Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O astro de uma nova geração de humoristas

Quando Marcelo Adnet começou um programa diário de quinze minutos, no canal MTV, ainda na primeira década dos anos 2000, ninguém imaginava que o humorista se tornaria, em pouco tempo, um dos maiores nomes da comédia brasileira. Assim que a emissora notou sua popularidade e tino inevitável para o humor, novas oportunidades surgiram e Adnet se tornou um das estrelas da casa, já habituada a lançar grandes nomes e depois “perdê-los” para emissoras com maior audiência. Foi assim com Fernanda Lima, Casé Peçanha, Tatá Werneck, Marcos Mion, entre outros. Marcelo Adnet acabou se tornando o astro de uma nova geração de humoristas, ácidos, reis do improviso e competentes para fazer rir e refletir simultaneamente. Tanto sucesso levou Adnet para a Rede Globo, em 2013, após receber convites de muitos interessados em levá-lo para a TV aberta.

Em 2013, o humorista estreou o seriado semanal O Dentista Mascarado, de autoria da renomada dupla de roteiristas Fernanda Young e Alexandre Machado. O fracasso da história foi evidente. Com a atração finalizada, Adnet passou a figurar em quadros de humor do Fantástico, ao passo que criava, aos poucos, junto ao amigo Marcius Melhem, o novo programa de humor que a Globo estrearia em 2014. Foi assim que estreou o Tá no Ar: a TV na TV, programa semanal de nove episódios, cuja primeira temporada a Globo exibiu de 10 de abril a 5 de junho de 2014. Com o Tá no Ar, a emissora voltou a realizar um humor menos tradicional e fadado às piadas óbvias e preconceituosas. A emissora conseguiu revisitar terras dantes navegadas com o núcleo de Guel Arraes. Agora sob a direção de núcleo de Maurício Farias, a trupe de comediantes conseguiu unir humor, crítica e texto inteligente, em uma espécie de versão contemporânea do TV Pirata. A referência ao programa é evidente, haja vista que ambos realizam críticas ao universo da TV a partir de um bem-elaborado roteiro metalinguístico.

Este artigo parte, assim, de uma análise da estrutura metalinguística apresentada pelo programa, a partir dos conceitos de gêneros e formatos televisivos. Em seguida, apresenta um apanhado histórico do TV Pirata, a fim de evidenciar as semelhanças entre os dois programas. A partir daí, discorre-se uma descrição breve concernente aos primeiros episódios do Tá no Ar, seguida de um panorama da recepção do programa, a partir de textos públicos na internet por críticos especializados.

Gêneros e formatos da TV

A estrutura de programação televisiva segue, tradicionalmente, um modelo centralizado na constituição de programas dos mais diversos gêneros e formatos. Os gêneros e suas variações tornam-se necessários para o preenchimento da grade de modo mais completo e diversificado. Por meio deles, cria-se a fidelidade, que viabiliza o horizonte de expectativas por parte do público, a partir do que se conhece de cada atração, do ponto de vista da linguagem e da estrutura.

Conceituar gênero nem sempre é tarefa das mais fáceis, haja vista o uso de tal definição em diferentes áreas do conhecimento, assim como as diversas possiblidades de sua aplicação na área do audiovisual. José Carlos Aronchi de Souza, em Gêneros e formatos na televisão brasileira (2004), atribui fundamental importância à noção de gênero, relacionando-a a um conjunto de características de estrutura e estilo que certos programas apresentam em comum.

Do ponto de vista teórico, a visão mais aceita admite a existência de três grandes categorias: entretenimento, informativo e educativo. Segundo o autor, os gêneros são: “[…] estratégias de comunicabilidade, fatos culturais e modelos dinâmicos, articulados com as dimensões históricas de seu espaço de produção e apropriação […]” (SOUZA, 2004, p. 44, grifo do autor). O formato, por sua vez, é um conjunto de características gerais de um programa de TV, capazes de definir o gênero. O formato entrevista, por exemplo, pode contemplar o gênero telejornal ou talk show, o que comprova a dimensão híbrida do gênero.

