Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Abuso, preconceito e inverdades

VEJA vs. UNIÃO VEGETAL

Flamínio Araripe (*)

A revista Veja (edição 1666), na reportagem "Barato Legal", de Ricardo Galhardo, joga no mesmo saco as pessoas que traficam ou fazem uso ritual do chá Hoasca em contexto religioso, tachado como droga e ofensivo à saúde. Preconceito, arrogância e desinformação são marcas da matéria, que gerou como resposta nota paga da União do Vegetal, publicada do jornal O Globo, dia 13 de setembro, e uma enxurrada de cartas de protesto à Redação.

Que serviço presta à sociedade esse tipo de agressão a pessoas pacíficas, que procuram seguir com suas famílias uma religião que tanto tem trazido o bem às nossas vidas, achincalhada como "droga"?

Esta atitude da Veja demonstra a necessidade de formação ética dos responsáveis pelas acusações inconseqüentes, pelo desrespeito à verdade das informações. A incapacidade de compreender o fenômeno da espiritualidade e da religião, pelo tom de deboche adotado na reportagem e edição, evidencia o despreparo para o exercício do jornalismo no limiar do século 21.

Em nome de que deve ser tolerado assacar agressões contra direitos assegurados pela Constituição? Muita má-fé na atitude de quem assina uma reportagem deste tipo e sai com uma caricatura, fruto do que conseguiu apurar em meio às mentiras que pregou às pessoas que lhe deram informações com honestidade. Foi oferecido o outro lado para diferenciar uma instituição respeitável da banalização delinqüente em tom de denúncia, mas acabou sendo feita a opção pelo desprezo da verdade. Temos uma identidade de culto diferente mas cristão, e nos damos a respeito.

(*) Jornalista, sócio da União do Vegetal desde 1980

NOTA AO PÚBLICO E ÀS AUTORIDADES

"O Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV), instituição religiosa de fundamentação cristã, fundada há 30 anos por José Gabriel da Costa, com sede geral em Brasília e reconhecida pelo governo como de utilidade pública federal, sente-se no dever de esclarecer afirmações inverídicas que lhe faz a revista Veja, em matéria da edição desta semana, sob o título "O Barato Legal".

1. A revista afirma que o chá Hoasca (Ayahuasca), utilizado no ritual religioso da UDV, "é uma droga como outra qualquer", mas não respalda sua afirmação em nenhum protocolo científico. Diz que, "se combinada com outras substâncias, é capaz de provocar morte súbita". A afirmação é leviana: água mineral combinada com formicida ou estricnina, também provoca morte súbita.

2. O uso religioso do chá Hoasca está respaldado por duas resoluções do extinto Conselho Federal de Entorpecentes (Confen), cujas funções foram absorvidas há dois anos pela Secretaria Nacional Antidrogas (Senad). Essas resoluções, aprovadas por unanimidade, datam de 1986 e 1992 e resultam de pesquisas de dois anos, feitas por comissões interdisciplinares instituídas pelo Ministério da Justiça, que atestaram o caráter benéfico do trabalho religioso da UDV.

3. Veja afirma que o chá está sendo vendido e consumido fora dos rituais religiosos. Omite que essa denúncia é da própria UDV, que a fez ao Confen há 10 anos, pedindo providências contra a comercialização.

4. Entre 1991 e 1993, a Universidade Federal de São Paulo (antiga Escola Paulista de Medicina), Universidade de Campinas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Universidade do Amazonas, Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas (INPA), Universidade da Califórnia, Universidade de Miami, Universidade do Novo México e Universidade de Kuopio (Finlândia), por iniciativa do Departamento Médico-Científico da UDV, empreenderam pesquisa cujos resultados preliminares constatam que o chá Hoasca é inofensivo à saúde. A pesquisa está publicada em duas importantes revistas científicas americanas: Psychopharmacology, em texto assinado por Jace Callaway (PhD), e The Journal of Nervous and Mental Disease", em texto de Charles Grobb (PhD).

5. A avaliação psiquiátrica conduzida pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, Centro de Referência da Organização Mundial da Saúde, não encontrou entre os sócios pesquisados da UDV casos de dependência, abstinência, tolerância, abuso ou perda social pelo uso da Hoasca, aspectos presentes em usuários de drogas proscritas em nossa legislação.

6. O psiquiatra Dartiu da Silveira, citado por Veja, desmentiu em carta à Senad as declarações que lhe são atribuídas, dizendo-se "perplexo" com a reportagem. A pesquisa que coordena sobre o chá é mencionada por Veja como de iniciativa da Senad. A pesquisa, porém, foi proposta pela UDV à Senad.

