Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Informação e aparelho psíquico

MÍDIA NO DIVÃ

David Léo Levisky (*)

"A força dessa verdade que o apresentador anuncia impõe, quem sabe até implicitamente, é tal que, conforme já foi visto, pode ocorrer que alguém creia que esteja se dirigindo exclusivamente a ele."

(Tevê – A Transparência Perdida,.Umberto Eco, 1984)

"Pergunta: A TV mostra sexo e violência o tempo todo. É natural que seja assim?

"Resposta: Se eu tivesse um filho com a TV que está aí, ficaria apavorado. A meu ver, faltam idéias novas na televisão. Ela mostra aquilo que é mais fácil e que tem audiência garantida. Mas acho que essa discussão não leva a nada aqui no Brasil. Não é a primeira vez que se discute sexo e violência na TV, e até hoje nada foi feito".

(Marcos Nanini, ator, 9/8/95).

TVs, videogames e computadores fazem parte do cotidiano pós-moderno. O virtual do mundo subjetivo hoje é real não só no mundo interno mas na concretude do imaginário. Namoros eletrônicos, relações sexuais virtuais, canais de TV exclusivos para homossexuais, tudo isto fruto de uma sociedade mais liberal e democrática, co-responsável por perdas e mudanças de critérios considerados estáveis da cultura, como a relação entre o público e o privado.

Fatores como a emancipação feminina, o significado da família, o papel dos pais junto aos filhos, a mentalidade consumista, a banalização da miséria, da violência, do corpo, e a alta tecnologia utilizada principalmente pelos meios de comunicação de massa, estão contribuindo para transformações éticas e sociais.

A mídia, principalmente a eletrônica, associada a poderes econômicos, tem-se distinguido, não só no seu papel de-formadora da opinião pública como na própria estruturação e funcionalidade do aparelho de pensar e da mentalidade social.

Os psicanalistas, por possuirem teorias sobre a estruturação, dinâmica e economia do aparelho psíquico (metapsicologia psicanalítica), têm o dever de oferecer sua contribuição social, fora dos consultórios de psicanálise.

Alertamos para a gravidade dos problemas que estão se originando no comportamento da juventude em conseqüência do mal uso doméstico da TV e pelos abusos cometidos pelas redes de televisão, sistemas de propaganda e marketing. São veiculadas idéias destrutivas em videogames e nas redes de computação, em nome da liberdade de expressão e do abandono do senso de responsabilidade social.

A sociedade necessita se estruturar para exercer certo tipo de reflexão e controle sobre as conseqüências educacionais, éticas e morais que a ausência de critérios na área da comunicação pode gerar. Todos somos co-responsáveis. Deixar o controle exclusivamente na responsabilidade das famílias, no mínimo é omissão.

Há um tipo de publicidade que tende a mecanizar o público, seduzindo, impondo, iludindo, persuadindo, condicionando, para influir no poder de compra do consumidor, fazendo com que ele perca a noção e a seletividade de seus próprios desejos. Esta espécie de indução inconsciente ao consumo, quando incessante e descontrolada pode trazer graves conseqüências à formação da criança. Isto afeta sua capacidade de escolha; o espaço interno se torna controlado pelos estímulos externos e não pelas manifestações autênticas e espontâneas da pessoa.

Esta atitude quixotesca ao expor estas questões tem por objetivo exercer função preventiva frente aos destinos da cultura, cuja relação social é cada vez mais individualista e narcísica.

A campanha hitlerista revelou como a publicidade é capaz de fomentar tendências instintuais profundamente recalcadas e que se manifestam sob determinadas condições, favorecidas pela cultura. Freud demonstrou em vários dos seus trabalhos: El Malestar en la Cultura(1930), Totem y Tabú(1913), Introduccion al Narcisismo(1914), Moisés y la Religion Monoteista(1939), a natureza humana e os destinos de nossas pulsões. Setores da mídia acabam por estimular a realização de desejos até então sublimados ou reprimidos pela cultura. As rápidas transformações estão acarretando perturbações na capacidade subjetiva de discriminação na relação entre o real e a fantasia, entre o episódico e o rotineiro.

A globlização associada aos poderes da mídia e econômicos exercem a maior escravidão praticada sobre a mente humana.