Elisabeth Duarte Bastos (2007), por sua vez, aponta outras possibilidades para a conceituação de gênero e formato:

“Por gênero televisivo, compreende-se uma macro articulação de categorias semânticas capazes de abrigar um conjunto amplo de produtos televisuais que partilham umas poucas categorias comuns. […] Os subgêneros são atualizações de um gênero, que podem se manifestar sob diferentes tipos de produtos audiovisuais” (DUARTE, 2007, p.15).

A análise de Duarte centra-se sobre o estatuto e a função dos gêneros e formatos televisuais. À luz de Martín-Barbero, a autora afirma que “Os gêneros são, então, categorias discursivas e culturais que se manifestam sob a forma de subgêneros e formatos” (DUARTE, 2007, p. 8). Ao compreender que os gêneros também reúnem uma característica híbrida, Duarte defende a concepção que o público inicia o processo de identificação com certo programa a partir da definição do nível de aproximação com a realidade. Trata-se de analisar a realidade discursiva da TV enquanto veículo de mediação tecnológica e de construção de linguagens. A televisão, sobremaneira, é uma construtora de sentidos.

A fim de classificar os gêneros e sua relação com o mundo real, a autora apresenta três noções fundamentais: meta-realidade, supra-realidade e para-realidade. A meta-realidade tem como referência os produtos televisivos que têm como base o mundo exterior e natural. Enquadram-se, nessa conceituação, os programas de caráter jornalístico, noticioso, documental e dialogal. A supra-realidade está no nível dos programas que adotam o critério da verossimilhança. Nesse cenário, estão as atrações ficcionais, com destaque para os subgêneros novelas, minissérie, seriado e telefilme. No âmbito da para-realidade, estão os reality shows, programas nos quais a própria TV simula uma realidade interna, com vistas a discutir o mundo real dos indivíduos a partir do enquadramento feito pela simulação de realidade, em um jogo televisivo marcado pela artificialidade do discurso.

Mesmo sem adotar classificações reducionistas ou limitadas, Duarte arrisca definir gênero televisivo como uma articulação de categorias semânticas mais ou menos comuns, ligado ao nível de realidade produzido e ao horizonte de expectativas da audiência. Já os subgêneros são formas de atualização de um gênero, até mais fáceis de serem identificadas. Os subgêneros telenovela e seriado, por exemplo, são facilmente diferenciados no universo dos gêneros teledramatúrgicos, presente no campo da supra-realidade. Sobre formato, a autora afirma que esse tem, por característica, a condição de ser realizador de um subgênero.

Muitos formatos teledramatúrgicos têm feito sucesso ao logo da história da televisão brasileira. Entre eles, destacam-se as minisséries e as séries semanais. A repercussão desses produtos, que são de menor extensão que a novela, é quase sempre muita positiva. No tocante às séries, aquelas que abordam situações cotidianas engraçadas – algumas delas, inclusive, se apropriam do termo estrangeiro sitcom, isto é, a comédia de costumes – são as que atraem uma audiência mais representativa. Na TV aberta, temos o exemplo de séries longevas, como Tapas e Beijos e A Grande Família.

A procura por determinado gênero, isso se deve à estrutura seriada de muitas das atrações. A divisão em blocos facilita a longevidade de determinado programa, contribuindo para os aspectos internos, de conteúdo, e para fins comerciais, tendo em vista a inevitável presença do break comercial. Sobre a noção de serialidade, Arlindo Machado (2001) discorre: “Chamamos de serialidade essa apresentação descontínua e fragmentada do sintagma audiovisual”. (MACHADO, 2001, p.83). O enredo, nesse aspecto, é constituído por meio de capítulos ou episódios, intercalados, unitariamente, pelos comerciais.

