Fabiano Golgo, de Praga
"O que manteve Milosevic no poder por tantos anos foi a TV." A afirmação é de Milorad Marjanovitch, o novo "homem da mídia" designado pela Oposição Democrática da Sérvia, a coalizão de Vojislav Kostunica que derrubou o regime autocrático do chamado "Açougueiro dos Balcãs". Marjanovitch não diz nada que seja novo para a maioria dos sérvios esclarecidos que assistiram ao horror da manipulação exercida pelo bando de Milosevic desde 1987. Os piores momentos desse esquema aconteceram depois que a Eslovênia e a Croácia resolveram se livrar do tradicional complexo de superioridade sérvia – que eles experimentaram sob o ditador sérvio Tito por quatro décadas de Iugoslávia – e declarar independência.
Ao ver que a Bósnia seguiria o mesmo rumo, Milosevic inflamou os ânimos de sua população com uma série de "documentários" que "provavam" a existência de um projeto de extermínio dos sérvios pelos seus próprios vizinhos. A TV sob seu controle se dava ao requinte de mostrar papéis onde apareciam planejamentos completos, passo a passo, do assassínio de determinadas famílias, com nome e endereço. Claro que os sérvios ficaram alarmados com a perspectiva de seus irmãos étnicos virem a ser alvo de croatas e eslovenos. Claro que os indivíduos apontados em cada "documentário" imediatamente eram avisados e entravam em pânico, se entricheirando em suas casas de espingarda na mão à espera do tal vizinho (também descrito com nome e endereço) que viria para matá-lo e estuprar sua esposa, seviciar seus filhos e depois tomar sua casa. Outros se precaviam e avançavam rumo à casa do vizinho em questão e tratavam de eliminá-lo "em autodefesa".
Muitos resolveram que, se a intenção desses vizinhos ingratos, que não se lembravam dos inúmeros bons momentos que passaram juntos ao longo dos anos (os eslavos são tão comunitários quanto os latinos), era de fazer todas aquelas barbaridades com sua família, então que recebessem o mesmo. Isso eu ouvi de um sem-número de pessoas que honestamente achavam que seus vizinhos tinham realmente a intenção de praticar todos aqueles absurdos ditos na TV.
Moleira intocável
Milosevic fez com que a RTS (Rádio e Televisão Sérvia) virasse uma emissora com apenas dois filmes diários e o resto debates, programas de entrevistas, documentários e noticiários. Os filmes eram daqueles dos tempos comunistas, invariavelmente sérvios, evidenciando a superioridade deles e seus feitos militares (já altamente "adaptados" ao conceito titoísta de história). O resto era recheado (ou melhor, entupido) de gente provando as tais teorias paranóicas. Casas pegando fogo atrás de um repórter dizendo que ali dentro jazia uma família sérvia assassinada por seus vizinhos muçulmanos eram mais que rotina. Obviamente essas casas não ficavam na Bósnia, mas no faz-de-conta providenciado pela tropa de produção televisiva de Milosevic.
De casas verdadeiras de lugares afastados (muitas em Kosovo, como mostrou recentemente um documentário – este sério – da ZDF alemã) a fachadas de cenário de filmes e novelas, a RTS usou e abusou do artifício. Corpos de bósnios muçulmanos assassinados e seviciados por sérvios foram desavergonhadamente usados para ilustrar imagens de "sérvios" assassinados e seviciados. E não havia jeito de alguém expor a farsa, mesmo que tivesse em mãos as provas, pois a TV sérvia estava sob total controle dos capangas do governo. A RTS é a única TV que atinge todo o território nacional e, quando começaram a surgir emissoras independentes e privadas Milosevic dava um jeito de passar uma lei – em seu parlamento-marionete – que lhe possibilitasse fechá-las por questões de segurança nacional, ou "por mentir à população", ou por "desrespeitar autoridades", ou por "promover o ódio étnico" (esta não é uma piada, mas sim o velho artifício aprendido com os soviéticos de apontar nos outros exatamente o que o acusador faz).