O mau uso da mídia, com sua capacidade deformadora está interferindo negativamente no desenvolvimento das capacidades dialéticas do aparelho psíquico. Suas ações condicionadoras afetam a capacidade de criar, pensar e analisar criticamente, dirigindo continuamente as atividades fantasmáticas conscientes e inconscientes. Induz à fragmentação da relação têmporo-espacial e à prevalência dos estados primitivos da mente. Este estados são caraterizados pela satisfação imediata de desejos, onipotência, predominância de relações de objeto parcial, negação da realidade, estados que favorecem a passagem ao ato, contribuindo para o aumento da violência.

Raquel Soifer(1975), uma das pioneiras da psicanálise infantil na América Latina, foi quem pela primeira vez me alertou para esta questão e seus graves desdobramentos. Todos temos vivência da participação da TV em nossas casas, os prazeres e problemas que criam, e pouco fazemos para equilibrar esta relação. Creio que parte da sociedade age à semelhança do que se vivencia no processo psicanalítico, quando as resistências bloqueiam e atacam a capacidade perceptiva, resultando em comportamento repetitivo, automatizado, distante da capacidade de análise crítica.

Sabe-se que a criança nasce com um potencial biológico, psicológico e social. Seu desenvolvimento depende da qualidade das primeiras relações entre o bebê e seus pais, primeiro núcleo social representativo da sociedade e da cultura. Através de contínuas e sucessivas trocas o mundo subjetivo se constitui. Partindo-se de uma visão hegeliana do conceito de dialética, Ogden(1992) descreve o sujeito dialeticamente constituído e descentrado. Dialética consiste no reconhecer da inseparabilidade dos contraditórios e em descobrir o princípio desta união numa categoria superior (Lalande,1993). Através de movimentos de construção, destruição e reconstrução ocorre o desenvolvimento do aparelho psíquico em seus aspectos cognitivos, afetivos e conativos.

A partir destas relações iniciais, paradoxais e fundamentais, criam-se condições para o desenvolvimento de conceitos como democracia, liberdade, ética e moral(Winnicott, 1989; Levisky, 1995). Este inter-jogo dialético,de equilíbrio instável e transitório, contribui para a edificação dinâmica e progressiva do mundo interno e sua relação com a realidade objetiva, dando origem às ciências, à moral e à religião(Lalande, 1993).

O bebê evolui de um estado de dependência e dirige-se na busca de autonomia. Partindo de um estado mental pouco diferenciado e indiscriminado, organiza progressivamente o self e busca integra as relações corpo-mente. Desenvolve as funções egóicas e superegóicas. A capacidade de pensar caminha do sensório-motor até alcançar a capacidade de abstração conceitual que se realiza na adolescência. Incorpora aspectos do mundo externo, estrutura a linguagem, ordena as fantasias, estabelece seus ideais juntamente com valores sociais, éticos e morais. A capacidade criativa emerge desde o nascimento.

O processo complexo de integração, não-integração e reintegração do aparelho psíquico na busca de estados de equilíbrio, observados do ponto de vista estrutural, dinâmico e econômico, depende da capacidade de continência afetiva e moduladora exercida pelos pais.

A relação intersubjetiva que se estabelece contribui para que a mente do bebê evolua do estado de onipotência narcísica para estados de interação e adaptação ao meio. Este processo se realiza através das provas de realidade, quando doses adequadas de frustração possibilitam o desenvolvimento das capacidades egóicas e superegóicas, estas últimas com funções protetoras e repressivas.

A criança aprende a lidar com as frustrações, a substituir a satisfação imediata de desejos por um processo simbólico e a postergar a ação intermediando o ato de pensar. Este complexo de experiências emocionais e transformações da vida pulsional possibilitam a integração à vida social e cultural.

O brincar, atividade predominantemente neuropsicomotora, dá à criança condições de desenvolvimento de suas habilidades intelectuais. Ajuda-a a elaborar fantasias, discriminar o imaginário do real, aprender a lutar, atacar e se defender. Aprende a transformar pulsões agressivas e amorosas em afetos assimiláveis pela cultura. As artes e os esportes são formas criativas de transformação dos impulsos agressivos e amorosos em atos integrados à cultura. O ato de brincar permite o encontro dos aspectos espontâneos e autênticos do self(Winnicott, 1975). Através destes movimentos a criança descobre e redescobre suas capacidades de comunicação consigo mesma e com o mundo ao seu redor.