Todo esse cenário que compõe a televisão é objeto de humor do Tá no Ar. O programa se apropriou dos formatos e gêneros de sucesso e resolveu propor um jogo metalinguístico presente até no subtítulo da atração: A TV na TV. A partir das piadas com a linguagem da TV, o humorístico resolveu rir de si mesmo, com a exposição das vantagens, desvantagens e simulacros do mundo televisivo. O hábito de se apropriar da metalinguagem começou muito antes, na história da TV. Um dos marcos desse tipo de comédia foi o TV Pirata, programa que será analisado no próximo tópico.

TV Pirata e o humor metalinguístico

Quando se fala em atualizações de um gênero, notamos que os subgêneros do humor, advindos do gênero entretenimento, foram ganhando novos contornos à medida que foi se desenvolvendo e aprimorando determinado modelo de programação. No Brasil, por exemplo, os subgêneros e formatos humorísticos herdaram as tradições radiofônicas. Programas como Balança, mas não cai, A Praça da Alegria e Escolinha do Professor Raimundo iniciaram sua trajetória nas ondas do rádio. Tida como uma comédia mais tradicional, concentrada na criação de personagens fixos e bordões, esses produtos ainda hoje compõem o cenário cômico da TV.

Chico Anysio e tantos outros humoristas solidificaram esse padrão de humor, que prevaleceu por décadas. Com os avanços tecnológicos, no entanto, e com a chegada, à TV, de profissionais oriundos das experiências em vídeo, tornou-se possível formatar outras vertentes, pautadas não apenas na fórmula repetida, mas em quadros flexíveis e em textos capazes de causar a graça necessária sem deixarem de lado a crítica eficaz.

No final da década de 1980, a televisão aberta brasileira desenvolveu um projeto de humor notadamente “revolucionário” em relação ao que já havia sido apresentando. Diferente de atrações voltadas para imitações ou repetições de um grande figurão do humor, o TV Pirata trouxe, para o cenário de então, humoristas ainda não muito famosos, mas altamente talentosos e competentes para dar forma ao novo formato que se desenhava.

Guel Arraes foi o principal responsável por introduzir um novo padrão de televisão, inspirado em suas próprias experiências pessoais e naquelas realizadas com seus companheiros de arte videográfica. A ele foi permitido desenvolver um núcleo de criação, responsável, até hoje, por emplacar produtos de alta qualidade e de humor inteligente. Como analisa Fechine (2007), o TV Pirata trouxe à tona a paródia. A graça estava exatamente em rir das produções televisivas, seus estereótipos já consolidados, ou seja, os gêneros.

O que hoje é feito pelo Tá no Ar já foi muito bem explorado pelo TV Pirata, só que em uma época diferente para a televisão. Os anos oitenta foram marcados também pela redemocratização política do país e os níveis de censura no humor foram sendo minimizados aos poucos. Além disso, toda a tecnologia e interatividade proporcionada, na contemporaneidade, pelas relações com a internet, não puderem ser exploradas pelo elenco de Guel Arraes. Se a internet, hoje, representa uma grande aliada para a aceitação do humor de Marcelo Adnet, o mesmo não aconteceu com a TV Pirata, que, a princípio, não foi bem aceita pelo público e pela crítica. Hoje, visto como ícone, o programa de Guel passou por um processo de adaptação que fez, por vezes, criar-se o medo da não-exibição do programa na semana seguinte. O humor proposto, com sátiras aos telejornais, novelas e comerciais, causou o natural estranhamento que ocorre diante do novo. Braune & RIXA (2007) afirmam, sobre a repercussão do programa:

“A TV Pirata sacudiu a poeira das piadas tradicionais que reinavam havia décadas e foi tachada de “elitista demais”, “carioca demais”. Mas manteve-se firme com seu humor de referências, abusando da metalinguagem, do nonsense e contrapondo-se a veteranos como Chico Anysio – que dizia que sua empregada não entendia o programa” (BRAUNE & RIXA, 2007, p.218).

