Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Imprensa perna-de-pau

José Antonio Palhano (*)

A ofensiva moralista da mídia esportiva contra Wanderley Luxemburgo logo após sua queda – ou a partir do momento em que esta se tornou inevitável – não é capaz de esconder o vexame: toda a imprensa tomou um acachapante olé do homem. Desde suas primeiras horas como comandante da Seleção ficou claro que o futebol brasileiro, dali para a frente, seria escancaradamente manipulado. Dizer agora que o tal esporte bretão já há muito o vem sendo não passa de detestável manifestação de sedentarismo jornalístico.

Não se impute a Luxemburgo o pecado da dissimulação. Mais direto e objetivo, impossível. O fato de ter convocado perto de uma centena de jogadores, aliado à cara-de-pau com que priorizava cabeças-de-bagre não despertou maiores suspeitas nos colegas tão afeitos às sutilezas dos esquemas de jogo e tão conhecedores das safadezas dos tapetões. Luxemburgo, nas barbas de todo mundo, dedicou-se com a disposição de zagueiro sanguinário à montagem do maior balcão de venda de jogadores do planeta. E dá-lhe todo mundo tratá-lo sob pressupostos exclusivamente esportistas: ele convoca mal, arma mal, ensaia mal, escala mal etc. etc.

E o homem, por sua vez, deitando e rolando no tapete verde de fartos e bandidos dólares. A seleção e a torcida – e ainda mais a crônica esportiva – que se danassem o mais rápido possível. É extraordinário que a frieza de Wanderley Luxemburgo não tenha sensibilizado corações e mentes que tão dedicadamente auscultam e repercutem as paixões e os dramas das arquibancadas frente às urgências e aflições advindas do seu policialesco, ou pelo menos suspeito, comportamento.

Sinais e sintomas, convenhamos, não faltaram em momento algum. Até porque se fizeram insinuantes e dissimulados como convém a todo mal crônico e incurável, daqueles que só dão notícias quando já é tarde demais. A grandiosidade, o superlativo e a ostentação capiaus do futebol tupiniquim, afinal, não foram feitos para qualquer um. E Wanderley Luxemburgo sucumbiu ao deslumbramento de maneira espetaculosa e irreversível. Num átimo, rasgou em pedaços seu admirável currículo como técnico, suficiente para transformá-lo numa rara – e justa – unanimidade nacional, à época em que se fez necessário despachar Zagalo para casa.

Se lembra povo é ruim…

Daí em diante, foi uma constrangedora sucessão de fatos e eventos que escandalizavam muito mais em razão da grotesca alienação que provocavam na mídia que propriamente por conta do seu viés caricato e provinciano. A mania do terno, por exemplo. Não que tamanho e bestial apreço pela cafonice latina fosse suficiente para revelar as distorções de caráter de um homem cujas atribulações atuais com a Justiça parecem escandalizar a imprensa. Mas ali já ficou suficientemente claro que o técnico da Seleção ia ser tratado nas páginas com uma vesguice típica dos seus inúmeros e interesseiros times amarelinhos. Uma certa indulgência com alguém que se dá ao vexame de evoluir de gravata sob 40 graus ainda passa, até porque estrelas do mundo do futebol há muito já usufruem de exclusivas prerrogativas em nossa imprensa, ampliadas na razão direta do aumento de escândalos, baixarias, carrinhos covardes, coices idem e da presença de louras oxigenadas, seminuas e de péssimas intenções (um bom parâmetro para medir a mediocridade que reina impávida no mundinho das nossas editorias de Esporte de modo geral talvez fosse a cobertura que o Jornal Nacional deu ao nascimento de Sacha. Aquela menininha, todos se lembram, cuja mãe, famosa feito craque de futebol, a condenou a viver tipo naquele filme recente, em que o cara teve a vida trocada por um roteiro de televisão sem saber, com a diferença de que a ficção foi trocada pela real e onipresente Marlene Mattos).