7. Com relação à linguagem desrespeitosa, depreciando crenças religiosas ("lorotas" e "bizarrices", segundo Veja) e insultando adeptos ("essa gente") e instituição ("a religião que faz mal à saúde" ou "o barato legal"), lamentamos e lembramos que infringe o artigo 208 do Código Penal, que diz que "escarnecer de alguém publicamente por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso" constitui crime, com pena prevista de um mês a um ano de prisão ou multa.

8. A UDV, que tem cerca de 10 mil sócios, espalhados por uma centena de núcleos em todo o país, perfeitamente integrados ao meio social, atendeu o repórter Ricardo Galhardo, de Veja, prestando-lhe os esclarecimentos solicitados e exibindo-lhe a pesquisa supramencionada. Nenhuma dessas informações foi mencionada na matéria, que optou pela adjetivação injuriosa.

9. Os adeptos da UDV sentem-se agredidos em sua honra e em seus direitos de liberdade religiosa (Constituição Federal, artigo 5º, inciso VI) e prestam estes esclarecimentos em respeito ao público, às autoridades e à verdade.

Edson Lodi Campos Soares, presidente da Diretoria Geral; José Luiz de Oliveira, mestre geral representante."

CARTAS A VEJA

Senhor editor,

Eu, Raimundo Monteiro de Souza, 66 anos de idade, funcionário público federal aposentado, pai de oito filhos (a maioria com curso superior) perfeitamente integrados à sociedade, venho, pelo constrangimento causado pela matéria "O barato total", apresentar meu repúdio à nefasta reportagem que tocou irresponsavelmente na conduta de muitos homens e mulheres de bem e de seus familiares.

Sou um sócio-fundador da instituição e por mais de uma vez ocupei o cargo de autoridade máxima do Centro, sendo um dos responsáveis pelos inúmeros benefícios que a União do Vegetal vem prestando à sociedade brasileira, recuperando pessoas, antes usuárias de drogas, bebidas alcóolicas e outros vícios. Ressalto, ainda, o trabalho que realizamos visando a preservação da família, a manutenção da moral e dos bons costumes e a obediência às leis constituídas em nosso país.

Há 34 anos comungo este Chá Sagrado e me coloco à disposição para qualquer exame de sanidade física ou mental, o que comprova a inofensibilidade do uso do Chá Hoasca, dentro dos padrões exigidos pelo Centro Espirita Beneficente União do Vegetal.

Este Centro, criado pelo mestre José Gabriel da Costa, tem o título de Utilidade Pública Federal, pela comprovação dos serviços prestados à sociedade. É detentor, ainda, de títulos de utilidade pública estaduais e municipais em diversas unidades administrativas do Brasil. Dentro dos princípios de liberdade, com responsabilidade, peço que transmita ao Sr. Ricardo Galhardo a orientação de que seja honesto e fiel às informações que lhe foram prestadas, pois o que lemos, infelizmente, não corresponde à verdade.

Por estas razões, peço ao Divino Mestre Jesus que proporcione clareza na consciência do profissional citado, para exercer com fidelidade sua profissão.

Fraternalmente, Raimundo Monteiro de Souza

Senhor editor,

Meu nome é Raimunda Ferreira da Costa, conhecida por mestre Pequenina. Venho demonstrar meu constrangimento pela reportagem "O Barato legal", pois, sendo uma das fundadoras do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, sinto-me atingida pelos termos inverídicos e debochados ali colocados. Sou viúva do criador desta sociedade, mestre José Gabriel da Costa, de cujas mãos recebi o Chá Hoasca pela primeira vez, em 1959, num seringal na fronteira do Brasil com a Bolívia.

Nessa época, meu marido trabalhava como seringueiro. Foi soldado da borracha, dando sua contribuição, em nome do Brasil, ao esforço dos aliados na guerra contra o nazismo. É com tristeza que vejo a forma irônica com que o repórter trata os "tais povos da floresta". Mas compreendo, ele não tem sequer a noção da luta que foi (e é) viver e criar os filhos dentro de uma floresta, sujeita a todo tipo de perigo.

Nestes 41 anos em que acompanhei, juntamente com meus filhos e netos, o desenvolvimento desta religião, posso afirmar que a União do Vegetal vem orientando seus discípulos no caminho da ordem, da paz e do fiel cumprimento dos deveres, estabelecidos pela nossa Doutrina e pelas leis do país. Tenho 70 anos e até hoje luto pela causa da União do Vegetal. Não havia sido antes agredida de forma tão gratuita, como o fui por essa revista.