Como se vê, o programa causou celeuma e talvez, por isso mesmo, tenha marcado época. Ao se contrapor aos padrões humorísticos pré-estabelecidos, Guel Arraes carimbou o passaporte para outras atrações que fazem sucesso até hoje na televisão brasileira. O que foi visto como abuso de metalinguagem nada mais era do que uma comprovação enfática do caráter autorreferencial da TV. É ainda com Fechine (2007) que encontramos uma justificativa para esse tom assumido pela televisão. Ao falar de si o tempo inteiro, a TV mostra o quanto é autopromocional e quando favorece uma estrutura autofágica de consumo. Antes de qualquer coisa, o que interessa é consumir os produtos televisivos.

Faziam parte da realidade do TV Pirata, entre outros: o “Casal Telejornal”, sátira aos noticiários apresentados por casais. No quadro, um casal apresentava o jornal direto da cozinha de casa, onde conciliavam as obrigações familiares e profissionais. O nonsense da situação causava o humor inevitável, tanto pelo texto inspirado, quanto pela sintonia e talento para a comédia dos atores Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães, outros nomes que despontaram no cenário nacional. Junto ao telejornal, muitas eram as paródias, até mesmo de programas do SBT, como A Praça é Nossa. Outro quadro que merece destaque é o “Piada em Debate”, vanguardista nas discussões sobre o que é política e eticamente aceitável no contexto de produção humorística. Apresentado por uma personagem interpretada por Louise Cardoso, o “Piada em Debate” começava sempre com a dramatização de uma piada, seguida de um debate composto por “especialistas”: Ney Latorraca fazia um sociólogo, ao passo que Regina Casé encarnava o tipo feminista, em uma evidente crítica ao discurso politicamente correto.

O quadro supracitado – possível de ser encontrado no site YouTube – atacava, indiretamente, as militâncias contrárias ao humor mais livre. Nada mais atual do que o lugar do politicamente correto na comédia. É notória a importância de os direitos humanos serem respeitados nas piadas, mas o que se vê, muitas vezes, é a imposição de limites bloqueadores do senso criativo dos humoristas. Aproveitando-se das possíveis críticas que seriam feitas às tradicionais piadas envolvendo mulheres, negros e outros temas polêmicos, o quadro do TV Pirata fazia uma metalinguagem do deboche, ao colocar nas vozes de Regina e Ney as opiniões mais impiedosas.

Tanta ousadia fez do TV Pirata um marco do chamado “humor inteligente”. Com seu término, o Casseta e Planeta chegou a assumir, de certa forma, e por alguns anos, o papel do programa de humor ousado, polêmico e sagaz. Críticas à política, sátiras aos programas televisivos e roteiro afiado e moderno eram marcas em comum das duas atrações. Com o passar dos anos, a Rede Globo se distanciou desse tipo de humor, a ponto de focar apenas em séries e shows menos controversos e, de certa forma, mais tradicionais. A estreia do Tá no Ar: A TV na TV, entretanto, trouxe novos ares para o humor na TV aberta. Tal fenômeno é analisado, em especial, nos próximos tópicos.

Linguagem, estrutura e conteúdo

A fim de compreender um pouco melhor a estrutura e a linguagem do Tá no Ar, segue-se uma descrição de alguns quadros apresentados pelo programa. A partir dessas descrições, será possível entender os níveis de humor explorados pela atração e as suas conexões com o que era proposto pela TV Pirata. Uma das facetas visíveis nos quadros do humorístico é, por exemplo, o questionamento do “politicamente correto”. Renata Rosa, em artigo de 2004, discute o “lugar” do politicamente correto no humor, debate pertinente e que se aproxima das abordagens realizadas pelo Tá no Ar:

“Mas será possível fazer rir sem ser politicamente correto? Será que o multiculturalismo decretou o fim do humor? Fazer rir se resume a corroborar com a visão hegemônica? O que fazia uma piada engraçada há décadas ainda se mantém? Que relações de poder estão expressas numa inocente tirada humorística? Por que o outro social é tão engraçado?” (ROSA, 2004, p.581).