"A comunicação forma a essência dos vínculos humanos. O pranto e o esperneio do recém-nascido representam a primeira forma de comunicação e a fonte de todos os motivos morais, já reclama ajuda de quem está lá", (a mãe), na expressão poética de Soifer (1995). Esta situação realça a importância dos primeiros objetos externos para a formação do aparelho psíquico, através da interação com o outro.

A TV utilizada precocemente na vida do bebê como babá eletrônica, graças aos seus estímulos luminosos, visuais, de movimento e sonoro, desempenha forte atração. Esta é totalmente destituída daquilo que é essencial na relação humana: o contato afetivo, a presença física do outro que progressivamente vai sendo incorporado como elemento do mundo interno.

Winnicott (1989) surpreendeu a todos com a afirmação de que não existe um bebê, pois lá onde houver um haverá uma mãe. Trata-se, portanto, de uma relação de interdependência fundamental para a formação e desenvolvimento do aparelho psíquico.

Os processos primitivos de comunicação e de aprendizado na infância dependem desta relação com o objeto real externo e tem por base mecanismos imitativos e outros, como a identificação adesiva e projetiva direcionando o sensório-motor para a representação simbólica da vida afetivo-intelectual.

A mente primitiva evolui na direção do processo secundário através do mundo das representações com seus mecanismos próprios: maior tolerância à frustração, relação de objeto total, capacidade de análise, síntese, etc. Através do brincar, da dramatização, da atividade motora a criança dá vazão às suas fantasias e exercita o lidar com sua imaginação, criatividade, inteligência e afetos, aprendendo através das experiências.

Raquel Soifer (1975) em seu livro A Criança e a TV – uma visão psicanalítica faz uma correlação entre a TV e o estado de sonho. Para a autora em ambos há um fenômeno catártico, visto que ocorre um estado regressivo e emoções recalcadas podem encontrar vias de vazão. Ocorre que durante o estado de sono há uma regressão fisiológica. As funções egóicas ficam reduzidas, sendo um período de repouso para o sistema senso-perceptivo. Durante o sono, o sonhar dá vazão às fantasias emergentes, espontâneas e mobilizadas por áreas em conflito em busca de vias de expressão.

Em relação à TV o processo regressivo é algo distinto e se aproxima de um estado tipo hipnótico. A atenção fica concentrada havendo predomínio de certas áreas senso-perceptivas sobre outras (visão e audição).O telespectador, no caso a criança, permanece longo período imóvel diante do aparelho. Quando maiores não raro estudam ou comem vendo TV, nas posições, as mais estranhas.

Em conseqüência deste estado regressivo há favorecimento do processo primário quando predominam os mecanismos de identificação projetiva. Deve-se lembrar que no caso da TV as fantasias são dirigidas e não espontâneas, diferentemente do que se passa nos estados de sonho. O sonho é um estado mental regressivo fisiológico, necessário para o equilíbrio econômico do psiquismo, o que não ocorre com os estímulos hipnóticos da TV.

A criança além de entrar num estado regressivo estabelece com a TV uma relação de dependência psíquica e motora. Todos nós sabemos da preguiça que sentimos após algum tempo diante do aparelho, bem como das brigas familiares para resolver quem vai mudar de canal ou atender ao telefone que toca na sala. Isto sem falar daqueles que se utilizam da TV para adormecer. Isto significa que a TV induz a estados que se aproximam de estados hipnóticos favorecendo a indução de suas mensagens.

Na atualidade muitas crianças só conhecem brinquedos definidos e com regras estabelecidas e a TV ocupa cada vez mais um espaço fundamental na vida de muitas crianças e adolescentes. Alguns crescem diante dela.

Este uso abusivo e o mau uso da TV interferem negativamente no aparelho psíquico em desenvolvimento. Estas condições geram passividade, dependência, irritabilidade, intolerância, distúrbios de linguagem. A mente é massacrada pelo volume informativo, mormente quando tudo isto se passa na ausência de um adulto.

É fundamental a presença de um adulto que converse com a criança sobre o que ela assiste na TV. Alguém que possa ajudá-la a fazer as discriminações e elaborações necessárias do conteúdo a ser incorporado.