Mas, felizmente, além de minha conduta como mãe, avó e cidadã brasileira, conforto-me com os ensino deixados por mestre Gabriel, que nos orienta no sentido de que "podemos ser ofendidos por todos, mas não podemos ofender a ninguém; podemos ser revoltados por todos, mas não podemos revoltar e nem ser revoltados por ninguém". É seguindo seus sábios preceitos que podemos combater o mal com Luz, Paz e Amor. Termino esta mensagem pedindo a Deus que ilumine a consciência do Sr. Ricardo Galhardo, para que pense um pouco mais antes de atingir pessoas que vêm criando com responsabilidade seus filhos e netos e trabalhando pelo engrandecimento espiritual dos seres humanos.

Raimunda Ferreira da Costa, sócia-fundadora do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal

Ao diretor de Redação Tales Alvarenga

Trabalho como jornalista há 23 anos. Durante 20 anos militei em televisão. Angariei algum respeito profissional durante minha atividade como repórter, que iniciei na TV Bandeirantes. Tenho em meu currículo alguns prêmios, entre eles o Wladimir Herzog, do Sindicato de Jornalistas de São Paulo, em conjunto com Teresa Cristina Miranda, por matéria veiculada pela TV Bandeirantes, denunciando a situação precária do sistema penitenciário brasileiro. Fui convidada, ha três anos e meio, para assumir a chefia da Assessoria de Comunicação Social da Secretaria de Turismo da Cidade do Rio de Janeiro, cargo que continuo ocupando. Sou professora universitária, mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Minha dissertação, de 1999, tratou dos reflexos da globalização na estrutura administrativa de uma religião iniciática, com tradição de transmissão oral do conhecimento – a União do Vegetal. Sou casada ha 17 anos e tenho três filhas saudáveis. Não bebo e não fumo. Acredito que este não seja exatamente o perfil de uma drogada. Há 18 anos comungo o Chá Hoasca. Fiquei impressionada com a tendenciosa falta de escrúpulos evidenciada na matéria "O barato legal". É lamentável que o repórter Ricardo Galhardo, e esta revista, se prestem a publicar um texto com tamanho grau de irresponsabilidade e aparente desinformação. Um texto que sugere despreparo ou atender a interesses outros que não a legítima investigação jornalística. Faltou honestidade profissional, qualidade de pesquisa, nível cultural compatível para com o tema abordado e educação básica no trato com questões de natureza antropológica e religiosa.

O repórter Ricardo Galhardo teve acesso a informações suficientes para saber que estava faltando com a verdade referindo-se a uma instituição religiosa como a União de Vegetal com as palavras que escolheu para o texto que assinou. Todas as informações de campo estão incompletas e as referências a usuários famosos, caducas. Lucélia Santos, Ney Matogrosso e Maitê Proença não fazem uso do chá há anos.

Os senhores deveriam prezar a importância do lugar que ocupam na imprensa, e a si próprios. Com certeza, a partir destas premissas, prezariam melhor ao próximo. Não é este o jornalismo que representa a verdadeira essência de nossa profissão.

Cristina Rego Monteiro

Prezados senhores,

Como jornalista, mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas e professora de Teorias da Comunicação e Jornalismo em faculdades baianas, quero comentar a matéria "O barato legal", publicada na edição 1666 de Veja. Já no subtítulo da matéria ("O chá de ayahusca é uma droga como outra qualquer. Mas o governo faz vista grossa") vejo um problema que não deixaria passar nos textos dos meus alunos de primeiro semestre de Jornalismo. Uma afirmação parcial e tendenciosa. Ora, o que significa, na língua portuguesa, a palavra droga? Segundo o Aurélio, droga é:

"1. Qualquer substância ou ingrediente que se usa em farmácia ou tinturaria. 2. Medicamento. 3. Medicamento ou substância entorpecente, alucinógena, excitante, etc. (como, por exemplo, a maconha, a cocaína), ingeridos, em geral, com o fito de alterar transitoriamente a personalidade."

É claro que o repórter de Veja usou o terceiro significado da palavra, comparando a ayahusca com a maconha, a cocaína. Ora, um leitor que nunca tenha ouvido falar em ayahusca (a maioria dos brasileiros) ao ler o subtítulo (e nós sabemos que muitos leitores não passam daí) é levado a acreditar que quem usa ayahusca é um drogado. E mais. O governo é conivente. Todos nós sabemos os males que um drogado causa a si mesmo e à sociedade. Assim, logo no subtítulo, TODAS as pessoas que usam o chá, ritualisticamente ou não, são colocadas na mesma categoria: a dos drogados.