De fato, reside na oposição ao politicamente correto a principal arma do programa de Adnet e Melhem. Sem as amarras de antes, o humor encabeçado pela dupla passeia pela crítica direta à corrupção e à polícia, e ainda ousa brincar com as religiões. Todas as edições começavam com a comum interrupção de programação dos canais de TV: o “Interrompemos nossa programação…” brincou com tudo que era possível – desde as palavras que ninguém fala certo (como “lagarto”) até mesmo às diversas maneiras de chamar um garçom. Outros quadros fixos do programa atingiam duramente às classes focalizadas. O “Dr. SUS”, numa alusão ao seriado House, era interpretado por Marcius Melhem. Com ele, as mais tristes realidades da saúde pública eram ridicularizadas. Os diagnósticos constantes de “virose”, bem como a falta de cuidado e de atenção dos médicos eram objetos de escárnio. Outro grupo periodicamente satirizado pelo programa eram os policiais. Com o seriado Polícia Brasileira e o talk-show Tenente Pitombo entrevista eram visíveis a críticas às milícias corruptas, em ação nas ruas e favelas brasileiras, assim como as possíveis técnicas de tortura usadas por alguns oficiais.

Os quadros do Tá no Ar, em sua maioria, eram rotativos. A edição simulava o ato de zapear dos telespectadores, a ponto de alguns quadros ficarem apenas alguns segundos na tela, simulando uma troca de canais. Ao longo das semanas, foi possível notar que esses quadros eram retomados em outras edições. O numeroso arsenal de esquetes chama atenção para o esforço de produção. Os atores se dividiram em dezenas deles, exibidos nos nove episódios. Havia também, em cada semana, outras marcas metalinguísticas. A barra de informações, típicas das programadoras de TV a cabo, era constantemente acionada. Os canais de música que fazem parte desses pacotes também figuravam entre uma zapeada e outra. A comicidade do ato provocava reações novas no público, não habituado mais a esse nível de sátira. As vinhetas de classificação indicativa também marcaram presença, sempre apresentando versões inimagináveis.

Pode-se afirmar que o humor da Globo avançou muitas casas, ao trazer para a cena diversas piadas a outras emissoras. Uma brincadeira com Sílvio Santos aparece já no primeiro episódio, assim como o personagem mais emblemático do programa: o crítico nordestino, que intercala os quadros e aparece em uma média de três vezes por semana. Em seu discurso, aparecem as severas críticas à própria Globo. Em uma sacada de mestre, os roteiristas do programa fazem do personagem o mensageiro das possíveis críticas que a atração receberia. Sua fala, notadamente política e em tom revolucionário, desafia a emissora, a ponto de acusá-la de ter compactuado com o regime militar. Brinca também com o fato de a TV Globo de Televisão (como ele se referia, por vezes) não falar o nome das emissoras “coirmãs”, como SBT e RedeTV!. A estratégia de rir de si mesmo funcionou positivamente.

Do ponto de vista da linguagem, o Tá no Ar trouxe de volta, em uma nova roupagem, as transformações técnicas que marcaram os programas de humor, como o TV Pirata. Sobre essa linha do tempo de transformações que se desenhou no humor televisivo, Cardoso (2008) pontua:

“Ao longo do tempo, os programas de humor produzidos pelas emissoras e redes de TV passaram a refletir as transformações técnicas (o uso do videoteipe, a transmissão em cores, a gravação digital de imagem) e o desenvolvimento de uma linguagem televisiva que altera noções de tempo e espaço (com cortes e fusões de imagem)” (CARDOSO, 2004, p.14).

Os cortes e fusões rápidas foram uma marca intensa do programa liderado por Marcelo Adnet. Como citado, a estratégia de edição adotada investiu em um ritmo frenético. Para isso, tinha que mesclar quadros mais longos com esquetes curtos. Ainda sobre os quadros de maior duração, destaque para o “Jardim Urgente”, sátira aos programas policialescos de fim de tarde, levados ao ar por emissoras como Record e Band. Welder Rodrigues é o ator que interpreta o papel do âncora típico, adorador do sensacionalismo e da falta de respeito aos direitos humanos e à ética. Como o título sugere, no entanto, o quadro é repleto de denúncias aos “crimes infantis”: problemas de comportamento na escola e em casa são elevados à categoria de crimes. O apresentador detona as ações das crianças a ponto de sugerir penalidades absurdas. O humor estava exatamente no nonsense da situação. Não por acaso, foi um dos quadros mais populares.