A importância do papel especular da mãe na formação do aparelho psíquico já foi ressaltada por vários autores como Winnicott (1975), Wallon(1945) e Spitz(1983), sendo que muitos pais ou seus substitutos a utilizam na realização de suas funções. Daí a importância de tê-los como interlocutores.

Há estudos (Folha de S.Paulo, 13/08/95) que revelam que a media diária de permanência da criança americana junto à TV é cerca de 4 a 5 horas, geralmente sozinhas, sem dialogar com os pais e com poucas oportunidades para elaborar o conteúdo dos estímulos recebidos. Entre as crianças brasileiras a situação não deve ser muito diferente, se não for pior. Muitas vezes assistem à TV juntamente com seus pais, porém, não raro, a família não se comunica. Cada um está envolvido com o programa e ai daquele que ousar perturbar o clima da novela ou do filme em questão.

Nestas condições a TV deixa de cumprir suas funções de lazer, informação e educação para competir com a autoridade parental. Pais sentem sua autoridade educacional ameaçada em suas próprias casas quando seus valores éticos e morais são contestados pelas idéias veiculadas e manipuladas pela mídia desatenta, ignorante, inescrupulosa ou interessada apenas nos lucros.

Sabe-se que aquilo que se torna público, constante, repetitivo, isento de ponderação crítica e de impunidade adquire valor de verdade, de autoridade e de permissividade. Quando os pais ao menos conversam com os filhos, questionam o que assistem, criam a possibilidade de desenvolvimento do pensamento crítico-analítico. Caso contrário a TV adquire perante os filhos um valor de autoridade alternativa na vida familiar.

A imitação e a repetição fazem parte do processo educacional e de aprendizado. Estão ligadas aos fenômenos de memorização e de funcionamento da rede associativa de idéias.

Há estudos (Folha de S.Paulo, 13/08/95) reveladores dos benefícios adquiridos pelas crianças em idade pré-escolar que assistem programas específicos de TV voltados para a educação. Meia hora por dia são suficientes para favorecer o processo de prontidão para a alfabetização, ampliação do conhecimento e criatividade.

O tempo livre da criança destinado a brincar é ocupado pela atração da telinha mágica, fonte de prazer e pouco estimulante para o seu desenvolvimento proposto pelas Tvs comerciais. Diferentemente, as TVs educativas produzem programas cuidadosamente orientados, voltados para o consumo do aprendizado, da cultura e do lazer.

Ironicamente indago, será que há alguma relação entre o comportamento das crianças, as roupas que querem vestir, os produtos que querem comprar e as patricinhas, xuxas e mauricinhos das TVs? Não se poderia utilisar da mesma metodologia para desenvolver melhorias na qualidade das relações humanas, entenda-se cidadania?

Outro fenômeno presente na relação entre a criança e a TV (videogames, redes de computação)) está no fato de que esta impõe à criança o rítimo lúdico, controla o conteúdo das fantasias conscientes e inconscientes, a vida intelectual e motora. Interfere na atividade lúdica espontânea, estimula um estado de dependência ao aparelho de TV com sua capacidade mágica de apreender a atenção do espectador. Mecanismos psíquicos de identificação projetiva favorecem a automação psíquica (robotização), valoriza o mundo sensorial, como foi bem descrito no livro "O videota – O Homem que aconteceu", de Jerzy Kosinski(1971).

Esta interação unidirecional leva a criança a se tornar submissa às propostas veiculadas pela "telinha", educando-a distante de suas possibilidades criativas, lúdico-motoras, abafando seu senso crítico, prejudicando o desenvolvimento de sua linguagem e do processo de integração afetivo-corporal.

Durante as sessões de psicoterapia ou psicanálise de crianças e adolescentes são evidentes estas influências observadas nos conteúdos dos desenhos, nas dramatizações e associações verbais bem como na maneira como certos pacientes se relacionavam com o analista.Tentam transformar o interlocutor no seu controle remoto, na busca mágica de satisfação imediata dos desejos.

A intensidade e continuidade de informações emitidas pela TV tendem a saturar a mente, impregnando-a, inibindo a capacidade de pensar e de realizar atividades criativas.

A dependência acarretada pela TV pode ser observada através da conduta de pais que precisam mandar a criança sair para brincar, lutam para desligar a TV para estudar ou ir dormir.