Mas os preconceitos não param por aí. O repórter afirma que "servida em forma de chá, ela embala há pelo menos três décadas, as ‘experiências espirituais’ dos seguidores das seitas Santo Daime e União do Vegetal". Aqui vale perguntar: por que as aspas em experiências espirituais? Será que o repórter não sabe que muitos povos – entre eles os incas, muitas tribos da Amazônia e índios norte-americanos – fazem uso de substâncias psico-ativas em seus rituais religiosos? Tudo indica que sabe. Em tendo esta informação, tem conhecimento de que as diferenças culturais e religiosas devem ser respeitadas? Parece que não, pois se respeitasse não usaria as aspas que, nesta situação, demonstram irônica discordância.

Discordar não só é permitido pelas leis brasileiras. É também desejável, pois é assim que se cresce, no exercício da democracia. Mas o respeito é fundamental. O que sempre digo aos meus alunos é que o jornalista é um cidadão como outro qualquer, isto é, tem o direito de ter e defender as suas idéias, mas precisa tomar muito cuidado porque, ao contrário dos outros cidadãos, cujas opiniões não são menos válidas, ele tem acesso aos meios de comunicação e pode ser lido por milhares de pessoas. E o que o leva a crer que sua opinião é mais válida que a de outra pessoa que não escolheu o jornalismo como profissão? Talvez, ainda que sem saber, o que esteja por trás desta atitude seja um pensamento antigo, do século 19, uma corrente de pensamento que é conhecida como Psicologia das Multidões ou das Massas. Para esses pensadores, a massa é desprovida de qualquer senso crítico; é guiada pelos meios de comunicação de massa. Sabemos, os que estudamos teorias da comunicação, que este pensamento é comum até hoje, por incrível que pareça.

Ainda na mesma frase, surge um outro problema. O uso da palavra seita. Qual a diferença entre uma seita e uma religião? Antropologicamente falando, nenhuma! A diferença só se dá no senso comum, onde religião (no Brasil) é a católica, a dominante, e as seitas, ainda segundo o Aurélio, são "doutrinas ou sistemas que divergem da opinião geral (ou seja, a dominante) e são seguidas por muitos". Mas nós sabemos que a palavra seita, no imaginário contemporâneo, está ligada a extremismos, radicalismos (também listados no Aurélio), líderes lunáticos, suicídios em massa. Não se tem notícia de que este tipo de coisa aconteça nas religiões brasileiras que bebem ayauasca. Mas ao chamar de seita, e não de religião, o repórter cria uma associação direta entre elas, além de demonstrar mais uma vez o seu preconceito.

Mais adiante, o repórter diz que cerca de 15 mil pessoas bebem o chá, um número considerável, e cita artistas como Ney Matogrosso, Lucélia Santos e Maitê Proença como pessoas que já fizeram uso da bebida. As pessoas citadas são íntegras, respeitadas e admiradas pela sociedade. Entretanto, o repórter se dirige a elas e aos 15 mil brasileiros como "essa gente", expressão algo pejorativa.

Mais uma vez nota-se a falta de respeito pelo credo alheio quando o repórter afirma: "Essa gente diz que a ayahusca, amarga como o diabo" (o chá é considerado sagrado por mais de 15 mil brasileiros, sendo a comparação com o diabo, no mínimo, desrespeitosa), "permite que se tenha contato com uma dimensão divina e lorotas do gênero". Isso é demais! Alguém anda dizendo por aí que a hóstia ou os textos psicografados por Chico Xavier são "lorotas"?

Não satisfeito, o repórter completa: "Seria bizarrice sem importância não fosse um indicativo de como as coisas funcionam no Brasil". Quer dizer quer o que não é igual, o diferente, é bizarrice?

Como todos nós jornalistas sabemos, ouvir os dois lados numa tentativa de imparcialidade é fundamental. Onde está o outro lado na matéria? Nenhum representante das religiões citadas foi ouvido! Na disciplina que eu ministro, no primeiro semestre do curso, o aluno que comete uma falta tão grave é reprovado. Isso para impedir que o aluno se forme e cometa um erro desses numa publicação de grande alcance; para evitar que um leitor, vendo uma "matéria" como esta, se pergunte: "Em que faculdade este repórter estudou?" , ou ainda: "Como será que ele conseguiu se formar?"

