"A natureza traiçoeira das imagens", copyright Valor Econômico, fim de semana de 13 a 15 /10/00
"Numa favela de Diadema, policiais agridem um rapaz negro com tapas, empurrões, pontapés e palavrões. A certa altura, ouve-se o estouro do cassetete batendo em seu crânio; logo depois, ouve-se também o estampido seco de uma arma semi- automática disparada fora do alcance da câmera.
Quando milhões de telespectadores assistiram a essas cenas no Jornal Nacional de 31 de março de 1997, ninguém duvidou da sua veracidade nem vacilou na identificação das vítimas e dos culpados. Todo mundo sabia da truculência da polícia preferencialmente contra negros e pobres. A novidade era que as imagens transformavam os telespectadores de coniventes em testemunhas oculares de uma história tenebrosa.
A indignação da opinião pública deu respaldo para que as investigações avançassem. Mas o que se apresentava como verdade inquestionável para milhões de telespectadores era apenas uma das peças de um longo processo, que, apesar de não inteiramente concluído, já inocentou os inocentes e condenou os responsáveis pelos crimes.
O caso da Favela Naval – Polícia contra o Povo (Editora Contexto, 240 págs., R$ 29,00), escrito a quatro mãos pelo promotor de Justiça José Carlos Blat e pelo jornalista Sérgio Saraiva, é um relato bem escrito e muito bem documentado sobre a história que teve início com a morte de Mário José Josino, de 30 anos, conferente, negro, ocorrida em 7 de março de 1997 durante um bloqueio realizado por policiais militares na Favela Naval, em Diadema. Em suas 240 páginas, o livro incursiona pelos bastidores da truculência cotidiana com que a sociedade brasileira trata negros e pobres.
Essa truculência, concentrada no vídeo de sete minutos que mostrava o confronto entre a polícia e cidadãos comuns na Favela Naval, tornou-se insuportável a ponto de tirar da letargia a sociedade civil e as autoridades, que prometeram repensar o modelo e a forma de atuação das polícias, assim como da investigação dos crimes cometidos por ela.
Foram alguns dias de indignação pública, revolta, formulação de propostas e promessas contra a violência e a corrupção. Aos poucos, a revolta foi arrefecendo. Só não se dissipou completamente por causa da dedicação e da atitude esperançosa de pessoas como Jefferson, amigo de Josino, que se manteve firme na decisão de denunciar os crimes, e do promotor José Carlos Blat, que se empenhou em colocar as imagens a favor das vítimas.
Caso à parte
Ao revelar os mecanismos que levam à impunidade dos crimes cometidos por policiais, o livro faz pensar sobre a superficialidade e o caráter efêmero das reações despertadas pelos flagrantes de violência volta e meia veiculados pela televisão em comparação com a consistência e a sofisticação dos procedimentos utilizados em favor da impunidade e da defesa do corporativismo policial.
Nas entrelinhas, o livro mostra que a verdade do noticiário pode não ser tão evidente como parece e que as imagens, ao contrário do que diz o senso comum, não falam por si mesmas. Exemplo disso é a recente disputa em torno de quem atirou primeiro no conflito entre policiais militares e trabalhadores sem-terra em Eldorado do Carajás, que resultou na morte de 19 sem-terra – a partir das mesmas imagens, o legista Badan Palhares e o foneticista Ricardo Molina chegaram a conclusões opostas.
O caso da Favela Naval é uma exceção nesse imenso universo de crimes que permanecem sem solução. Josino foi um dos 5.295 civis mortos pela PM paulista entre 1990 e 1997, numa média de mais de duas mortes por dia, que levaram a inquéritos em sua maioria arquivados.
A televisão, que tanto persegue a realidade nos chamados ‘reality shows’, vez ou outra é atropelada pela brutalidade inimitável do real. Quando isso acontece, fica nítida para o telespectador a irredutibilidade do real aos limites de uma tela de TV. O Caso da Favela Naval mostra que a realidade tem nuances que a própria realidade desconhece."
Armazém Literário – texto anterior