Mas é imperdoável que diretores de imagem globais tenham por tanto tempo se dedicado à impensável e vexaminosa tarefa de mandar ao ar um esvoaçante e engravatado Luxemburgo à beira de gramados mil. Saltava aos olhos que aquela coreografia grotesca era de caso pensado. O gestual, medonho, era criteriosamente ensaiado. Enfim, o que para profissionais de comunicação pode passar por cochilo ou opção preferencial mesmo, para o distinto público se faz em grosseira manipulação pela qual se induz à idéia de que técnicos de futebol, além de liberados para suas cafonices, são seres acima do Bem e do Mal. A arrogância inaudita de Luxemburgo, não resta dúvida, é filha dileta dessa frouxidão profissional que torna a necessidade imperiosa de criticar e cobrar algo como um crime de lesa-pátria.

Mas a barra foi pesando, e nada de a imprensa despertar. A patológica (ah!, o colonialismo de sempre…) atração de Luxemburgo por atletas brasileiros na Europa tinha cheiro de escândalo. Qualquer perna-de-pau que lá estivesse, graças a uma inestimável e prévia convocação sua, era chamado, e vida que segue, tudo bem numa boa. Tal cegueira produziu deformações muito mais graves que escalar um infeliz chamado Evanílson. Graças à babação generalizada por Wanderley Luxemburgo, foi possível escamotear um dos fatos mais significativos do nosso futebol de fim de século. Jogadores, quanto mais adaptados e consagrados na Europa, menos sensíveis se mostram aos apelos da camisa amarela, ao menos naqueles que remetem ao povão. Assim, Rivaldo e Roberto Carlos se mantiveram na ribalta, à feição de ícones intocáveis. Ou isso é assimilado por força das circunstâncias, ou dizer que o futebol deve ser respeitado em nome da sua presença na cultura nacional é coisa blasé, afinal de contas tudo que lembra povo é ruim.

O Armando avisou

Luxemburgo era, nos primórdios, apenas um aleijão estético. A imprensa verde e amarela recusou-se a estabelecer um vínculo entre sua doentia predileção pelo ridículo – só possível graças aos holofotes, é bom lembrar – e a enorme facilidade que encontrou para vender sua mamulenga imagem de picareta caipira embalada pelo invólucro de consultor modernoso capaz de juntar platéias abestalhadas compostas por executivos de multinacionais. Os motivos para tanto estão aí mesmo: a impunidade nacional nos obrigou a desativar sentimentos, comichões subjetivos e demais instintos de conservação do nosso aparelho de pensar. É proibido desconfiar de quem quer que seja porque adotamos para o dia-a-dia um pressuposto do Direito que deveria ser sacado apenas na rotina das cortes afins: até prova em contrário, todos são inocentes. Ótimo. Desde que os facínoras não seguissem soltos, a repicar o debochado e cínico bordão do ninguém-conseguiu-provar-nada-contra-mim.

Prerrogativas constitucionais foram assim adaptadas aos ecossistemas onde evoluem Quércias, Malufs, Pittas e Caccciolas. O juiz Lalau abusou da tara pelos carrões. Luxemburgo deu todas as bandeiras desse mundo, mas seu terno e seu rolex de ouro enganaram a mídia direitinho, apesar de serem bem coisas de mafioso.

Houve exceções: o veteraníssimo Armando Nogueira foi um dos pouquíssimos a sondá-lo pelas suas pegadas de cafajeste desde o começo. Seu estilo fidalgo já não deve fazer muito efeito, porém. Não seja por isso. Renato Maurício Prado, com seu jeitão irreverente, não vacilou em pedir sua cabeça. Desconfiar é preciso, rezam os manuais de jornalismo. Ainda mais no futebol de Eurico Miranda e Ricardo Teixeira.

(*) Médico, editorialista e colunista político da Folha do Povo, em Campo Grande, MS

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