Em uma visão panorâmica, pode-se dizer que um aspecto forte do Tá no Ar era a metalinguagem. Em uma atração de apenas trinta minutos semanais, em média, parecia impossível passear por tantos gêneros e formatos, mas a produção programa venceu esse desafio. Houve paródias aos comerciais, que sempre ridicularizavam peças publicitárias de sucesso. Operadores de celular, programadores de canais por assinatura, supermercados com preços exorbitantes e mesmo as marcas de sucesso passaram pelo deboche do programa. Os jornalísticos foram apresentados em suas variadas facetas: na crítica ao egocentrismo dos apresentadores, nas disputas internas entre os jornalistas e na falta ou excesso de opiniões. Os formatos oriundos do gênero entretenimento também foram alvo de escárnio, entre eles, as novelas, os talk shows, as paródias da Sessão da Tarde, os games-shows e os programas de culinária. O cinema brasileiro e a música popular também não foram esquecidos, com paródias feitas a partir de trailers falsos e de sátiras aos programas de música da MTV.

A música foi quase uma constante no quadro final de cada episódio. Quando a maior parte dos quadros já havia sido exibida, entrava um flash com opiniões do público, simulação encabeçada pelos próprios atores do programa. Esse era o momento de mais um exercício de rir de si mesmo, seara na qual o programa foi mestre. As opiniões chegavam ao ponto de dizer que Adnet era melhor na MTV ou que o programa imitava o portal de humor Porta dos Fundos. O último comentário vinha sempre na contramão: falava de algo que o programa não tinha feito e, em seguida, o público tinha seu pedido atendido. Os quadros finais foram, assim, épicos. Uma das performances mais ousadas, exibidas no último episódio, em 5 de junho de 2014: a paródia à música de final de ano da Globo: “Um novo tempo”. Na vinheta armada pelo programa, os artistas aparecem cantando uma letra com mensagem nada positiva. Ao contrário, insinuam a falsidade dos artistas e os problemas da própria Globo. O excesso de sátira causou celeuma na imprensa e no público. Analisemos, a partir de então, a repercussão do Tá no Ar.

Crítica e escoamento on-line do Tá no Ar

A emissão do conteúdo do Tá no Ar, na internet, foi a grande sacada da produção. Diferente dos outros programas da Globo, cuja íntegra só pode ser acessada pelos assinantes, a atração de Adnet e Melhem podia ser vista no portal Gshow semanalmente, o que permitiu que o site do programa fosse mais acessado até mesmo que a novela das 21h. A equipe do Tá no Ar se apropriou do fato de a internet ser o grande veículo de comunicação de massa da contemporaneidade.

Interativa, participativa e democrática, a web pode não ter substituído a TV, mas tem tirado parcela significativa desse público. Canclini, em Leitores, espectadores e internautas (2008), afirma que a interatividade é um motor do fenômeno comunicacional que tem se desenhado nos últimos anos e que não possibilita previsões. Embora as fronteiras de comunicação tenham diminuído, é importante lembrar-se de que estar conectado nem sempre é sinônimo de estar participando ativamente de algo. Sabe-se que os internautas são partícipes de um processo que recorta os limites pré-definidos e aumenta as possibilidades de participação e escolha, ainda que essas se deem de forma controlada pelos que detém o monopólio da emissão de conteúdo.

Conforme os números do Ibope, o Tá no Ar passou longe de ser um sucesso de audiência, com média geral de nove pontos, considerando-se a Grande São Paulo como medição de participação. Nessa contagem, um ponto equivale a 65 mil pessoas. Algumas razões de ordem prática podem apontar o fracasso de audiência do programa, que apesar de tudo, manteve a liderança da Globo em quase todas as quintas-feiras em que foi ao ar. A primeira delas é o horário de exibição, que aconteceu na chamada terceira linha de shows da emissora. Difícil ser um fenômeno de audiência entre às 23h55 e à 0h25. Apesar, no entanto, de ter tido uma recepção humilde do público da TV, a crítica especializada e os internautas foram altamente envolvidos com a proposta. A maior parte dos comentários dos fãs, na internet, é de caráter elogioso. As críticas recaem sobre o horário, de um modo geral.

