Após uma oportuna jornada de audiências públicas envolvendo diversos setores interessados da sociedade, a comissão de especialistas que trabalha na reforma das diretrizes curriculares para os cursos de Jornalismo trabalha para finalizar um documento-síntese sobre o tema. O texto deve ser encaminhado ao Ministério da Educação em meados de agosto, para avaliação e tramitação no Conselho Nacional de Educação. Entre a versão da comissão e o texto final das novas diretrizes, muita coisa pode acontecer. Há quem ainda peça mais tempo para discussão e reflexão sobre o tema – é o caso da Fenaj –, mas sabemos todos que mudanças nos cursos de Jornalismo são ansiadas e até mesmo urgentes.
A comissão trabalha nas sugestões feitas, e talvez não seja mais possível agregar novas contribuições. Por isso, apenas sinalizo aqui um temor pessoal nas últimas rodadas de discussão que li em sites e blogs. Receio que ganhe cada vez mais relevo um aspecto que, na minha forma de ler, é uma falsa questão para a comissão de especialistas.
Nas últimas semanas, muito decorrente da terceira audiência pública promovida pela comissão, diversos atores sociais manifestaram suas preocupações com uma formação mais humanística nos cursos de Jornalismo. Mais que isso, frisaram da necessidade de se construir currículos com fortes doses de disciplinas desse naipe, de maneira a garantir formação mais amplas e sólidas aos novos jornalistas.
Penso que essa é uma falsa polêmica, uma falsa questão para o tema.
Desvio de função
Estive em São Paulo na terceira audiência e percebi uma clara tendência de sugestões em torno de conteúdos a serem incluídos nos currículos dos cursos de Jornalismo. Diversos colegas que usaram o microfone se restringiram a defender certas unidades de ensino e disciplinas em detrimento de outras, e muitas dessas sugestões são realmente muito bem vindas. No entanto, não era o caso de fazê-las ali. E por uma questão simples: a comissão que trabalha nas diretrizes não vai ditar novos currículos para os cursos. A comissão vai elaborar um texto que sinalize orientações mais gerais de formação. Daí que o documento das atuais diretrizes curriculares sinalize perfis desejáveis para os egressos dos cursos e competências e habilidades a serem perseguidas e desenvolvidas.
A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) prevê as diretrizes, e essas diretrizes apontam os focos de formação esperados. Cabe aos gestores – coordenadores e coordenadores pedagógicos – estruturarem seus currículos de forma a satisfazer tais diretrizes. Por isso que as sugestões de conteúdo – embora ricas e interessantes – feitas na terceira audiência pouco importam à comissão. Se os especialistas se detiverem a listar conteúdos para rechearem currículos, estaremos retornando à lógica dos currículos mínimos dos anos 1980 e incorrendo num tremendo desvio de função da comissão.
Sei que esse risco é pouco provável. Na terça-feira (26/5), o presidente da comissão, José Marques de Melo, disse no programa televisivo do Observatório da Imprensa que não cabia àquele colegiado ditar novos currículos para os cursos. Mesmo sabendo que a comissão está consciente desse papel, é importante tornar muito claro o alcance de um documento como o das diretrizes curriculares.
Mais humanidades. Mais?
O coro ouvido nas últimas semanas clamou para que os cursos de Jornalismo contemplem uma formação mais humanística. Acho importante e oportuna a sugestão. Entretanto, ela precisa ser colocada em perspectiva para que se possa avaliar a sua real pertinência. Proponho ao leitor que pense em cinco escolas de Jornalismo no Brasil. Peço então que entre em seus sites e que acesse suas matrizes curriculares, seus ementários ou – quem sabe? – seus projetos pedagógicos. Notem a proporção de disciplinas específicas para a formação jornalística e as que poderiam ser classificadas como disciplinas mais amplas, de sustentação e formação humanística.
Posso afirmar que quaisquer que sejam as escolas listadas pelo leitor, em todas elas veremos disciplinas como Sociologia, Antropologia, História, Filosofia, Psicologia, entre outras. Veremos a clara preocupação de oferecer saberes de base para que os futuros jornalistas estejam preparados para analisar cenários e compreender realidades. Veremos também algumas tentativas de conexão entre essas unidades de conhecimento com a prática jornalística. Pois bem. Não é demais dizer que as humanidades fazem parte da formação oferecida nos cursos de Jornalismo, e eu estenderia isso a todo o Brasil. Venho desenvolvendo uma pesquisa sobre ensino de deontologia jornalística entre os cem cursos mais tradicionais do país. Isso tem me obrigado a analisar matrizes curriculares e ementas, e o que venho encontrando – entre outras coisas – é esta presença bem evidente de disciplinas de humanidades.
