Luís Edgar de Andrade
"Para entrar no reino de Freud, basta uma ficha de telefone e paciência. Depois de procurar no Rio inteiro, localizei em frente à minha casa a psicanalista menos cara da cidade." Assim começava a primeira reportagem de uma série de dez, publicadas em página inteira, 31 anos atrás, no jornal Última Hora, do Rio, sob o título "Psicanálise, remédio ou vício?", com a qual ganhei em 1969 o Prêmio Esso Nacional de Jornalismo. Foi a primeira vez em que se discutiu o assunto na imprensa brasileira.
Tinha perdido o emprego havia mais de seis meses, depois de passar o ano de 1968 no Vietnam como correspondente de guerra. No dia em que o dinheiro acabou, eu caminhava na areia da praia, de cabeça baixa, entre o Leblon e o Arpoador, sem saber o que fazer, quando alguém me fez sinal com a mão à beira-mar. Era o jornalista Samuel Wainer, fundador da Última Hora. Ele estava sentado no chão, sozinho, de calção azul. Convidou-me para voltar à ativa no dia seguinte. Tinha uma pauta à minha disposição. Seria uma reportagem de denúncia. O título em oito colunas já estava na sua cabeça: "Um mergulho no submundo da psicanálise no Rio de Janeiro".
Achei que, para investigar o comportamento dos analistas cariocas, eu precisava antes de mais nada me analisar. Apesar de sua birra contra os terapeutas, Samuel concordou em me pagar três meses de tratamento. Naquele tempo, eles se dividiam em três correntes no Rio: os freudianos, os junguianos e os culturalistas. Tentei marcar hora com um representante de cada grupo. No caso, a freudiana Inês Besouchet, o junguiano Carlos Byngton e o culturalista Hórus Vital Brasil. Inês e Byngton estavam muito ocupados. Hórus foi o primeiro a me atender. Como não tinha horário disponível, indicou-me uma jovem analista do seu grupo, a doutora Roxana Galli de Freitas. Deu-se a primeira coincidência: o consultório dela, na Ataúlfo de Paiva, ficava bem em frente à minha janela. Era só atravessar a rua.
Quando a moça trancou a porta a chave, com um sorriso, já me senti ameaçado. E, agora, Luís? Nenhum quadro na parede. Nem mesmo o retrato de Freud. Em vez do divã, duas poltronas em diagonal, separadas por uma mesinha. Os amigos me diziam que os analistas não sorriem, usam óculos e não fazem perguntas. Ela, no entanto, mostrava os dentes, tinha olhos bonitos e queria saber minha idade. O jeito foi narrar, tim-tim por tim-tim, os meus antecedentes. Só não disse que estava fazendo uma reportagem.
O gravador comprado no Japão entrou em cena daí a dois dias. Em vez de falar, pus uma gravação para ela ouvir. Era uma conversa com a namorada, dentro do carro, uma noite, na Barra da Tijuca. Roxana interpretou que eu estava com dificuldade de falar. Nada disso. Só queria mostrar que a moça em questão era mesmo complicada. Na vez seguinte anunciei que ia gravar a sessão. Se no tempo de Freud já houvesse gravador, ele o teria incorporado ao tratamento. A analista não se opôs. Em casa, ao ouvir a fita, achei que, de fato, a gravação fornece à análise um rendimento extra. Quando se escuta pela segunda vez o que se disse, a gente descobre na fala aspectos novos, que na hora não se percebeu. Só aí me dei conta de que havia da minha parte uma atitude gozativa.
Entre uma sessão e outra, eu trabalhava, sem parar, na reportagem. Eram conversas com homens e mulheres que estavam fazendo análise. Mais de 50 entrevistas. De tanto usar o gravador, ele enguiçou ou, melhor, neurotizou-se. Uma tarde, apareci no consultório de mãos abanando. Esperei que a doutora se regozijasse com a ausência do gravador. Não tocou, porém, no assunto. Tentei, então, outras experiências. Passei uma hora inteira a ler cartas recebidas em Saigon. Achou, de novo, que eu estava com dificuldade de falar.
Frase antiga
Passaram-se sete sessões antes que eu levasse o primeiro sonho para ser interpretado. No sonho eu tomava banho, debaixo do chuveiro, no meio da rua, diante de um açougue. Os açougueiros circulavam, à minha frente, de faca na mão, com o avental sujo de sangue. Roxana viu no sonho o meu sentimento interior diante da análise. Estava nu e descoberto na sua frente. Descobri nesse momento que a análise era um açougue, onde minha carne seria cortada até a alma – o que dói muito.
Quando a secretária do doutor Byngton me telefonou oferecendo hora, com um mês de atraso, eu já o havia esquecido. Seu consultório também era no Leblon. Com ele fui franco e direto. Mencionei logo a reportagem e a doutora Roxana. Recebi em troca um conselho: "Você está se enrolando muito com essa mistura de trabalho e tratamento. Análise é abertura total. Vá hoje mesmo à doutora Roxana e diga que esteve comigo". Ela reagiu bem: "Ou se entra na análise rastejando à procura de auxílio ou se entra de pé". Eu imaginava, até aí, que estivesse brincando de análise. Mas, de repente, na décima sessão,
depois de rir um pouco, diante da cara impassível da analista, me engasguei sem mais nem menos, as palavras me fugiram e se deu o nó na garganta. Senti-me em plena engrenagem. Tinha caído na armadilha de Freud.
Em três meses o trabalho ficou pronto. Não foi a reportagem de denúncia que Samuel esperava. Muito ao contrário. Ele, porém, não mudou uma vírgula.A análise é que não me largou mais. Foi a reportagem mais perigosa que já fiz em toda a vida, apesar das guerras e revoluções que eu cobri. Para usar a velha linguagem dos vietcongs, a análise é um ataque cerrado às zonas ainda não libertadas de nosso Vietnam interior. Hoje, quando me lembro daquele dia remoto, nas areias de Ipanema, em que Samuel me chamou, por acaso, com a mão estendida, uma frase antiga de Graham Greene me vem à mente: "Há um momento em nossas vidas em que, de repente, uma porta se abre e deixa entrar o futuro".
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