Outros problemas surgem com o decorrer do texto. Existem algumas pesquisas feitas, já concluídas, sobre o uso da ayahusca, que não foram citadas. O repórter preferiu ouvir o resultado parcial de uma pesquisa em andamento. Se o objetivo da matéria era chamar atenção para o uso não-ritualístico, indiscriminado, da ayahusca, o tiro saiu pela culatra, porque o repórter não ressalta a diferença entre usar religiosamente a substância e usar fora do ritual. Uma coisa é beber uma substância psico-ativa para se ligar a Deus (e aqui não vem ao caso se Deus existe ou não; se o chá religa mesmo ou não. O que importa é a crença dessas pessoas; a intenção, o sentimento. As pessoas se reúnem com o objetivo de crescer espiritualmente, de melhorar, de fazer o bem). Outra coisa é ingerir uma substância psico- ativa sem um direcionamento espiritual.

Bem, prezado colega editor, ainda muitas outras considerações seriam possíveis. Elas demonstrariam sem qualquer sombra de dúvida o preconceito exposto na "matéria", mas, por absoluta falta de tempo, vou parar por aqui. Espero que a Veja não permita que "matérias" com esta qualidade sejam publicadas daqui por diante, sob pena de a revista perder credibilidade junto ao público. Coisa que, todos sabem, não tem preço.

Atenciosamente, Thareja Fernandes de Abreu

ASPAS

"O barato legal", por Ricardo Galhardo, copyright Veja nº 1666, 13/9/00

"Existe uma droga legal no país: a ayahuasca, um alucinógeno produzido pela mistura de duas plantas da Amazônia. Servida em forma de chá, ela embala há pelo menos três décadas as ‘experiências espirituais’ dos seguidores das seitas Santo Daime e União do Vegetal. A beberagem é consumida regularmente por cerca de 15.000 pessoas, entre as quais figuraram artistas como o cantor Ney Matogrosso, o compositor Peninha e as atrizes Lucélia Santos e Maitê Proença. Essa gente diz que a ayahuasca, amarga como o diabo, permite que se tenha contato com uma dimensão divina e lorotas do gênero. Seria uma bizarrice sem importância não fosse um indicativo de como as coisas funcionam no Brasil.

Há sinais inequívocos de que a droga começa a ser consumida fora dos rituais do Santo Daime e da União do Vegetal. Em Rio Branco, capital do Acre, qualquer taxista sabe onde consegui-la. A reportagem de Veja constatou: 1 litro do chá sai por 50 reais. É pedir e meia hora depois o produto está nas mãos do cliente. A ayahuasca também é exportada para São Paulo sob o nome vago de "chá medicinal". Informada sobre esses fatos, a Secretaria Nacional Antidrogas encomendou à Universidade Federal de São Paulo um estudo mais detalhado a respeito dos perigos da ayahuasca. Embora ainda não esteja pronto, o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, responsável pela pesquisa, adianta que a bebida de coloração ocre e cheiro nauseabundo tem efeitos semelhantes aos do ácido lisérgico. Pode deflagrar surtos psicóticos e, se combinada com outras substâncias, é capaz de provocar morte súbita. Entra aqui o dado curioso. Independentemente dos resultados do estudo encomendado pelo seu pessoal, o general Alberto Cardoso, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional e secretário nacional antidrogas, afirma: ‘Não proibiremos o uso do chá nos rituais. Religião é religião’.

O cipó mariri e a folha chacrona: a substância produzida pela mistura das duas plantas é alucinógena. Também está sendo consumida fora dos rituais

Dessa frase é possível tirar duas conclusões: a) o governo tem o hábito de solicitar pesquisas para depois jogá-las no lixo; b) se um brasileiro fundar uma religião que utilize em seu ritual maconha, cocaína, ecstasy, LSD ou crack, terá a aprovação do secretário nacional antidrogas. Afinal de contas, ‘religião é religião’. Mas há uma razão subterrânea para a estranha tolerância em relação à ayahuasca. Trata-se de uma substância ‘ecologicamente correta’, já que nasceu no habitat dos tais ‘povos da floresta’. E o lobby ecoxiita em favor do chá amazônico é barulhento. Em abril passado, dois brasileiros que se diziam representantes do Santo Daime foram presos no aeroporto de Madri com 10 litros do chá. Acusação: tráfico de droga. Depois de 53 dias em cana, a polícia os soltou. Os espanhóis não suportaram a chiadeira. Mobilizaram-se pela libertação da dupla os senadores acreanos Marina Silva e Tião Viana, o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, dom Jayme Chemello, o frade dominicano frei Betto e o ex-frei Leonardo Boff. Dai-me, dai-nos, paciência."

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