Os americanos estão equipando os aparelhos de TV com um microcomputador programado para ligar e desligar o aparelho segundo a orientação dos pais. Já viram que a coisa não funciona, mas no Brasil há deputados defensores deste processo. Esta nova metodologia delega exclusivamente aos pais o poder de selecionar e censurar, mas os jovens descobrem as senhas. Além do que, o número cada vez maior de canais inviabiliza a programação do sistema.

Quais as conseqüências para o imaginário de uma criança que durante o dia, no horário reservado à programação infantil, assiste cenas altamente eróticas como chamada do filme pornográfico que irá passar às 11 da noite? Às 13h ou às 18, em vários canais encontra programas que focalizam a desgraça humana, não como notícia e informação para a reflexão, mas como fonte de satisfação dos aspectos sórdidos, sadomasoquistas de nossas mentes.

É curioso observar o que se passa em relação ao tratamento dado à homossexualidade na TV. Pouco se discute sobre diferentes modalidades de homossexualismo, sua organização ao nível de fantasias inconscientes, a biografia do sujeito, seu sofrimento e as diferentes organizações libidinais. Para aqueles que já estão organizados e cristalizados nesta estrutura a ampla divulgação do seu modo de ser e viver representa um fator de libertação e cooperação. Porém, é preciso levar em conta que muitos adolescentes ao atravessarem a elaboração da bissexualidade na busca de sua identidade sexual, podem passar por experiências homossexuais, sem que isto represente um desvio ou uma opção definitiva de sua identidade. É um período sensível do desenvolvimento e que a TV não tem tratado com o devido cuidado. Há programas na TV que ao invés de elucidar sobre estas questões acaba por promover este modo de ser, como se fosse uma questão de simples opção, confundindo aqueles cujo ego é mais vulnerável.

O autor de novelas Dias Gomes, em entrevista à revista Veja(26/7/95), cujo título foi "Erotismo liberado para menores – A escalada sexual na TV preocupa os pais"afirma que: "as pequenas transgressões que a TV comete são eliminadas por outros mecanismos sociais como a orientação familiar". O que Dias Gomes se esquece é que a TV possui um poder doutrinador e é um modelo de identificação de hábitos, costumes e comportamentos. A família não tem condiçòes de tudo supervisionar e esclarecer, além do que, ela se encontra enfraquecida. Os pais sentem dificuldade em ocupar seus papéis, definir limites e exercer suas funções. Sugiro que devem existir mecanismos sociais e punitivos para contrabalançar as transgressões constantes e cada vez mais ousada na disputa de maior audiência. A autogestão não tem sido suficiente para conter os abusos.

É só entrevistar os orientadores escolares e os pais dos jovens e se ouvirá sobre a preocupação pelo aumento explícito da homossexualidade nesta faixa etária. Será que não há desejos escusos voltados a fomentar fragmentações na sociedade para ampliar áreas do mercado consumidor, em detrimento da cultura e do estabelecimento de um superego protetor. Incorporamos a lei do "vale tudo"?

O abuso de cenas de violência e sexo, banalizando a vida, parece-me distorcer a realidade. No cotidiano da vida real não se vive o impacto de cenas tão violentas. Estima-se que o número de relações sexuais que ocorre durante 24hs no planeta seja de 350 milhões, mas isto faz parte do mundo privativo civilizado, enquanto na TV são dezenas em algumas horas, e de caráter público.

Muitos canais de TVs comerciais revelam despreocupação, descaso ou mesmo intenção de induzir, seduzir e persuadir o telespectador ao consumo de seus produtos materiais ou ideológicos agregados a pressões do poder econômico.

A questão do impacto psicossocial individual e coletivo nem sempre é considarado, principalmente se o resultado for positivo para o bolso dos patrocinadores e para as emissoras. Para que este êxito seja alcançado fomenta-se a ilusão e a liberação de fantasias inconscientes até então recalcadas pela cultura.

O jornal Folha de S.Paulo (3/9/95) retratou a guerra televisiva entre a TV Globo e a Record.Não sabemos quantos são os milhões ou bilhões de dolares que estão envolvidos nesta batalha. Aparentemente tratava-se de uma guerra em defesa de pricípios éticos e morais na TV, contra a decadência dos programas que buscam audiência através do erotismo, da violência e da propaganda inescrupulosa. Dá para acreditar?