Lidar com religião também foi uma ousadia à parte da trupe de humoristas. Os adeptos do candomblé e das religiões cristãs foram mote de algumas piadas. Um delas se tornou uma espécie de viral na internet: a sátira ao grupo “Galinha Pintadinha”, com a “Galinha Preta Pintadinha”, cantora de hits de duplo sentido, numa clara evocação aos símbolos e às crenças das religiões de matriz africana. A personagem apareceu em mais de um programa e foi sucesso certeiro. A polêmica, no entanto, foi um pouco maior, quando o programa ironizou o hábito dos cristãos com a paródia do seriado Friends, intitulado “Crentes”. As músicas e diálogos dos protagonistas atingiam as crenças dos seguidores, mas em tom de humor, não de desrespeito.

Crítica ácida mesmo foi feita aos programas religiosos da TV, que ultimamente, têm ocupado espaços cada vez maiores na grade das emissoras. No quadro “Ungidos pela fé”, exibido no penúltimo programa da temporada, Adnet interpretou o típico líder religioso carismático, que em meio a discursos de salvação e milagres, evoca os pecados dos fiéis, em um tentativa de convencê-los a permanecerem com as doações financeiras. Comprovando a profusão de gêneros pelos quais a atração passeia, o programa religioso funcionou também como crítica ao domínio de horários vendidos nas concessões públicas, o que serve para alertar acerca do excesso de faixas loteadas na TV.

A imprensa respondeu de modo satisfatório ao Tá no Ar. Sites especializados em comentar a programação das emissoras, como o UOL, a Veja.com, o Observatório da Imprensa e tantos outros, acenaram positivamente ao fato de a Globo estar voltando a realizar formas de humor menos convencionais e mais inovadoras e desafiadoras. Em texto publicado em 20 de maio, no Observatório da Imprensa, Maurício Stycer sinaliza a abertura de novos tempos no humor da emissora, a partir do momento que ele ganha foros de “coisa séria”. Nesse sentido, ao que parece, as militâncias religiosas e políticas parecem não exercer mais o mesmo medo na emissora, que se arriscou ao colocar no ar críticas e deboches tão acentuados e evidentes. Até mesmo o mercado publicitário foi atingido, tendo em vista a sátira direta a algumas marcas. Os grandes publicitários sinalizam, assim, ter entendido que falar da marca, bem ou mal, acaba funcionando como propaganda gratuita.

Patrícia Kogut, em texto publicado em seu site, no dia do 30 de maio, traz para discussão outro elemento que contribuiu para a repercussão bem-sucedida do Tá no Ar: o caráter curto das esquetes, bem ao estilo que consagrou o portal de humor Porta dos Fundos. Simples e direto, o programa conseguiu transformar o ato trivial de ver TV em pretextos para piadas que atingem públicos com diversos níveis de escolaridade, o que evita formação de nichos. As sátiras passeiam por diferentes classes sociais, em um claro exercício de se buscar receptividade entre as audiências mais diversas. Semanas antes de publicar o texto acima, Kogut também chamou atenção para o retorno de Marcelo Adnet a sua forma mais comum de fazer humor, centralizada na sátira inteligente. Na coletiva de lançamento do programa, Marcius Melhem já se mostrava satisfeito com a abertura proporcionada pela Globo, ao autorizar um programa tão polêmico. Em entrevista ao site UOL, o humorista destaca:

“O programa tem uma pegada diferente. O Brasil mudou, a televisão mudou, o ritmo da comédia também”, diz ele. “Já estava na hora de revisitar o tema, é outra TV, é um outro tempo, um universo cada vez mais rico e é bom falar um pouco do que está acontecendo por aí. Se a gente chegar perto do sucesso que eles fizeram [o TV Pirata], está excelente”, completa Marcius (MELHEM, Marcius apud RIBEIRO, 2014).