Aos poucos Milosevic "evoluiu" para a aplicação de multas tão altas que forçavam o veículo a fechar as portas. Processo idêntico passaram as rádios. Os jornais foram os mais tolerados, não apenas porque era difícil achar um que ousasse tocar na moleira sérvia do orgulho nacionalista, mas também porque apenas uma quantidade ínfima de cidadãos consome jornais – como, aliás, no mundo inteiro.
História "adaptada"
Outra coisa importante de ressaltar é que esse estratagema maquiavélico de propagar teorias paranóicas funcionou por causa da história iugoslava. Qualquer um que tenha visitado os Balcãs e conversado com os locais deve ter encontrado meia dúzia de teorias de conspiração em relação a quase todas as "versões oficiais". Nos últimos dois anos eu ouvi – só para citar as que são ditas por várias pessoas sem relação entre si: as versões "populares" – que o papa e Boris Yeltsin na verdade são movidos a uma droga descoberta pela Nasa (?!), pois tiveram morte cerebral há muito tempo. Eles teriam dificuldade em falar porque, na verdade, são imitadores de suas vozes que falam através de alto-falantes instalados nas bocas dos defuntos ambulantes.
Outra bem difundida é a de que Ron Reagan Jr., em vingança por ter seu pai lhe virado as costas por ser gay – e também à epidemia de Aids dos anos 80 – injetou o vírus no ex-presidente. Daí seu desaparecimento forçado pela mulher, Nancy, que não quer que o mundo veja o estado do marido. Isso não é conversa de gente sem cultura, nem mesmo artigo de jornal sensacionalista. São histórias faladas e acreditadas. Só para ilustrar, ambas me foram contadas tanto por Ivana Ilic, professora de Comércio Internacional da Universidade de Zagreb, como pelo matemático do instituto de pesquisas da faculdade de Belgrado Pedja Dragulic.
Para não mencionar outros tantos. Como se explica esse fenômeno? Tito. O marechal que lutou de pés descalços contra os nazistas (e ganhou) conseguiu unir os povos de sua Iugoslávia usando o medo. Medo dos soviéticos, dos húngaros, dos turcos, dos austríacos. Ele era dado a longas elaborações fantasiosas baseadas numa história "adaptada" que descia bem nas mentes campesinas e menos iluminadas. Com os anos foram entrando para a memória nacional como fatos. E o populacho, como geralmente acontece, imita seus líderes (lembrem que Tito era amado pelas massas). Cada um passou a ter suas próprias versões dos fatos – e hoje é algo gritante. Os menos atingidos pela tendência foram os eslovenos, que têm língua diferente de sérvios e croatas e cultura muito voltada à Áustria.
Aos descendentes, os privilégios
Para deixar claros os ingredientes desse bolo explosivo que são a antiga e a atual Iugoslávia, vale explicar que os povos que a constituíam, depois da Segunda Guerra, eram eslovenos, croatas, sérvios, macedônios (não confundir com aqueles dos tempos gregos nos livros de história, mas esse já é outro capítulo), mais as minorias albanesas, húngaras, voivodinas, ciganas, romenas e outras etnias de população pequena, como rutenianos e mesmo eslovacos.
O croata fala uma língua muito parecida com a dos sérvios, daí chamar-se servo-croata, para desgosto de ambos, que preferem insistir que têm idiomas completamente diferentes. A "prova" disso seria a diferença entre dúzias de palavras – o mesmo que considerar povos diferentes os gaúchos, que dizem guisado, e os cariocas, que preferem carne moída. Ou ainda cacetinho e pão francês. Sérvios, porém, escrevem em alfabeto cirílico, como os irmãos eslavos da Rússia, enquanto croatas usam nossos alfabeto.