Na mesma época formava-se uma grande rede de comunicação globalizando e dominando a informação, a cultura, o laser, o mercado. Trata-se da compra pela Disney Co. da rede de TV americana ABC. O que isto significa para os destinos da humanidade em termos de liberdade de desenvolvimento das mentalidades?

Todos conhecem a guerra entre as emissoras para manter a audiência. Tentam prender o telespectador mobilizando sua curiosidade. É criado um estado de tensão de tal forma que ao término de um programa o próximo já se inicia sem deixar tempo para elaborações do conteúdo anterior. A emissão é onipresente. A pessoa está impactada pelas emoções do tema anterior e em seguida é submetida ao impacto de novas informações e emoções. O processo é feito de modo a que a pessoa fique aderida à TV, sendo necessária atitude ativa se quiser se desvencilhar desta força de atração.

O debate ético sobre o impacto social resultante das questões relacionais entre emissora, produtor, patrocinador, telespectador e a sociedade é deslocado para as famílias: "quem quiser que desligue o aparelho". Em teoria isto pode ser uma verdade, cada um pode exercer seu poder de opção. Na prática, a relação de poder entre telespectador e emissora não é igualitária.

Algumas rádios FM de São Paulo alertaram para os riscos causados pelas "rádios piratas"que interferem nas comunicações de aviões e ambulâncias, e concluem que "só as autoridades não interferem". Será que há interesse em interferir no fluxo da cultura? Em analisar o impacto psicossocial do conteúdo veiculado? É só o lucro e a audiência que contam?

Penso que sim. Ouvi pessoalmente de um alto funcionário de uma rede de TV comercial que "o que importa é faturar", mas se nega a debater as questões do impacto psicossocial das TVs comerciais em público.

Por outro lado, os organismos públicos que regem a ética da comunicação são pouco eficientes no exercício de suas funções, desprovidos de recursos e muitas vêzes envolvidos por desejos escusos nos interesses de grupos poderosos.

Público vem do latim "publicus", cujo significado etmológico é "oficial", originando a expressão publicidade. Publicidade significa: qualidade do que é público; arte de exercer uma ação psicológica sobre o público, com fins comerciais ou políticos. Portanto, ao se tornar público (publicar = espalhar, vulgarizar) a violência e o sexo, e ao se promover a publicidade, se autoriza, se oficializa, tornam-se permissivas novas formas de procedimento. Tendências pulsionais até então recalcadas passam a compor a cultura que vai perdendo seus parâmetros estáveis em conseqência da globalização e dos meios de comunicação de massa.

Miraldi (1994) faz referência a uma pesquisa realizada em Stanford revelando que crianças entre 5 e 14 anos, nos USA, assiste cerca de 300 mil cenas de crimes violentos. Se a propaganda da Coca-Cola e da Xuxa aumentam o poder de vendas, porque este volume de cenas violentas e eróticas não irá causar algum grau de influência no comportamento da criança e dos adolescentes, para não dizer de todos nós?

Vale salientar que a própria psicanálise contribuiu para o aprimoramento da arte da publicidade, como nos esclarece Aida Miraldi (1994) em um artigo denominado "Los ninõs de la Imagem". A psicanalista faz uma retrospectiva histórica e constata que a partir da década de 50 a economia americana necessitava incrementar suas vendas e as soluções vieram a partir de três nomes: Cheskin, Dichter e Eduard Weiss. Os dois últimos, com certeza psicanalistas, que valendo-se das teorias do inconsciente, pré-consciente e consciente e da teoria das pulsões buscaram técnicas de estimulação dos desejos conscientes e recalcados.

Na atualidade a vaidade, o egocentrismo, o sensorial, o imediato, a sedução, o nirvânico, o narcisismo são alguns dos aspectos enfocados pela mídia e pela mentalidade consumista. As contradições ficam ainda maiores quando se sabe do canibalismo chinês durante a revolução comunista (Veja, 22/01/97), do genocídio hitlerista e na Bósnia, da erotização das relações, conforme artigo da revista Veja (26/07/95), e da prostituição infanto-juvenil praticada livremente no Japão (Veja, 13/11/96). O sexo, a irracionalidade, a violência, a criatividade, o poder, a ternura das crianças: "Tudo vende e se vende".

