na postura das fábricas. Alguns até torcem por essa ou aquela marca, como se torce para um time de futebol.
Se eles pensam como o fabricante (em vez de pensar como o leitor), como fica a ética do jornalismo?
A postura das empresas jornalísticas, nesse caso, é importante. Há aquelas que estimulam essa "corrupção branca" e até inibem um comportamento ético de seus jornalistas, para poder mendigar suas parcas verbas de publicidade. Isso não ocorre, contudo, na maioria das grandes publicações. Ao contrário, parece que algumas empresas até esperam matérias críticas, pois entendem que os anúncios virão se o jornal ou revista tiver credibilidade e alcance. Mas falham, eventualmente, no recrutamento ou na escolha dos profissionais. Partem do princípio – parcialmente equivocado – de que "caderno ou revista de automóvel tem que ser comandado por quem entende de automóvel".
Acontece que o "jornalista técnico" é, na maior parte dos casos, um profissional cuja grande aspiração, na juventude, era ser piloto de testes ou de corrida. A imprensa, para eles, surge apenas como uma terceira opção, sem aquelas angústias quanto à verdade, à ética, à qualidade do texto, comuns a todo adolescente que sonha em ser jornalista. Quase sempre é uma situação provocada pela própria empresa, que procura "técnicos", ou uma oportunidade de continuar perto de sua paixão – o carro. São profissionais competentes (enquanto técnicos) e honestos, pelos seus padrões (o que não elimina o fato de haver um ou outro corrupto no grupo). Não se deixam iludir nem corromper por pequenas mordomias. Mas estão "ideologicamente" afinados com as fábricas. E, aí, é que as viagens têm, do ponto de vista das fábricas e das assessorias de imprensa, seu "resultado ótimo"; e, do ponto de vista do jornalismo, seu resultado mais nocivo.
As viagens criam uma cumplicidade entre jornalistas e as montadoras. Eles passam a agir como divulgadores de produto. Como cúmplices, até ouvem confidências dos verdadeiros divulgadores, os chamados assessores de imprensa. Nesse ponto, caso tenham acesso a uma informação confidencial – como poderia muito bem ser o caso dos cintos de segurança do Corsa da General Motors – estão convencidos, convencidos mesmo, de que a divulgação dessa notícia seria um erro, provocaria uma insegurança prejudicial.
Matéria “monomarca”
A discussão sobre aceitar ou não viagens é um pouco estéril. Afinal, nem todas as empresas têm condições de bancar o deslocamento de seus profissionais para eventos que, afinal, geram bom material jornalístico, além de aprimorar os conhecimentos dos repórteres. As publicações mais ricas levariam muita vantagem se, de repente, baixasse na imprensa algum moralismo de Polichinelo. Em 14 anos como diretor de Quatro Rodas, participei quatro vezes dessas viagens, uma de cada fábrica (era duro fazer revista de automóvel, com só quatro fábricas e uns oito modelos). A postura da empresa, na época, era uma espécie de noblesse oblige – era bom ir, mas sempre ficava claro que não seria publicada nenhuma matéria tipo "monomarca". Sempre voltava escandalizado com o comportamento de alguns colegas, mas, para compensar, surpreso com o a postura profissional e ética de muitos outros.
A solução pode estar na escolha dos profissionais certos. Recentemente, participei de discussão, em uma grande editora, a respeito de eventual projeto para uma revista sobre automóveis. Fui enfático nesse ponto: o diretor de redação deve vir da área de geral. Deve estar preocupado com a ética, a qualidade, o texto, as necessidades do leitor.
Os técnicos, como oficiais de intendência ou oficiais médicos em um exército, são indispensáveis. Mas não devem comandar a batalha.
(*) Jornalista, ex-diretor da de Quatro Rodas, fez parte das equipes pioneiras da revista Realidade e do Jornal da da Tarde
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