Os bósnios, ao contrário do que muita gente pensa, não passam de sérvios ou croatas. Os tais "muçulmanos" na verdade são sérvios ou croatas étnicos que, no tempo em que os turcos otomanos mandavam na região, séculos atrás, se converteram para garantir ou adquirir privilégios. E é por isso que na Bósnia a população muçulmana perfaz (ou perfazia, antes dos campos de concentração e do assassinato a granel promovido por sérvios e croatas) a maioria da elite intelectual e econômica da república. Por quê? Porque seus antepassados eram exatamente isso: professores, advogados, médicos etc. que, para não perder posições, se converteram à religião dos donos da hora. É claro que há uma tendência de as classes privilegiadas passarem isso aos descendentes.
Nu na internet
E parte do ódio dos sérvios contra os bósnios muçulmanos tem a ver com o credo geral de que eles são descendentes dos "vendidos", enquanto hordas de sérvios foram torturadas e assassinadas sem dar o braço a torcer – uma especialidade nacional. Diga-se de passagem, para aqueles que secretamente têm medo dos muçulmanos, impulsionados pelas imagens de terrorismo e fundamentalismo alimentados pela mídia descontextualizada que nos serve, os bósnios só podem ser considerados muçulmanos por se casarem em mesquitas, em vez de igrejas, além de alguns poucos outros costumes, mais por tradição que por crença. As mulheres não cobrem o corpo, os homens não se ajoelham várias vezes ao dia em direção a Meca. É meramente um hábito social. Geralmente falam em Deus, não Alá.
Sarajevo, por causa dos bósnios muçulmanos, era uma cidade cosmopolita, cheia de cultura e vida intelectual, mesmo que perdida em meio a montanhas dos inóspitos Balcãs. Foi destruída pela fúria inflamada por Milosevic através da TV e das rádios, uníssonas na propagação de suas histórias inventadas sobre o projeto de extermínio contra os sérvios.
Agora, a aventura sanguinária acabou. É que principalmente a população jovem da Sérvia tem a internet e outros meios para lhes alargarem a perspectiva das coisas. Então, não compram os simplismos infantilóides que a mídia de Milosevic distribuía. Com eles, parte da população que se deu conta dos buracos nas historietas contadas olhou em volta e viu não o paraíso prometido há anos por essa mídia, mas um verdadeiro filme de horror que um país inteiro vivia. A hipocrisia e a mentira foram desvendadas pela realidade. Ainda tem muita gente que acredita naqueles contos de fada. Mas agora é minoria. O resto não acredita mais em fábulas. O rei finalmente ficou nu.
Nota do OI: No Leia também, abaixo, links para 18 artigos de Fabiano Golgo – jornalista gaúcho de 31 anos que exerce a profissão em Praga – publicados desde abril de 1999 no Observatório da Imprensa, retratando o passado e o presente da mídia nos países do antigo bloco soviético.
Marinilda Carvalho
Dois pequenos comentários sobre o levante da Iugoslávia:
1) Foi indescritível ver uma revolução enquanto ocorria. CNN e BBC passaram 24 horas mostrando os acontecimentos em Belgrado, com entradas diretas. (A BBC, menos. Por um azar daqueles, o repórter da emissora britânica estava em Montenegro, onde nada ocorria). Mas as duas entenderam a importância histórica dos fatos que se desenrolavam e dedicaram esforços totais à cobertura. Foi lindo escutar ao vivo pela CNN a voz do novo presidente, Kostunica (pronuncia-se Costunitza), das cinzas da RTS, que Milosevic controlava em pensamentos, palavras e obras, dizendo que a TV estatal de agora em diante abrigará todas as vozes, mesmo a dos partidos radicais. "Instituições públicas não pertencem a partidos." Bonita lição até para governos ditos democráticos, que ousam vetar entrevistas de líderes oposicionistas na TV pública.
2) Nossa TV, entretanto, falhou. A Globo News mostrou-se pouco sensível e não deu o peso devido ao episódio, noticiando os dramáticos acontecimentos burocraticamente, na programação normal. Depois falam que a mídia americana é autocentrada. O que dizer da brasileira? Por que o assinante não viu aquelas cenas ao vivo, já que a emissora tem os direitos da CNN? Porque a Europa é muito longe? Porque Belgrado não é Paris?
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