Penso que a sociedade contemporânea vive profunda contradição entre maior liberdade e individualidade versus intensa pressão e força de persuação imposta pela mídia e pelas tendências consumistas. A globalização da sociedade, apoiada no consumo e no capital, se possui aspectos positivos traz questionamentos com a destruição de valores culturais regionais e específicos de cada povo ou nação. Aliás, hoje já se contesta o conceito de nação, pois todos pertencemos a um único planeta e parece que é isto que vale. Mas, qual é o preço que se está pagando e quais as perspectivas destas transformações? O mistério continua. Faz parte da transcendência do existir.

André Green (in Miraldi, 1994) referindo-se ao abuso de cenas eróticas e violentas na mídia salienta que: "Não há porque se assustar, pois esta arte popular não faz mais do que veicular satisfações impossíveis ou proibidas, de um modo barato, inofensivo e até profilático… O caráter massivo desta produção testemunha em favor de nossas necessidades neste terreno". Para este psicanalista há hoje uma aceitação da hostilidade pela cultura mostrando o profundo abismo entre nossa repulsa manifesta social e individual, e a cota de fascinação que tais situações nos despertam.

A meu ver, a banalização do corpo, da destrutividade e do amor faz com que haja um desinvestimento inconsciente do objeto ao qual se está vinculado, de tal forma que o outro torna-se um estanho. Desfaz-se a solidariedade, a colaboração. O outro é vivido como objeto concreto e imediato de satisfação dos desejos agressivos e libidinais, a serem facilmente descartados.

Com a fragmentação temporal acarretada pela velocidade das transformações e da comunicação, onde real e imaginário se confundem, onde passado, presente e futuro se misturam à semelhança dos sonhos e do inconsciente humano, fora do contexto social, histórico e político dos fatos, as atuações se tornam meios cotidianos de descarga.

Lembro que a violência não é apenas um ato físico voltado contra o corpo. Ela está na excessiva excitação que atinge o sistema psíquico, oriunda do mundo externo ou da vida pulsional, e que vem ameaçando a capacidade psíquica do indivíduo de selecionar, elaborar, discriminar, isto é, pensar pensamentos antes de agir, contribuindo para o aumento do "stress"crônico da vida cotidiana, da depressão, das doenças psicossomáticas.

As questões ligadas à natureza humana são complexas. Resto da onipotência juvenil, gostaria eu de acreditar que uma conscientização maior da própria destrutividade pudesse contribuir para que cada um cuidasse um pouco melhor da sua, e que os responsáveis pela comunicação de massa refletissem sobre as conseqüências não apenas econômicas de suas ações, mas das repercussões sobre os indivíduos, a sociedade e a cultura.

Talvez tenha sido Kernberg que se referiu a uma "sexualidade robótica"e Barylco a "automatismo sexual", como relações sem importância e transcendência, voltada apenas para o gozo narcísico, comum nos adolescentes de hoje, como se pode observar no filme Kids.

Qual será o futuro da vida psíquica de crianças e adolescentes submetidos a esta estimulação maciça e precoce? Como será o superego individual e social que está sendo edificado graças à interferência dos meios de comunicação de massa e da globalização da cultura, antes regional agora planetária?

Como psicanalistas, e todos aqueles que de alguma forma lidam com a educação, conhecendo os aspectos contraditórios, antagônicos da mente, as forças destruidoras e construtivas do inconsciente, os meios favorecedores e inibidores das pulsões, não podemos ficar à margem, alienados, observando passivamente, como telespectadores, estas mudanças das quais somos sujeitos e objetos. Temos que oferecer nossa contribuição educacional e social, criar mecanismos de controle e eficiência de participação, para o aprimoramento da cultura e das relações. Caso contrário seremos fagocitados pelas vicissitudes do processo psicossocial vigente na sociedade do imediatismo e do consumo.

(*) Psicanalista didata pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, com especialização na psicanálise de crianças e adolescentes. Coordenador dos encontros "Freud: psicanálise, cultura e judaismo – 100 anos de história" e "Adolescência e violência – conseqüências da realidade brasileira". Conselheiro da Federação Latinoamericana de Psiquiatria da Infância, Adolescência e Profissões Afins e doutorando da USP.


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