Com isso, pergunto: se os cursos já oferecem doses elementares de humanidades, precisamos valorizar ainda mais esse tipo de formação? Essa formação ampla é mais importante do que a específica, voltada ao exercício profissional? Existe fórmula para equilibrar esses termos da equação?
Ana Arruda Calado, no mesmo programa do Observatório da Imprensa, foi pontual na questão: o problema não está na quantidade desses conhecimentos, mas na integração das formações humanística e específica. Isto é, precisamos trabalhar melhor nossas matrizes curriculares, nossas ementas, nossos planos de ensino, de forma a fazer com que as humanidades não sejam mais adereços nas situações de sala de aula, mas se amalgamem com as práticas da profissionalidade. Neste sentido, estendo o mesmo raciocínio para a falsa dicotomia teoria-prática, que também carece de mais atenção por professores e supervisores pedagógicos.
Cinismo e injustiça
Pareceu-me que o argumento dos defensores de mais humanidades nos cursos de Jornalismo está baseado na generalização de que os novos jornalistas chegam às redações totalmente despreparados. Isso é possível, sim. É plausível que os egressos que não tiveram experiências profissionais anteriores ou simulações pedagógicas dos desafios das profissões deságuem nas redações como quem não sabe a que veio. Mas isso não é ‘privilégio’ dos cursos de Jornalismo. Em outras áreas, existem claras oportunidades de ensaio, de exercício, de estágio supervisionado. Jovens formados em Medicina precisam passar por tempo de residência; concluintes dos cursos de Direito estagiam em escritórios do ramo, bem como egressos da Engenharia não saem por aí assinando projetos…
Dos jovens jornalistas espera-se que saiam completos, maduros e competentemente formados para o trabalho. Esquecem-se que a lei que regulamenta a profissão impede o estágio na área, e que muitas escolas de Jornalismo não detêm bons laboratórios para atividades práticas que poderiam servir de ensaios profissionais. Mesmo assim, exige-se que os jovens jornalistas saiam plenamente aptos à lida cotidiana.
Não se trata de passar a mão sobre a cabeça dos egressos. Não. Defendo que os cursos de Jornalismo contribuam de maneira decisiva para a transformação de amadores em profissionais capacitados para a atividade. Defendo também que sejam cursos de qualidade, com alta exigência pela excelência técnica, com grande potencial para formar jornalistas críticos e conscientes, responsáveis e éticos. No entanto, é – no mínimo – cinismo esperar que os egressos desses cursos saiam plenamente preparados para um mercado em transformação se tanto a formação acadêmica quanto seu entorno são incapazes de assegurar condições plenas de capacitação. Isso sem contar a idéia equivocada de formação restrita aos quatro anos de curso. Profissionais – e jornalistas não estão fora disso – devem estar em constante formação, reciclagem e aprimoramento…
Foco na formação
Mesmo que o argumento seja generalizador, cínico e injusto, ele nos ajuda a ajustar o foco da formação que se deve perseguir nos cursos de Jornalismo. Os jovens jornalistas chegam crus nas redações? As razões são muitas, mas os erros e deslizes que colhemos todos os dias não estão circunscritos apenas nos focas. Gente muito experiente tem derrapado por aí. E não por conta de formações humanísticas deficientes, mas sim por problemas de formação específica em jornalismo.
Jovens repórteres têm saído para suas matérias sem saber como e onde buscar informações. Muitas vezes, não sabem formular perguntas ou conduzir entrevistas. Jovens pauteiros elaboram pautas inconsistentes ou que pouco orientam repórteres. Editores, nem sempre jovens, penam em como articular os conteúdos e materiais que têm à disposição e que devem oferecer ao público.
Isto é, os egressos dos cursos de Jornalismo precisam ter acesso a disciplinas e conteúdos que lhes permitam ler cenários, compreender realidades, analisar circunstâncias. Estudantes de Jornalismo precisam ter aulas de Sociologia, mas não sairão sociólogos formados. Sairão jornalistas que precisam saber buscar informações, apurar, relatar com precisão e correção. Sairão jornalistas que devem inquirir sociólogos, antropólogos ou outras fontes de informação com rigor, atenção e foco.
Por isso, insisto, a defesa de conteúdos mais humanísticos nos cursos de Jornalismo é uma falsa questão. Não é o que a comissão busca. Os cursos já têm disciplinas dessa natureza, e nossos problemas de formação têm sido mais graves na capacidade dos jovens profissionais atuarem bem na especificidade da profissão.
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Jornalista, professor da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e coordenador do Monitor de Mídia, integrante da Rede Nacional de Observatórios de Imprensa (Renoi)