De um modo geral, a mídia brasileira tende a tratar a questão da preservação-industrialização da Amazônia com certo olhar desfocado. Confere-lhe matérias episódicas por conta de ocorrências de impacto ou sensacionalistas, como grandes queimadas, ocupações seguidas de mortes e fatos equivalentes.
Quando esta não é a receita, outra não menos deformada toma lugar: um certo tom nostálgico, contaminado de visão romântica na qual se reafirma a atmosfera tão idílica quanto ingênua a evocar o ‘santuário da mãe-natureza’, sem mencionar o fato do quanto o tema serve para reavivar chamas de nacionalismo fervoroso.
A mídia, com raras exceções, não se interessa pelo tema, ou não sabe como lidar com ele. Assim, ela se vê inclinada a oscilar entre o tratamento da barbárie e o infantil romantismo. Ambos são igualmente objeto de distorções que afugentam o encaminhamento de possíveis soluções. A única via plausível e racional diz respeito a uma análise científica e política.
Um Olhar 2004 sobre a questão
Exceção feita aos modelos dominantes na mídia, no tocante ao tema em questão, concedeu o programa Olhar 2004 (TVE, Rio), quando, em edição especial na sexta-feira (30/7), pôs o dedo na ferida. Sob a direção de Mário Morel, apresentação de Lucia Leme e, como debatedor, Milton Coelho da Graça, os telespectadores tiveram rentável recorte crítico-analítico a respeito da preocupante situação que inclui vasta área: 61% do território brasileiro.
Integravam o grupo de entrevistados Pedro Aranha, ambientalista; Eugenio Scannavino Netto, médico e coordenador da exposição ‘Amazônia Brasil’ (o evento transcorreu em Brasília entre os dias 27 e 29/7); Pedro Pantoja, seringueiro, e, por fim, Manuel Cambeses Junior, coronel-aviador, membro do Centro de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra.
Os depoimentos tiveram em comum a configuração de um quadro dos mais apreensivos. Além do já sabido desmatamento predatório, somam-se hoje atividades crescentes voltadas para o plantio de soja e para a agropecuária, afora amplas devastações praticadas por posseiros cujo ‘método’ consiste em introduzir na floresta processos agrícolas de efeitos destrutivos prolongados. A realidade cotidiana vigente na Amazônia parece conviver com a falta de uma política governamental, capaz de destinar à região nível de desenvolvimento em bases sustentáveis.
Não nos esqueçamos das lágrimas da ministra Marina Silva ante a recusa do governo em adotar uma política de meio-ambiente controlada. Enfim, tudo parece regido pela febril procura de resultados imediatos. Em nome do agronegócio e da exportação de soja (novo ciclo monocultural), entram dólares que não cobrem os prejuízos ao ecossistema. Enquanto isso, o noticiário recente dá conta de um superávit de 13 bilhões de reais acima do fixado pelo FMI. Basta recorrer-se à matéria principal da edição de 31/7 da Folha de S. Paulo, ‘Brasil faz economia recorde, mas investe só 5,6% do previsto’.
As análises promovidas pelos entrevistados no programa citado não deixam dúvidas quanto ao progressivo avanço da destruição. Entre outras denúncias, um dos convidados mencionou que, nos últimos meses, vem sendo desmatada, semanalmente, área equivalente à da cidade do Rio de Janeiro. O abate de árvores é alvo de atos indiscriminados e destituídos de qualquer cuidado com a área ao redor. Trata-se de pura selvageria ditada pela junção da ganância com a ignorância.
No tocante ao incentivo à liberação do plantio de soja (transgênica ou não) por parte do governo, registra-se que tal prática contribui para o agravamento das condições ambientais, principalmente em razão de suas conseqüências, em detrimento de métodos testados em outras regiões do país. Nesse particular, o depoimento do ambientalista foi taxativo: a área para o plantio de soja é duplamente predatória: antes e depois. Antes, em face do que é necessário ao plantio, ou seja, ampla superfície linear e limpa. Depois, em razão do estado de saturação da terra, tornando-a inútil para outros plantios. Em suma, tudo está ocorrendo com a conivência – ou desleixo – das autoridades públicas, seja em esfera federal, seja em âmbito estadual e municipal.
Aos olhos do mundo
Outro ponto não menos significativo, referente à problemática a envolver a Amazônia, e não ficou ausente na pauta do programa, tem a ver com o aquecimento global. Note-se que o Brasil já ostenta a 5ª colocação no ranking dos países emissores de CO2 (dióxido de carbono).
Frise-se que a posição do Brasil não decorre, diferentemente dos demais quatro, da expansão de sua atividade industrial e sim por fragilidade fiscalizatória. São danificações ambientais as responsáveis pela crescente emissão agentes poluentes. Por sua vez, não é menos inepta a intervenção do Congresso Nacional, quanto ao trato de tais questões, exceto esparsos pronunciamentos dos que se elegem com base em tal bandeira. Nada além de páginas arquivadas em prateleiras empoeiradas. A situação é crítica: avança tenazmente um processo de desertificação na Amazônia, sob olhares complacentes ou inertes dos governantes. Esta, alerta o especialista em assuntos estratégicos, coronel Manuel Cambeses Junior, é uma questão verdadeiramente de segurança nacional.
Entre omissão política e fragilidade estratégico-fiscalizadora, principalmente decorrente da falta de aplicação de recursos, deixa-se escoarem riquezas, permite-se aniquilação de redes de biodiversidade (não conhecemos sequer as propriedades bioquímicas do que destruímos) e, por fim, negligencia-se importante ‘moeda de barganha’, em âmbito internacional, na medida em que é sabido haver, na Amazônia, dadivoso subsolo. Entre outras riquezas minerais, destacam-se ouro (apesar do muito já saqueado), bauxita, ferro e cassiterita. A estes, somem-se dois outros: nióbio e urânio. O primeiro é reserva única no mundo e indispensável à construção de reatores nucleares e à indústria espacial. O segundo, como é do domínio público, se faz insubstituível tanto para a produção de energia quanto para a tecnologia bélica.
Em algum momento do programa, foi, de modo categórico, afirmado isto: ‘O que não fizermos pela Amazônia, outros farão e à nossa revelia’. Como se vê, o problema não é pequeno. Todavia, a mídia por ele parece não nutrir apreço. Por essa Amazônia, o Globo Repórter não tem interesse. Opta por mostrar jacarés e outras exóticas paisagens…
Fica, pois, o reconhecimento do utilíssimo programa, produzido e exibido pela TVE do Rio, lamentando apenas pelo horário tardio e a inexistência de reprise. É pena que somente segmentos, de certo modo já instrumentalizados, tenham a possibilidade de assistir a programas como esse.
A diferença entre TV pública e comercial, pelo menos no Brasil, é essa: o oferecimento de conteúdos que concorrem para elevação de massa crítica. Olhar 2004, Observatório da Imprensa, Cadernos de Cinema, Roda Viva (este produzido pela TV Cultura de São Paulo e retransmitido pela TVE), Conexão Roberto D’ Ávila, entre outros, justificam, perante a sociedade, o uso do que é arrecadado pelos altos impostos que pagamos.
Quantos podem dar igual justificativa?
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio