funcionou também como um travelling da memória do passado de Portugal em Non ou a Vã Glória de Mandar (1990). O título é alusão a um de seus ídolos, padre Antonio Vieira, que disse “terrível palavra é o non, de trás para a frente, de frente para trás, é sempre non”. Vieira povoa outro de seus filmes, Palavra e Utopia (2000), interpretado por Lima Duarte. Ele adorava a naturalidade dos atores brasileiros. Ana Maria Magalhães atuou em O Estranho Caso de Angélica (2010).
Atores como Marcello Mastroianni (Viagem ao Princípio do Mundo, 1997), John Malkovitch, Irene Papas e Catherine Deneuve (Um Filme Falado, 2003), Claudia Cardinale e Jeanne Moreau (O Gebo e a Sombra, 2012) nunca se recusaram a fazer um ou mais filmes de Manoel, considerado fora de Portugal um dos maiores gênios de todos os tempos. Além dos portugueses Maria de Medeiros (A Divina Comédia), Luis Miguel Cintra e sua musa Leonor Silveira, constantes em quase toda sua obra.
Como fez com Fernando Pessoa e José Saramago, o Brasil prestigiou Manoel de Oliveira muito antes de Portugal reconhecer a grandeza do ex-agricultor, campeão de salto, artista de trapézio e corredor de automóvel com prêmios conquistados até no antigo Autódromo da Gávea. Morto aos 106 anos, o Museu Interativo de Cinema do distrito de Serralves, no Porto, que reúne lembranças de todos filmes da sua carreira, vai exibir A Visita, memórias e confissões, que só poderia ser exibido depois da sua morte. “O filme tem a última imagem da casa onde eu vivia e fui obrigado a perder, fala um bocado de mim e da minha família.” Foi filmado durante a Revolução dos Cravos, em 1974, e mostra a tomada de sua confecção de adereços e da própria casa, ambas hipotecadas para levantar dinheiro para uma malharia da família. “Levaram-me tudo, menos as dívidas.” O filme foi feito depois da sua prisão pela ditadura em 1963 – ele pagou caro pelos comentários feitos em um debate sobre o filme Atos da Primavera, rodado no mesmo ano.
Na capa
Nunca se fez de rogado, faltava um ator, lá entrava Manoel em cena, com disfarces produzidos na hora por ele mesmo. Do mudo ao falado, Manoel de Oliveira permanecerá um monumento da história do cinema e deve estar lastimando não ter concluído seus muitos projetos. Um dos mais acalentados, os contos que Machado de Assis escreveu quando ele tinha menos de 10 anos, “Missa do Galo”, “Ideias de um Canário” e “A Igreja do Diabo”. Como apostava na bruxaria machadiana, escolheu para título este último, A Igreja do Diabo, que queria fazer com Lima Duarte e Fernanda Montenegro. Não deu tempo. O que todo mundo duvidava, aconteceu. “Sei que terei de parar de filmar um dia. Só espero parar de viver primeiro.”
Em grande estilo, Manoel foi capa de principais cadernos de cultura e jornais de rádio e televisão brasileiros, assunto principal na imprensa internacional.
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Norma Couri é jornalista