O deboche trazido pelo programa não parece querer transformar o mundo ou mesmo a TV. Que diga a autocrítica presente na música de abertura: Televisão, de Titãs, evidência da suposta imbecilidade causada pela comunicação televisiva. Sua maior ousadia está, no entanto, em trazer para a cena um humor nada parecido com o Zorra Total e seus tipos repetitivos e ofensivos. Não há lugar, no Tá no Ar, para os bordões ou as piadas prontas. Os roteiristas estão atentos para o mundo que está recebendo a comédia. A abertura que a sociedade tem dado a alguns temas não pode passar em branco nas mãos daqueles que pensam o humor.

Embora tenham apresentado apenas nove episódios, o programa conseguiu deixar sua marca na programação da TV, em 2014. Como a crítica e o público, especialmente os internautas, responderam satisfatoriamente à proposta, o programa voltou ao ar na grade da Globo em 12 de fevereiro de 2015, em uma segunda temporada repleta de participações especiais e com o mesmo tom de humor que marcou e caracterizou positivamente a atração.

Considerações finais

 

A web mudou a forma de o público se relacionar com os produtos audiovisuais. As facilidades de escoamento retiraram o espectador da condição de consumidor passivo e o promoveram a produtor ativo de conteúdos variados. Logo, a própria TV foi obrigada a rever seus gêneros e formatos, criando novas alternativas, mesmo que essas venham a passos lentos. Não se pode negar, no entanto, que algumas iniciativas têm favorecido um novo contexto de produção e de recepção. Sabe-se que ainda não se chegou ao ideal de uma mídia mais cidadã e comprometida por completo, mas as novas tecnologias possibilitaram o alargamento do público e chances infinitamente maiores de se questionar os conteúdos veiculados. Ao facilitar o contato do público com a obra, disponibilizando a íntegra do Tá no Ar na internet, a Globo aproximou a audiência virtual, que ainda é mal contabilizada, mas contribui de modo emblemático para a repercussão dos programas da TV. Nota-se, assim, que a internet não pode ser desconsiderada, haja vista a reposta imediata que o público apresenta nas redes sociais e nos sites das emissoras.

Do ponto de vista da estrutura de programação da televisão brasileira, o sucesso do programa aponta para dois fenômenos positivos: a supremacia da qualidade, em detrimento parcial dos números da audiência, e a resposta do público diante de produtos inovadores. No primeiro caso, soa como necessária a intervenção dos grandes diretores de TV em defesa de programas de qualidade, mesmo que essas atrações não atinjam o sucesso esperado na perspectiva quantitativa do Ibope.

A acolhida do público ao Tá no Ar também mostra que ainda é possível construir uma audiência cativa na TV aberta, a despeito de a fuga para os canais a cabo e para outras mídias ter se tornado cada vez mais comum. Ao mostrar interesse pelo humorístico, os telespectadores permitiram a constatação de certo quadro de interesses: há lugar para o humor mais ácido na TV, assim como há público quando se propõe algo novo. Foi-se o tempo marcado pela supremacia do “mais do mesmo”. Os receptores de hoje também são emissores, críticos e nada passivos. Não adianta apenas colocar um bom produto no ar. A sintonia com o público contemporâneo é uma tendência que as emissoras não podem desconsiderar. Ao dialogar com a internet e com outros meios, a TV mostra que ainda há espaço, nos lares, celulares, computadores e tablets brasileiro, para o meio de comunicação de massa mais difundido do país.

Referências

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STYCER, Maurício. “Humor levado a sério”. Observatório da Imprensa. Edição 799. 20 de maio de 2014. Disponível em: http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed799_humor_levado_a_serio. Acesso em: 22 de maio de 2014.

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Tcharly Magalhães Briglia é graduando do curso de Comunicação Social e professor de Língua Portuguesa e Língua Inglesa na rede particular de ensino. Artigo orientado pela professora Karen Vieira Ramos